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2 de maio de 2017

DESAPAIXONANTE -- EPISÓDIO 4x06: CAFÉ E TORTA DE CEREJA



(Denner)


Seleciono I have a dream do Abba, no celular, e deixo tocando enquanto me arrumo para cuidar de mais um caso da ANNA.
Nada melhor do que fazer do trabalho um desanuviador de estresse. Sim, porque desde que Pedro e Olívia cruzaram meu caminho, as coisas não têm sido fáceis. Hoje, por exemplo, faz dois dias que esgotou o prazo que eu havia pedido a eles para poder falar com Rita. E sabe de uma coisa? Minha namorada nem sonha com o que tá rolando, não comentei uma palavra sequer. Desde então, tenho andado no alerta máximo, disfarçando o nervosismo fazendo uma das coisas que faço de melhor: desapaixonar pessoas.
Rola um pouco de medo do que aqueles dois podem fazer. Indubitavelmente estranhos, misteriosos, intimidadores e com umas conversas nada a ver sobre terem vindo de um “mundo” onde a Joelma é a presidente do Brasil. Com todo o respeito à mãe do calipso brasileiro, não me espantaria que esses dois fossem dois lunáticos que fugiram de um manicômio. Devo manter na memória que por pouco, por pouquíssimo, Olívia não puxou o gatilho para mim uma vez. Vivo tão preocupado por causa disso que já fiz inúmeras pesquisas no Google sobre possíveis fugas de hospício nos últimos tempos, torcendo incansavelmente para que seja uma possibilidade verídica.
“I believe in angels, something good in everything I see”, cantarolo diante do espelho, fazendo caretas enquanto tento pentear os cabelos que dão um trabalho danado.
“Você é bizarro!”, Lucas, meu irmão caçula irritante, está parado à porta do meu quarto, com as sobrancelhas franzidas e os braços cruzados. “Seu inglês é uma droga e você desafina pior que um gato quando pisam no rabo dele. Como é que você consegue ser você?”
“E você é um enxerido, garoto. Não te ensinaram a bater antes de entrar?”
“Por que eu bateria na porta que eu comprei?”
Infelizmente, o dinheiro para comprar essa maldita porta saiu de seu bolso de celebridade mirim. Melhor mudar de assunto:
“O que você quer, Lucas?”
“Não estressa ele, Denner!”, Glenda, minha irmã mais velha, surge detrás do pequeno megero, acariciando seu ombro. “Lucas tem um teste decisivo hoje pra um musical que vai dar o que falar. Claro que o papel já tá garantido, mas é sempre bom mantê-lo a salvo de conflitos pra fazer um bom teste, não é, maninho?”
“Grandes coisas”, penso, pegando um perfume na penteadeira e passando um pouco nos pulsos e pescoço, focado em não abalar minha empolgação pelo trabalho de hoje.
“Para de me tratar que nem um fedelho, Glenda”, repreende Lucas, logo voltando a dirigir a palavra para mim. “É o musical ‘Pequenos lobos’. Já ouviu falar, idiota? Esse musical pode me levar pra uma turnê mundial”, ele se gaba.
“Uau!! Tomara que isso aconteça mesmo. Aliás, tem certeza que é esse o nome? Não seria ‘Pequenas Cobras’ ou ‘Pequenos Grilos Falantes Enchedores de Paciência’? Porque você se encaixaria muito bem nesses tipos de papéis”.
Quando Lucas se sente desafiado, ele infla as bochechas e sua tez começa a se avermelhar de ódio, mas isso também quer dizer que ele está travando uma batalha interna tentando encontrar um modo de revidar. Glenda, sua puxa-saco oficial, assume suas dores:
“Como você pode ser tão insensível com seu irmão de doze anos, Denner? Sabe, ele mandou colocar uma porta no seu quarto. Você se lembra como a gente tinha medo de você quando te ouvia falando sozinho no meio da noite? Inacreditável!”
“Algumas pessoas merecem portas para seus quartos”, o pequeno megero se recupera e volta a atacar, mas faz isso do jeito mais canastrão possível. “Você não é uma dessas pessoas, seu... seu... ouvinte de músicas de velho!”
Glenda ri, mais para bater seu ponto de apoiadora número um do que pela suposta graça das palavras dele.
“Não entendo porque você tá rindo, Glenda. É mais velha do que eu”.
“Vamos embora, Glenda. Tô atrasado pro pilates. Deixa esse bizarro pra lá”.
“Foi você que veio atrás de mim”, ressalto.
“Isso mesmo, ainda bem que me lembrou. Tem uma loira e um careca lá na sala querendo falar com você. Tentei avisar pra eles que eu não sou sua empregada, mas quando me dei conta, já tava aqui. Pensando bem, como foi que eu vim parar aqui tão rápido?”
Essa não!! Quando eu penso que minha situação estava sob controle, Lucas me vem com essa.
“O Pedro e a Olívia estão aqui?!”, indago, com a ponta de esperança de que o garoto tenha ouvido algum pensamento oral e resolvido me pregar essa peça.
“Eu não sei os nomes deles!!”, ele responde, profundamente ofendido, levantando o indicador contra mim: “Olha aqui, Denner, é melhor você parar de abusar da minha paciência porque eu não tenho obrigação de ficar por dentro de quem são os seus amiguinhos. Na certa, são dois lesados que também ouvem música de velho que nem você. Me leva embora, Glenda! Eu vou acabar dando uma lição nesse magricela aqui mesmo”.
Esse menino vai acabar babando e virando um cão raivoso aqui na minha frente, só que tô sem tempo pra lidar com esse tipo de tolice. Rapidamente, atravesso seu caminho, rumo à sala de casa. Infelizmente, não foi uma peça, eu não tinha entendido errado. Pedro e Olívia estão devidamente acomodados sobre o sofá, ambos com uma expressão lívida e um sorriso voltado para mim ao me verem chegar com o coração praticamente assado diante deles.
“Boa tarde, Denner”, diz Pedro, segurando seu indefectível chapéu. “Como tem passado?”
“Desculpe, não resistimos, estávamos morrendo de saudade”, complementa Olívia, sustentando um olhar oblíquo que está querendo dizer muito mais do que realmente está dizendo. 


Não adiantou explicar a eles que tenho um caso importantíssimo da ANNA para resolver. Eles simplesmente concluíram que iriam me seguir.
E foi assim que eu acabei com eles dois na minha cola. Quero dizer, comigo no carro está Pedro, enquanto Olívia vem dirigindo atrás, no Siena peliculado que nos últimos dias eu aprendi a reconhecer caso visse nas ruas (e, com isso, fugir).
Como sou ingênuo!! Não passou pela minha cabeça o mais óbvio, isto é, que eles acabariam dando o ar da desgraça na minha casa. Pelo menos não resolveram abordar Rita Lina diretamente, o que, para minha alegria, ainda me coloca em certa vantagem.
O problema de estar com eles também reside no fato de que eu preciso fazer muita força para não deixar vazar nenhum pensamento oral arriscado. Tipo o de que não me parece inapropriado dar cabo da vida deles, embora eu tenha plena certeza de que um cara como eu sequer saberia como traçar um plano básico de assassinato.
“Por quanto tempo vocês pretendem ficar me seguindo?”
“O tempo que for necessário”.
“Pois é... Só que eu tenho que atender um cliente agora, sabe? Não boto muita fé que ele vai se sentir à vontade com pessoas estranhas. Tipo, eu mesmo sou praticamente um estranho pra ele. E, sinceramente, como eu explicaria a presença de vocês se nem eu mesmo entendo direito?”
“Não se preocupe, a gente fica do lado de fora da casa, esperando. Pretende demorar?”
“O quê?? Isso é sério?? Vocês têm ideia de como isso parece doentio? E muito, muito inconveniente?”
“Seu prazo estourou, Denner. Bom, por mim eu te daria mais uma semana, pois você é um cara legal, prestativo e eu pessoalmente tendo a confiar em jovens com uma cabeleira vasta como a sua, mas a jararaca da Olívia é ‘extremamente profissional’”, explica ele, desenhando aspas no ar ao final de sua frase. “E por um lado ela tem razão: quanto mais cedo nós cumprirmos essa missão, mais cedo não teremos mais de olhar um pra cara do outro. Quero dizer, ela e eu. Você não tem noção de como eu quero isso loucamente. Portanto, aqui estou”.
“Qual de vocês dois está no comando dessa... missão?”
“Nenhum. O comando da missão vem de outra pessoa. Olívia e eu temos o mesmo grau de autoridade, nenhum manda no outro. Apesar dela tentar me controlar o tempo todo, literalmente”.
“Literalmente?”
“É”, ele faz uma careta de nojo.  “Ela tem umas habilidades especiais. Odeio essa cretina!”
“Como assim? Habilidades especiais?”
“Sim. Inclusive ela violou uma das nossas regras e usou essas ‘habilidades especiais’ com aquele menino que atendeu a gente lá na sua casa. Essa exibida adora fazer uns truquezinhos”.
Continuo balançando a cabeça, sem entender, o que acaba sendo praticamente a única coisa que eu faço durante qualquer interação que eu tenha com Pedro ou Olívia. Do que é que ele tá falando? Olívia fez o que com Lucas? Melhor deixar assim, fazer disso uma informação desconhecida. Não dizem que ignorância às vezes é uma benção? Além disso, quanto mais eu troco palavras com Pedro ou Olívia, mais convencido eu fico de que eles são sim fugitivos de um hospício, e que eu só tô dando azar de ainda não ter conseguido confirmar isso.
“Vocês vão continuar me escondendo a verdade sobre a missão?”, pergunto.
“Olívia me disse que ela acabou falando demais naquela noite em que vocês me encontraram meio alto no bar”.
“Meio alto? Pedro, você tava praticamente no topo do Cristo Redentor naquele dia”.
A diferença de como me sinto a sós com Pedro e como me sinto a sós com Olívia é gritante. A tensão até diminui aqui sozinho com ele. Se fosse o contrário, ela certamente estaria me fazendo tremer e até me levar a causar um acidente. Troco um olhar com ela pelo retrovisor e só isso já basta para o estômago dar uma pequena cambalhota, tamanho o desconforto que ela provoca.
“Ela não falou nada”, retomo a conversa. “Quer dizer, ela comentou que vocês vieram de um outro mundo, algo assim. E que nesse mundo a Joelma é presidente do Brasil”.
“Verdade. Apesar de ‘outro mundo’ ser só uma maneira de falar”, assente Pedro, um tanto risonho, talvez se lembrando vagamente do que viu no bar naquela noite. “Eu só não fiquei mais boquiaberto porque estava um pouco alterado pelo álcool, então achei divertido, na verdade. Mas aquela visão da nossa presidente foi espantosa. O curioso é que, entre tudo que pesquisamos antes de vir pra cá, ignoramos essa informação. Por isso ficamos tão surpresos”.
“Ok, ok. Você então tá confirmando o que a Olívia disse. Muito bem. Mas o que exatamente isso quer dizer?”
“Eu, hein, Denner!”, chateia-se ele. “Pra um talentoso escritor de contos, até que sua imaginação é bem fraquinha, né? Ainda não juntou as peças?”
“Não!”
Abro a boca para agradecer pelo elogio quanto aos meus dotes literários, mas o celular de Pedro toca o tema de Arquivo X. Ele atende, troca alguns monossílabos com o interlocutor , desliga e se volta a mim:
“Era Olívia. Mudança de planos”, suspira, como um gamer que tem de interromper uma partida do jogo num momento emocionante. “Você é sortudo, viu?”
“O que foi agora?”
“Nossa contratante quer uma audiência com certa urgência, daí a gente tem que voltar pro apartamento e fazer uma vídeo-conferência com ela. Olívia mandou te dizer que... hã... ela pediu, pois ela não manda em mim, pra te dizer que amanhã a gente entra em contato. A gente te liga”.
“Ué!”
“Quê?”
“Tá bom então. Que coisa estranha!”
“Pessoas estranhas são rodeadas de estranhezas, Denner. Me diga, o que não é estranho nessa vida? Você já devia ter se acostumado com isso. Pare o carro”.
Eu paro. Pedro me lança uma piscadela como se fôssemos amigos, desce do carro e caminha até o Siena, onde Olívia o aguarda.
Pode algo me deixar ainda mais intrigado que isso hoje? Dou a partida e sigo meu rumo, recuperando um pouco do alívio que eu tinha antes deles aparecerem na minha casa.


Quase me esqueci de mencionar. Não é só o fato de ter um caso novo que está me trazendo certa empolgação. É que, coincidentemente, o cliente da vez é ninguém menos que um escritor que tem se tornado meu favorito há alguns anos.
Hektor Casanova é autor da minha série de livros predileta, Detetives da Noite, sobre um casal de detetives que só têm tempo de investigar crimes depois das 21 horas, secretamente, pois durante o dia têm de cuidar de suas vidinhas ordinárias e sem sal. Já foram lançados oito volumes e eu já devorei todos, em coisa de uma semana. As histórias misturam ação com drama, comédia, tudo na medida certa, escritas de forma a prender qualquer pessoa que ponha as mãos e os olhos nelas. Viciante!
Quase implorei ao Sávio para pegarmos o caso, mesmo sem ter lido direito o formulário que Hektor preenchera. Imagina o privilégio em poder atender esse homem que eu praticamente venero. É uma chance e tanto para, quem sabe, convencê-lo a dar uma lida nos meus contos. Só de imaginar um cara com o cacife literário de Hektor Casanova lendo os meus humildes textos, aaahhh... Menos, Denner, menos. Vai com calma. O cara deve ser ocupadão cuidando de literatura boa de verdade.
Sou recebido por um homem anão que, pelos trajes, deve ser o mordomo da casa. Uau!! Até nisso Hektor me surpreendendo, assim como em seus plot twists de fazer o leitor arregalar os olhos e ficar vários segundos tentando recuperar o fôlego.
Confesso que tenho um pouquinho de medo de anões, mas não é por preconceito ou algo dessa natureza. Foi por causa de um dia na infância, quando meus pais levaram Glenda e eu ao circo. Durante uma apresentação de uma trupe de anões, dois leões escaparam de suas respectivas jaulas (que já estavam de stand by atrás do picadeiro), prontos para atacar os coitados dos anões, que saíram do picadeiro em disparada, fugindo. Nisso, cerca de nove ou dez anões me atropelaram do lado de fora. Eu estava voltando do carrinho de algodão doce todo pimpão e não tive como desviar. Eles ficaram furiosos por eu ter atrapalhado a fuga deles. Não foi por menos, já que os leões acabaram devorando três dos anões na fatídica ocasião. Mentira, essa parte inventada eu só incluo para aliviar a carga dramática que essa história me traz. Aqueles pequeninos pés me pisoteando e destroçando meu algodão doce... Qualquer criança de oito anos carregaria tal trauma pela eternidade. Se eu fechar meus olhos, posso rememorar cada cena, até mesmo o cheiro de grama, tabaco e cocô de elefante do solado de seus sapatos...
O anão mordomo está me olhando com uma discreta irritação. Com certeza minha recordação foi outro pensamento oral que eu poderia ter guardado só pra mim.
“Boa tarde!”, digo, inteiramente desconcertado. “Eu estou aqui pra ver Hektor Casanova. Temos negócios a tratar”.
“Venha por aqui, o Sr. Casanova o aguarda”.
Seguimos por um corredor ladeado por canteiros de flores diversas, com direito a uma pequena roseira com alguns botões em pleno desabrochar. Acho que acabo de ver uma rosa de cor verde, um verde bem vivo mesmo.
“Sim, você viu uma rosa verde”.
“Que legal! Não sabia que existia”.
“Só porque você vê uma coisa não quer dizer que ela exista”.
Uma coisa que eu decidi pra minha vida, ainda aos oito anos naquela tarde de verão no circo, foi nunca contrariar ou discutir com um anão. Traumas de infância são verdadeiros moldadores de caráter.
Hektor Casanova vem atravessando uma enorme porta de vidro, trajando uma camisa florida aberta e uma bermuda cáqui pouco acima dos joelhos, havaianas nos pés, abrindo um sorriso largo e sincero.
“Então você é o Denner Corrêa!”, ele diz.
Pelas fotos nas orelhas de seus livros, eu confesso que esperava um sujeito com ar mais soturno, menos sorridente, tipo um simpatizante de rock gótico e adepto secreto de práticas vampíricas. Mas não: Hektor consegue dar uma frustrada nas minhas expectativas de fãs. É um lance comum, eu sei, mas quem manda a gente se encantar por uma figura imaginária que a gente gosta de criar?
Hektor tem os cabelos castanhos presos num rabo-de-cavalo, longos, bem-tratados. Barba cheia, óculos de grau emoldurando um rosto de homem-ogro-que-se-cuida, corpo que deve beirar 1.90 de altura. Voz normal, nem tão grave e nem tão fina. Pelas minhas pesquisas, ele já está com 43 anos. Ele anda em passos cuidadosos, quase como se medisse quantos centímetros andar a cada um. Tem um anel de caveira num dos dedos. Um resquício da minha imaginação, e me animo por não ficar tão desapontado.
“Obrigado, Bóris. Eu prossigo daqui”, ele agradece o anão mordomo, fazendo uma leve reverência com a cabeça.
“Odadiuc, rohnes Avonasac. Etse hemom met oriehc ed odiod orup”.
“Uov ramot odadiuc, Bóris. Odagirbo alep… alep... preocupação”.
“O senhor ainda não aprendeu a falar ‘preocupação’, senhor. É uma pena! Devo agendar um treinamento para às 22 horas?”
“Às 22 horas não será possível, Bóris. A editora quer fazer uma live comigo no Youtube hoje. Mas, relaxe, eu prometo que vou treinar mais”, desculpa-se Hektor, enfim tornando-se para mim. “Vamos, Denner?”
Sigo-o para dentro da casa, sem disfarçar minha curiosidade:
“Desculpa, Sr. Casanova, mas o senhor e o seu... humm... mordomo... estavam falando em outra língua?”
“Mais ou menos isso”, ele diz, enquanto passamos pela sala de sua casa, ampla e aparentemente aconchegante. “Na verdade ele gosta de falar de trás pra frente, é uma forma de manter a cultura de seus ancestrais”.
Depois de passarmos pela cozinha, Hektor me leva até o quintal, onde uma mesa perto de uma piscina de uma água azul bem convidativa já está posta, nos esperando. Quase morro de susto ao ver que o anão já está lá, esperando por nós. Só que vestido de mulher, com os cabelos partidos ao meio e um par de tranças.
“Esta é a Borsana, irmã gêmea do Bóris. Ela cuida dessa parte da casa”.
“Ah, sim”, tento me refazer.
Não sei de onde eu tirei que poderia ser o mesmo anão. Talvez por não supor que Hektor pudesse bancar uma espécie de Willy Wonka ao escolher seus empregados.
“Para acompanhar nossa conversa, escolhi torta de cereja e um bom café preto para acompanhar. Gosta de torta de cereja com café?”
“Pra falar a verdade, nunca comi torta de cereja, mas fico feliz que vou experimentar”.
“Vai ver que é uma delícia. Borsana tem mãos maravilhosas para tortas, especialmente esta”.
A anã fala, com uma voz aguda, porém impregnada de suavidade:
“Rossop ri, rohnes Avonasac? Osicerp raçnad mu ocuop aroga. Suem sép mamalc rop amu oab ahnicnad”.
“Edop ri, Borsana. Ecnad omoc amu aob aniraçnad ad atserolf”.
“Saob sarvalap, rohnes. Moc açnecil”.
“Ah, ela também gosta de manter a cultura dos ancestrais”, constato.
“Não, não. Diferentemente do irmão, Borsana só fala assim porque não aprendeu nosso idioma. Ela acha essa coisa de ancestrais uma grande besteira. Por favor, Denner, me dê a honra de cortar pra você o primeiro pedaço da torta”.
“Pois não”.
Poderia argumentar que não é difícil aprender a nossa língua, já que a que os anões daqui falam nada mais é que uma versão invertida do português, mas sei lá... Estou tão entusiasmado pela chance de conhecer meu autor favorito que qualquer preocupação com os detalhes ao redor se torna desnecessária.
Provo da famigerada torta. De fato, é uma delícia!!
“Eu não disse que ia gostar?”
“Parece... Uau!! É uma das coisas mais gostosas que eu já comi em toda a minha vida”.
“Ah, eu sei muito bem o que você quer dizer. Parece que uma bomba cremosa de sabor inexplicavelmente prazeroso estoura e vai tomando conta das papilas gustativas, não é? Essa não é uma torta de cereja igual às outras, pode apostar. Ela vai mexer com sua cabeça. Experimente o café”.
O senhor que manda, chefe. Ainda mais depois dessa incontestável descrição sobre a torta.
“Nossa!”, exclamo após ingerir o líquido, que escorre quentinho e encorpado pela minha garganta. A parceria entre esse café e essa torta está impecável, melhor coisa para me fazer esquecer um pouco de Pedro e Olívia. “Que marca de café é essa? Importada?”
“Que nada, é brasileiríssima. O café é colhido e moído pelos próprios anões, eles mesmos pisam os grãos, todos os dias às cinco da manhã, impreterivelmente. Pelo visto, usam uma técnica muito sofisticada, se conseguem um resultado tão primoroso”.
Eca! Num segundo me vem uma ânsia de vômito quase incontrolável, e eu me lembro dos pés fedidos que quase esmagaram meu frágil corpinho infantil naquele circo. Disfarço com um sorrisinho. A vida tinha de me trazer para perto de anões pisadores, poxa? Espero que Hektor não tenha alguns leões de estimação, pra variar...
No entanto, apesar dessa descoberta, não estraga em nada a experiência de beber desse café, que de fato está magnífico.
“Você tem outros empregados anões, além do Bóris e da Borsana?”
“Não, não. Na verdade, eu não gosto de ter empregados. Eles insistiram em ficar aqui em troca de aprender costumes urbanos, já que passaram a vida toda trabalhando em fazendas. E também porque têm um sonho de um dia abrir a própria casa de entretenimento para anões. A Borsana adora dançar e o Bóris é um exímio cantor de lambada, apesar de ele adorar um bom e velho jazz”.
“Entendi”.
“E então, Denner? Já leu todos os livros de Detetives da Noite?”
“Sim!! Sr. Casanova, mas que história espetacular! Não sei como ainda não quiseram fazer filmes ou séries de TV”.
“Verdade, verdade...”, concorda ele, ligeiramente incomodado. “Mas acho que ainda é cedo pra isso. Eu não simpatizo muito com esse tipo de coisa. Não quero passar pelo mesmo desgosto do Stephen King com O Iluminado, sabe? Ele odiou aquela adaptação”.
“Sei...”
“Ah, e por favor, não me chame de Sr. Casanova. Só Hektor já está bom. E então, o que você tem pra mim? Eu deixei bem claro que seria necessário um bom conhecimento da saga Detetives da Noite pra me ajudar a desapaixonar da Laura”.
“Peraí, como? Laura?”
Droga, eu não li o formulário de preenchimento de cliente. Que incompetência!! Dessa forma, como poderia sequer tentar impressionar Hektor de que também sou escritor?
O nome da sua paixão é Laura? Que nem a Laura Palmer, a protagonista de Detetives da Noite? Legal!”
“Você não leu meu formulário, Denner”, constata ele, decepcionado. “Mas pelo menos você disse que já leu os oito livros, então não vai ser tão difícil, certo?”
“Acredito que não, mas o que os livros têm a ver com isso?”
“Tem a ver porque eu não estou apaixonado por uma Laura qualquer. Trata-se da Laura Palmer dos meus livros, Denner”.
Olho para os lados, completamente perdido com essa nova informação. Eu não acredito que isso estava no formulário o tempo todo e eu deixei isso escapar por conta da minha tietagem cega. Se eu tivesse averiguado antes, nem teria me dado o trabalho de vir até aqui, mesmo morrendo de vontade.
“Algo me diz que você não está brincando”, reluto, enquanto ganho tempo abocanhando mais um pouco da torta de cereja, seguida de mais um gole do café “artesanalmente triturado”.
“Ah, Deus sabe como eu queria, Denner”, ele passa a mão pelos cabelos escorridos, num leve desespero. “Eu também não sei como isso foi acontecer, mas o que eu podia fazer? Laura Palmer é uma mulher irresistível. Eu vivo tendo sonhos com ela todas as noites. E tenha certeza de uma coisa: são os sonhos mais reais que eu já tive”.
“Mas ela é uma personagem, Hektor. Desculpe te desapontar, mas ela não existe. Só isso deveria ser o bastante pra você se desapaixonar. Um relacionamento entre vocês é impossível”.
“Eu sei. Mas olha pra mim. Eu pareço desapaixonado pra você, apenas seguindo a lógica de que ela é uma personagem? Nem mesmo no mais fundo da minha imaginação eu encontrei uma explicação pra isso. A paixão me pegou na armadilha mais ardilosa que poderia existir: a crueldade de um relacionamento inalcançável. Mas eu te entendo. Não deve ser fácil aceitar um desafio como esse, então vou te dar todo o tempo que for necessário. Ou pode desistir, se a sua empresa não der conta do recado”.
Começo a rir, mas não de zombaria. É impossível lidar com esse tipo de caso. Eu nem faço ideia de por onde começar. Acho que estou é rindo de nervoso mesmo, de otário por viver me deparando com os clientes e histórias mais delirantes.
“Denner, eu posso garantir que o pagamento vai ser muito bom”.
“Olha, Hektor, o problema não é dinheiro...”
“E não tô falando de dinheiro”.
Intrigado, retruco:
“Tá falando de que então?”
“Eu não só vou pagar o preço combinado para sua empresa, como vou fazer um favor especial só pra você”, diz ele, piscando amigavelmente, entrelaçando as mãos. “O que você acharia de eu ler os seus contos e, de repente, comentar um pouco sobre eles com meu agente literário?”
Meu Deus, estou ficando sem fôlego. Uma proposta dessa, não pode ser real.
“Você consideraria me ajudar com a Laura Palmer, Denner?”
“Cara... Você tá falando sério? Tipo, sobre ler os meus contos. Seria fantástico. Eu sou seu maior fã, Hektor”.
“Denner, eu tenho vários interesses excêntricos, como secar pratos com os cabelos e fazer fanfics secretas sobre a Inês Brasil estudando em Hogwarts, mas eu te garanto que eu não tenho interesse em brincar com o sentimento de um colega escritor”.
Depois dele ter me chamado de colega, meus ouvidos ficaram surdos ao som da sua voz. Tudo que eu consigo ouvir agora são estrelas explodindo pela minha cabeça, produzindo um festival de cores dançantes no céu. Colega! Colega escritor!
Cheio de orgulho, estufo o peito e digo o que pode me trazer um gigantesco arrependimento mais tarde. Mas que se dane.
“Hektor Casanova, nós temos um acordo! A Agência do Negócio Nada Apaixonante aceita o seu caso”.


Saio da casa de Hektor preocupado com esse tanto de acordos que venho fazendo, mas sem qualquer previsão de como e quando vou cumpri-los. Por que eu sou assim? Por que sou atraído para coisas assim?
Mal tive tempo de esquecer de Pedro e Olívia, o carro deles já está estacionado do outro lado da rua.
“Vocês não iam me ligar amanhã?”
“Precisamos te mostrar uma coisa”, Olívia responde, enquanto Pedro come uma pera jubilosamente.
“Me mostrar uma coisa?”, repito, o alerta de medo ativado.
“Vem com a gente até o nosso apartamento”, Olívia fala, embora pareça que é uma ordem.
“Por que não me ligaram pra ir pra lá? Não precisavam ter vindo me buscar”.
“Você é um cara legal, Denner”, Pedro se pronuncia, entre uma mastigada e outra. “Só que de vez em quando você nos evita e parece fugir da gente. Não quisemos correr esse risco”.
“É mesmo, é? Talvez porque seja difícil esquecer que vocês iam me matar. Olha, eu acabei de aceitar um caso muito bizarro pra resolver, sendo que eu nem faço ideia de como vou me virar pra solucioná-lo. E tem outra: não consigo me sentir à vontade com vocês. Ou melhor, até que nem tem tanto problema de ficar com você, Pedro, mas com a Olívia é tenso!”.
“Adoraria passar o resto da tarde fritando a Olívia com você, mas dessa vez não vai dar, Denner. Eu vou entrar com você no seu carro e vamos pro nosso apartamento no edifício Oceânico. Nossa contratante nos autorizou a te dar algumas... explicações”.
Finalmente uma notícia animadora em meio a esse turbilhão de emoções tão angustiantes.


Chegamos ao hotel Oceânico, entramos no elevador e deixamos o silêncio tomar conta da ocasião. Nem acredito que enfim vou ter uma noção clara do que está acontecendo. Tudo o que espero é não ficar envolto em mais dúvidas, isso sim.
A porta do elevador se abre, saímos. Repentinamente, um pensamento grita numa potência aterradora: e se eles só me trouxeram aqui pra finalmente me matar? Afinal, eles não são cheios de “truques”? Quem sabe nem precisam mais de mim, se tocaram que eu não sou lá tão útil como julgavam.
“Larga de frescura e vem logo, que a gente não vai te matar”, irrita-se Olívia, após ouvir meu pensamento oral, com uma arma em punho. “Bom, pelo menos ainda não”.
“Sua simpatia é irresistível”, replico, fulo da vida.
Dentro do apartamento 815, eles param diante de mim, como se fossem explicar algo antes de partir para aquilo que alegaram ter a mostrar.
“Odeio fazer isso, mas nossa contratante pediu pra gente se desculpar com você”, começa Olívia, e ela dizendo isso é algo infinitamente fácil de acreditar.
“Por conta disso”, adiciona Pedro, “ela nos autorizou a te mostrar algo que prove que nós realmente viemos de outro mundo. Quer dizer, não exatamente outro mundo, mas de outra realidade”.
Fito-os, profundamente desconfiado. Outra realidade?
“O que vocês querem dizer com isso? Como... Como... Uma realidade paralela ou algo do tipo? Vocês vieram de um mundo paralelo?”
“Mundo, realidade, universo... Não importa o nome. Mas sim, essa é a explicação. Acredita na gente?”, Olívia está se deliciando com o meu começo de estarrecimento.
Por que será que eles estão soando tão convincentes?
“Esse papo é muito esquisito, não dá pra acreditar, desculpem”.
Pela primeira vez, vejo-os trocando um olhar de cumplicidade que os faz até parecer melhores amigos do mundo.
Vamos”, chama Pedro, tomando a frente e adentrando mais o lugar, encaminhando-se ao que provavelmente deve ser um quarto.
Ele abre a porta. De fato, tem uma cama de solteiro, um criado-mudo, um roupeiro modesto. Bom, me parece um quarto.
“Está vendo essa porta?”, ele aponta para uma porta que, ao que tudo indica, dá para um banheiro ou algo assim.
“É atrás dela que fica o portal pro mundo de vocês?”
“Não seja ridículo”, debocha Olívia.
Só me resta dar de ombros. Ué, poderia haver um portal, já que as circunstâncias estão fugindo sem dó alguma do senso comum.
“Não me culpa, tá? Eu não tenho muitas referências sobre realidades paralelas, então tô usando o máximo da minha imaginação aqui”.
Pedro abre a porta, enquanto deixa à mostra um sorriso malicioso para mim, fazendo um sinal com o indicador para eu me aproximar. Ele diz:
“Dá uma olhadinha nisso, Denner!”
Caminho, temeroso. O ambiente guardado pela porta não se revela tanto, está privado de iluminação decente, apenas uma lâmpada bem fraca nos permite distinguir alguma coisa. Com uma das mãos, termino de abrir a porta, a fim de ter uma visão total.
Nem preciso entrar para ver. Da soleira, sinto o coração acelerar, praticamente subir até à boca. Não sei bem o que pensar sobre esse cenário. Isso é verdade? O que estou vendo aqui pode me convencer do que Pedro e Olívia disseram sobre sua procedência ou, de alguma forma, armaram para me engambelar?
Não consigo definir. Mas o olhar que essas duas pessoas nessa espécie de cativeiro me lançam possui um misto de grito por ajuda e extremo desprezo. Estão em condições sofríveis, mas uma coisa não dá para negar: não sei como, mas dentro disso que poderia ser um banheiro estão um homem e uma mulher amarrados e amordaçados, que começaram a gemer e se debater assim que puseram os olhos em mim.

Nem em mil anos eu poderia explicar sem que me considerassem um lunático, pois ao meu lado, de pé, estão Pedro e Olívia me encarando e analisando cada pormenor da minha reação, com ar de satisfação. Entretanto, há mais um exemplar de Pedro e Olívia mantidos cativos num cômodo duvidoso no apartamento 815, iguaizinhos aos que estão aqui pertinho de mim, com a diferença de que estes aparentam ser mais sádicos, além de não estarem presos e amarrados. Mas mesmo assim... Caramba!! Como pode ser possível uma coisa tão perturbadora como essa? E, além disso, por quê?


Um comentário:

João disse...

CÊ TÁ LOUCO MANO!!!! kkkkk
Mas vou dizer uma coisa, mesmo com essa loucura do final ainda assim não consegui entender o que os anãos falam, apesar de ser um "português invertido".