(Denner)
Seleciono I have a dream do Abba, no celular, e deixo tocando enquanto me
arrumo para cuidar de mais um caso da ANNA.
Nada melhor do que fazer do
trabalho um desanuviador de estresse. Sim, porque desde que Pedro e Olívia cruzaram
meu caminho, as coisas não têm sido fáceis. Hoje, por exemplo, faz dois dias
que esgotou o prazo que eu havia pedido a eles para poder falar com Rita. E
sabe de uma coisa? Minha namorada nem sonha com o que tá rolando, não comentei
uma palavra sequer. Desde então, tenho andado no alerta máximo, disfarçando o
nervosismo fazendo uma das coisas que faço de melhor: desapaixonar pessoas.
Rola um pouco de medo do que
aqueles dois podem fazer. Indubitavelmente estranhos, misteriosos,
intimidadores e com umas conversas nada a ver sobre terem vindo de um “mundo”
onde a Joelma é a presidente do Brasil. Com todo o respeito à mãe do calipso
brasileiro, não me espantaria que esses dois fossem dois lunáticos que fugiram
de um manicômio. Devo manter na memória que por pouco, por pouquíssimo, Olívia
não puxou o gatilho para mim uma vez. Vivo tão preocupado por causa disso que
já fiz inúmeras pesquisas no Google
sobre possíveis fugas de hospício nos últimos tempos, torcendo incansavelmente
para que seja uma possibilidade verídica.
“I believe in angels, something good in everything I see”, cantarolo
diante do espelho, fazendo caretas enquanto tento pentear os cabelos que dão um
trabalho danado.
“Você é bizarro!”, Lucas, meu irmão caçula irritante, está parado à
porta do meu quarto, com as sobrancelhas franzidas e os braços cruzados. “Seu inglês é uma droga e você desafina pior
que um gato quando pisam no rabo dele. Como é que você consegue ser você?”
“E você é um enxerido, garoto. Não te ensinaram a bater antes de
entrar?”
“Por que eu bateria na porta que eu comprei?”
Infelizmente, o dinheiro para
comprar essa maldita porta saiu de seu bolso de celebridade mirim. Melhor mudar
de assunto:
“O que você quer, Lucas?”
“Não estressa ele, Denner!”, Glenda, minha irmã mais velha, surge
detrás do pequeno megero, acariciando seu ombro. “Lucas tem um teste decisivo hoje pra um musical que vai dar o que
falar. Claro que o papel já tá garantido, mas é sempre bom mantê-lo a salvo de
conflitos pra fazer um bom teste, não é, maninho?”
“Grandes coisas”, penso, pegando
um perfume na penteadeira e passando um pouco nos pulsos e pescoço, focado em
não abalar minha empolgação pelo trabalho de hoje.
“Para de me tratar que nem um fedelho, Glenda”, repreende Lucas,
logo voltando a dirigir a palavra para mim. “É
o musical ‘Pequenos lobos’. Já ouviu falar, idiota? Esse musical pode me levar
pra uma turnê mundial”, ele se gaba.
“Uau!! Tomara que isso aconteça mesmo. Aliás, tem certeza que é esse o
nome? Não seria ‘Pequenas Cobras’ ou ‘Pequenos Grilos Falantes Enchedores de
Paciência’? Porque você se encaixaria muito bem nesses tipos de papéis”.
Quando Lucas se sente desafiado,
ele infla as bochechas e sua tez começa a se avermelhar de ódio, mas isso
também quer dizer que ele está travando uma batalha interna tentando encontrar
um modo de revidar. Glenda, sua puxa-saco oficial, assume suas dores:
“Como você pode ser tão insensível com seu irmão de doze anos, Denner?
Sabe, ele mandou colocar uma porta no seu quarto. Você se lembra como a gente
tinha medo de você quando te ouvia falando sozinho no meio da noite?
Inacreditável!”
“Algumas pessoas merecem portas para seus quartos”, o pequeno megero
se recupera e volta a atacar, mas faz isso do jeito mais canastrão possível. “Você não é uma dessas pessoas, seu... seu...
ouvinte de músicas de velho!”
Glenda ri, mais para bater seu
ponto de apoiadora número um do que pela suposta graça das palavras dele.
“Não entendo porque você tá rindo, Glenda. É mais velha do que eu”.
“Vamos embora, Glenda. Tô atrasado pro pilates. Deixa esse bizarro pra
lá”.
“Foi você que veio atrás de mim”, ressalto.
“Isso mesmo, ainda bem que me lembrou. Tem uma loira e um careca lá na
sala querendo falar com você. Tentei avisar pra eles que eu não sou sua
empregada, mas quando me dei conta, já tava aqui. Pensando bem, como foi que eu
vim parar aqui tão rápido?”
Essa não!! Quando eu penso que
minha situação estava sob controle, Lucas me vem com essa.
“O Pedro e a Olívia estão aqui?!”, indago, com a ponta de esperança
de que o garoto tenha ouvido algum pensamento oral e resolvido me pregar essa
peça.
“Eu não sei os nomes deles!!”, ele responde, profundamente
ofendido, levantando o indicador contra mim: “Olha aqui, Denner, é melhor você parar de abusar da minha paciência
porque eu não tenho obrigação de ficar por dentro de quem são os seus
amiguinhos. Na certa, são dois lesados que também ouvem música de velho que nem
você. Me leva embora, Glenda! Eu vou acabar dando uma lição nesse magricela
aqui mesmo”.
Esse menino vai acabar babando e
virando um cão raivoso aqui na minha frente, só que tô sem tempo pra lidar com
esse tipo de tolice. Rapidamente, atravesso seu caminho, rumo à sala de casa.
Infelizmente, não foi uma peça, eu não tinha entendido errado. Pedro e Olívia
estão devidamente acomodados sobre o sofá, ambos com uma expressão lívida e um
sorriso voltado para mim ao me verem chegar com o coração praticamente assado
diante deles.
“Boa tarde, Denner”, diz Pedro, segurando seu indefectível chapéu. “Como tem passado?”
“Desculpe, não resistimos, estávamos morrendo de saudade”,
complementa Olívia, sustentando um olhar oblíquo que está querendo dizer muito
mais do que realmente está dizendo.
Não adiantou explicar a eles que
tenho um caso importantíssimo da ANNA para resolver. Eles simplesmente
concluíram que iriam me seguir.
E foi assim que eu acabei com
eles dois na minha cola. Quero dizer, comigo no carro está Pedro, enquanto
Olívia vem dirigindo atrás, no Siena peliculado que nos últimos dias eu aprendi
a reconhecer caso visse nas ruas (e, com isso, fugir).
Como sou ingênuo!! Não passou
pela minha cabeça o mais óbvio, isto é, que eles acabariam dando o ar da
desgraça na minha casa. Pelo menos não resolveram abordar Rita Lina
diretamente, o que, para minha alegria, ainda me coloca em certa vantagem.
O problema de estar com eles
também reside no fato de que eu preciso fazer muita força para não deixar vazar
nenhum pensamento oral arriscado. Tipo o de que não me parece inapropriado dar
cabo da vida deles, embora eu tenha plena certeza de que um cara como eu sequer
saberia como traçar um plano básico de assassinato.
“Por quanto tempo vocês pretendem ficar me seguindo?”
“O tempo que for necessário”.
“Pois é... Só que eu tenho que atender um cliente agora, sabe? Não boto
muita fé que ele vai se sentir à vontade com pessoas estranhas. Tipo, eu mesmo
sou praticamente um estranho pra ele. E, sinceramente, como eu explicaria a
presença de vocês se nem eu mesmo entendo direito?”
“Não se preocupe, a gente fica do lado de fora da casa, esperando.
Pretende demorar?”
“O quê?? Isso é sério?? Vocês têm ideia de como isso parece doentio? E
muito, muito inconveniente?”
“Seu prazo estourou, Denner. Bom, por mim eu te daria mais uma semana,
pois você é um cara legal, prestativo e eu pessoalmente tendo a confiar em
jovens com uma cabeleira vasta como a sua, mas a jararaca da Olívia é
‘extremamente profissional’”, explica ele, desenhando aspas no ar ao final
de sua frase. “E por um lado ela tem
razão: quanto mais cedo nós cumprirmos essa missão, mais cedo não teremos mais
de olhar um pra cara do outro. Quero dizer, ela e eu. Você não tem noção de
como eu quero isso loucamente. Portanto, aqui estou”.
“Qual de vocês dois está no comando dessa... missão?”
“Nenhum. O comando da missão vem de outra pessoa. Olívia e eu temos o
mesmo grau de autoridade, nenhum manda no outro. Apesar dela tentar me
controlar o tempo todo, literalmente”.
“Literalmente?”
“É”, ele faz uma careta de nojo. “Ela tem umas habilidades
especiais. Odeio essa cretina!”
“Como assim? Habilidades especiais?”
“Sim. Inclusive ela violou uma das nossas regras e usou essas
‘habilidades especiais’ com aquele menino que atendeu a gente lá na sua casa.
Essa exibida adora fazer uns truquezinhos”.
Continuo balançando a cabeça, sem
entender, o que acaba sendo praticamente a única coisa que eu faço durante
qualquer interação que eu tenha com Pedro ou Olívia. Do que é que ele tá
falando? Olívia fez o que com Lucas? Melhor deixar assim, fazer disso uma
informação desconhecida. Não dizem que ignorância às vezes é uma benção? Além
disso, quanto mais eu troco palavras com Pedro ou Olívia, mais convencido eu
fico de que eles são sim fugitivos de um hospício, e que eu só tô dando azar de
ainda não ter conseguido confirmar isso.
“Vocês vão continuar me escondendo a verdade sobre a missão?”,
pergunto.
“Olívia me disse que ela acabou falando demais naquela noite em que
vocês me encontraram meio alto no bar”.
“Meio alto? Pedro, você tava praticamente no topo do Cristo Redentor
naquele dia”.
A diferença de como me sinto a
sós com Pedro e como me sinto a sós com Olívia é gritante. A tensão até diminui
aqui sozinho com ele. Se fosse o contrário, ela certamente estaria me fazendo
tremer e até me levar a causar um acidente. Troco um olhar com ela pelo
retrovisor e só isso já basta para o estômago dar uma pequena cambalhota,
tamanho o desconforto que ela provoca.
“Ela não falou nada”, retomo a conversa. “Quer dizer, ela comentou que vocês vieram de um outro mundo, algo
assim. E que nesse mundo a Joelma é presidente do Brasil”.
“Verdade. Apesar de ‘outro mundo’ ser só uma maneira de falar”,
assente Pedro, um tanto risonho, talvez se lembrando vagamente do que viu no
bar naquela noite. “Eu só não fiquei mais
boquiaberto porque estava um pouco alterado pelo álcool, então achei divertido,
na verdade. Mas aquela visão da nossa presidente foi espantosa. O curioso é
que, entre tudo que pesquisamos antes de vir pra cá, ignoramos essa informação.
Por isso ficamos tão surpresos”.
“Ok, ok. Você então tá confirmando o que a Olívia disse. Muito bem. Mas
o que exatamente isso quer dizer?”
“Eu, hein, Denner!”, chateia-se ele. “Pra um talentoso escritor de contos, até que sua imaginação é bem
fraquinha, né? Ainda não juntou as peças?”
“Não!”
Abro a boca para agradecer pelo
elogio quanto aos meus dotes literários, mas o celular de Pedro toca o tema de Arquivo X. Ele atende, troca alguns
monossílabos com o interlocutor , desliga e se volta a mim:
“Era Olívia. Mudança de planos”, suspira, como um gamer que tem de interromper uma partida
do jogo num momento emocionante. “Você é
sortudo, viu?”
“O que foi agora?”
“Nossa contratante quer uma audiência com certa urgência, daí a gente
tem que voltar pro apartamento e fazer uma vídeo-conferência com ela. Olívia
mandou te dizer que... hã... ela pediu,
pois ela não manda em mim, pra te dizer que amanhã a gente entra em contato. A
gente te liga”.
“Ué!”
“Quê?”
“Tá bom então. Que coisa estranha!”
“Pessoas estranhas são rodeadas de estranhezas, Denner. Me diga, o que
não é estranho nessa vida? Você já devia ter se acostumado com isso. Pare o
carro”.
Eu paro. Pedro me lança uma
piscadela como se fôssemos amigos, desce do carro e caminha até o Siena, onde
Olívia o aguarda.
Pode algo me deixar ainda mais
intrigado que isso hoje? Dou a partida e sigo meu rumo, recuperando um pouco do
alívio que eu tinha antes deles aparecerem na minha casa.
Quase me esqueci de mencionar.
Não é só o fato de ter um caso novo que está me trazendo certa empolgação. É
que, coincidentemente, o cliente da vez é ninguém menos que um escritor que tem
se tornado meu favorito há alguns anos.
Hektor Casanova é autor da minha
série de livros predileta, Detetives da
Noite, sobre um casal de detetives que só têm tempo de investigar crimes
depois das 21 horas, secretamente, pois durante o dia têm de cuidar de suas
vidinhas ordinárias e sem sal. Já foram lançados oito volumes e eu já devorei
todos, em coisa de uma semana. As histórias misturam ação com drama, comédia,
tudo na medida certa, escritas de forma a prender qualquer pessoa que ponha as
mãos e os olhos nelas. Viciante!
Quase implorei ao Sávio para
pegarmos o caso, mesmo sem ter lido direito o formulário que Hektor preenchera.
Imagina o privilégio em poder atender esse homem que eu praticamente venero. É
uma chance e tanto para, quem sabe, convencê-lo a dar uma lida nos meus contos.
Só de imaginar um cara com o cacife literário de Hektor Casanova lendo os meus
humildes textos, aaahhh... Menos, Denner, menos. Vai com calma. O cara deve ser
ocupadão cuidando de literatura boa de verdade.
Sou recebido por um homem anão
que, pelos trajes, deve ser o mordomo da casa. Uau!! Até nisso Hektor me
surpreendendo, assim como em seus plot
twists de fazer o leitor arregalar os olhos e ficar vários segundos
tentando recuperar o fôlego.
Confesso que tenho um pouquinho
de medo de anões, mas não é por preconceito ou algo dessa natureza. Foi por
causa de um dia na infância, quando meus pais levaram Glenda e eu ao circo. Durante
uma apresentação de uma trupe de anões, dois leões escaparam de suas
respectivas jaulas (que já estavam de stand
by atrás do picadeiro), prontos para atacar os coitados dos anões, que
saíram do picadeiro em disparada, fugindo. Nisso, cerca de nove ou dez anões me
atropelaram do lado de fora. Eu estava voltando do carrinho de algodão doce todo
pimpão e não tive como desviar. Eles ficaram furiosos por eu ter atrapalhado a
fuga deles. Não foi por menos, já que os leões acabaram devorando três dos
anões na fatídica ocasião. Mentira, essa parte inventada eu só incluo para
aliviar a carga dramática que essa história me traz. Aqueles pequeninos pés me
pisoteando e destroçando meu algodão doce... Qualquer criança de oito anos
carregaria tal trauma pela eternidade. Se eu fechar meus olhos, posso rememorar
cada cena, até mesmo o cheiro de grama, tabaco e cocô de elefante do solado de
seus sapatos...
O anão mordomo está me olhando
com uma discreta irritação. Com certeza minha recordação foi outro pensamento
oral que eu poderia ter guardado só pra mim.
“Boa tarde!”, digo, inteiramente desconcertado. “Eu estou aqui pra ver Hektor Casanova.
Temos negócios a tratar”.
“Venha por aqui, o Sr. Casanova o aguarda”.
Seguimos por um corredor ladeado
por canteiros de flores diversas, com direito a uma pequena roseira com alguns
botões em pleno desabrochar. Acho que acabo de ver uma rosa de cor verde, um
verde bem vivo mesmo.
“Sim, você viu uma rosa verde”.
“Que legal! Não sabia que existia”.
“Só porque você vê uma coisa não quer dizer que ela exista”.
Uma coisa que eu decidi pra minha
vida, ainda aos oito anos naquela tarde de verão no circo, foi nunca contrariar
ou discutir com um anão. Traumas de infância são verdadeiros moldadores de
caráter.
Hektor Casanova vem atravessando
uma enorme porta de vidro, trajando uma camisa florida aberta e uma bermuda
cáqui pouco acima dos joelhos, havaianas nos pés, abrindo um sorriso largo e
sincero.
“Então você é o Denner Corrêa!”, ele diz.
Pelas fotos nas orelhas de seus
livros, eu confesso que esperava um sujeito com ar mais soturno, menos
sorridente, tipo um simpatizante de rock gótico
e adepto secreto de práticas vampíricas. Mas não: Hektor consegue dar uma
frustrada nas minhas expectativas de fãs. É um lance comum, eu sei, mas quem
manda a gente se encantar por uma figura imaginária que a gente gosta de criar?
Hektor tem os cabelos castanhos
presos num rabo-de-cavalo, longos, bem-tratados. Barba cheia, óculos de grau
emoldurando um rosto de homem-ogro-que-se-cuida, corpo que deve beirar 1.90 de
altura. Voz normal, nem tão grave e nem tão fina. Pelas minhas pesquisas, ele
já está com 43 anos. Ele anda em passos cuidadosos, quase como se medisse
quantos centímetros andar a cada um. Tem um anel de caveira num dos dedos. Um
resquício da minha imaginação, e me animo por não ficar tão desapontado.
“Obrigado, Bóris. Eu prossigo daqui”, ele agradece o anão mordomo,
fazendo uma leve reverência com a cabeça.
“Odadiuc, rohnes
Avonasac. Etse hemom met oriehc ed odiod orup”.
“Uov ramot odadiuc, Bóris. Odagirbo alep… alep... preocupação”.
“O senhor ainda não aprendeu a falar ‘preocupação’, senhor. É uma pena!
Devo agendar um treinamento para às 22 horas?”
“Às 22 horas não será possível, Bóris. A editora quer fazer uma live comigo no Youtube hoje. Mas, relaxe, eu
prometo que vou treinar mais”, desculpa-se Hektor, enfim tornando-se para
mim. “Vamos, Denner?”
Sigo-o para dentro da casa, sem
disfarçar minha curiosidade:
“Desculpa, Sr. Casanova, mas o senhor e o seu... humm... mordomo...
estavam falando em outra língua?”
“Mais ou menos isso”, ele diz, enquanto passamos pela sala de sua
casa, ampla e aparentemente aconchegante. “Na
verdade ele gosta de falar de trás pra frente, é uma forma de manter a cultura
de seus ancestrais”.
Depois de passarmos pela cozinha,
Hektor me leva até o quintal, onde uma mesa perto de uma piscina de uma água
azul bem convidativa já está posta, nos esperando. Quase morro de susto ao ver
que o anão já está lá, esperando por nós. Só que vestido de mulher, com os
cabelos partidos ao meio e um par de tranças.
“Esta é a Borsana, irmã gêmea do Bóris. Ela cuida dessa parte da casa”.
“Ah, sim”, tento me refazer.
Não sei de onde eu tirei que
poderia ser o mesmo anão. Talvez por não supor que Hektor pudesse bancar uma espécie
de Willy Wonka ao escolher seus empregados.
“Para acompanhar nossa conversa, escolhi torta de cereja e um bom café
preto para acompanhar. Gosta de torta de cereja com café?”
“Pra falar a verdade, nunca comi torta de cereja, mas fico feliz que
vou experimentar”.
“Vai ver que é uma delícia. Borsana tem mãos maravilhosas para tortas,
especialmente esta”.
A anã fala, com uma voz aguda,
porém impregnada de suavidade:
“Rossop ri, rohnes Avonasac? Osicerp raçnad mu ocuop aroga. Suem sép
mamalc rop amu oab ahnicnad”.
“Edop ri, Borsana.
Ecnad omoc amu aob aniraçnad ad atserolf”.
“Saob sarvalap, rohnes. Moc açnecil”.
“Ah, ela também gosta de manter a cultura dos ancestrais”,
constato.
“Não, não. Diferentemente do irmão, Borsana só fala assim porque não
aprendeu nosso idioma. Ela acha essa coisa de ancestrais uma grande besteira. Por
favor, Denner, me dê a honra de cortar pra você o primeiro pedaço da torta”.
“Pois não”.
Poderia argumentar que não é
difícil aprender a nossa língua, já que a que os anões daqui falam nada mais é
que uma versão invertida do português, mas sei lá... Estou tão entusiasmado
pela chance de conhecer meu autor favorito que qualquer preocupação com os
detalhes ao redor se torna desnecessária.
Provo da famigerada torta. De
fato, é uma delícia!!
“Eu não disse que ia gostar?”
“Parece... Uau!! É uma das coisas mais gostosas que eu já comi em toda
a minha vida”.
“Ah, eu sei muito bem o que você quer dizer. Parece que uma bomba
cremosa de sabor inexplicavelmente prazeroso estoura e vai tomando conta das
papilas gustativas, não é? Essa não é uma torta de cereja igual às outras, pode
apostar. Ela vai mexer com sua cabeça. Experimente o café”.
O senhor que manda, chefe. Ainda
mais depois dessa incontestável descrição sobre a torta.
“Nossa!”, exclamo após ingerir o líquido, que escorre quentinho e
encorpado pela minha garganta. A parceria entre esse café e essa torta está
impecável, melhor coisa para me fazer esquecer um pouco de Pedro e Olívia. “Que marca de café é essa? Importada?”
“Que nada, é brasileiríssima. O café é colhido e moído pelos próprios
anões, eles mesmos pisam os grãos, todos os dias às cinco da manhã,
impreterivelmente. Pelo visto, usam uma técnica muito sofisticada, se conseguem
um resultado tão primoroso”.
Eca! Num segundo me vem uma ânsia
de vômito quase incontrolável, e eu me lembro dos pés fedidos que quase
esmagaram meu frágil corpinho infantil naquele circo. Disfarço com um
sorrisinho. A vida tinha de me trazer para perto de anões pisadores, poxa?
Espero que Hektor não tenha alguns leões de estimação, pra variar...
No entanto, apesar dessa
descoberta, não estraga em nada a experiência de beber desse café, que de fato
está magnífico.
“Você tem outros empregados anões, além do Bóris e da Borsana?”
“Não, não. Na verdade, eu não gosto de ter empregados. Eles insistiram
em ficar aqui em troca de aprender costumes urbanos, já que passaram a vida
toda trabalhando em fazendas. E também porque têm um sonho de um dia abrir a
própria casa de entretenimento para anões. A Borsana adora dançar e o Bóris é
um exímio cantor de lambada, apesar de ele adorar um bom e velho jazz”.
“Entendi”.
“E então, Denner? Já leu todos os livros de Detetives da Noite?”
“Sim!! Sr. Casanova, mas que história espetacular! Não sei como ainda
não quiseram fazer filmes ou séries de TV”.
“Verdade, verdade...”, concorda ele, ligeiramente incomodado. “Mas acho que ainda é cedo pra isso. Eu não
simpatizo muito com esse tipo de coisa. Não quero passar pelo mesmo desgosto do
Stephen King com O Iluminado, sabe?
Ele odiou aquela adaptação”.
“Sei...”
“Ah, e por favor, não me chame de Sr. Casanova. Só Hektor já está bom. E
então, o que você tem pra mim? Eu deixei bem claro que seria necessário um bom
conhecimento da saga Detetives da Noite
pra me ajudar a desapaixonar da Laura”.
“Peraí, como? Laura?”
Droga, eu não li o formulário de
preenchimento de cliente. Que incompetência!! Dessa forma, como poderia sequer
tentar impressionar Hektor de que também sou escritor?
“O nome da sua paixão é Laura? Que nem a Laura Palmer, a protagonista de
Detetives da Noite? Legal!”
“Você não leu meu formulário, Denner”, constata ele, decepcionado. “Mas pelo menos você disse que já leu os
oito livros, então não vai ser tão difícil, certo?”
“Acredito que não, mas o que os livros têm a ver com isso?”
“Tem a ver porque eu não estou apaixonado por uma Laura qualquer.
Trata-se da Laura Palmer dos meus livros, Denner”.
Olho para os lados, completamente
perdido com essa nova informação. Eu não acredito que isso estava no formulário
o tempo todo e eu deixei isso escapar por conta da minha tietagem cega. Se eu
tivesse averiguado antes, nem teria me dado o trabalho de vir até aqui, mesmo
morrendo de vontade.
“Algo me diz que você não está brincando”, reluto, enquanto ganho
tempo abocanhando mais um pouco da torta de cereja, seguida de mais um gole do
café “artesanalmente triturado”.
“Ah, Deus sabe como eu queria, Denner”, ele passa a mão pelos
cabelos escorridos, num leve desespero. “Eu
também não sei como isso foi acontecer, mas o que eu podia fazer? Laura Palmer
é uma mulher irresistível. Eu vivo tendo sonhos com ela todas as noites. E
tenha certeza de uma coisa: são os sonhos mais reais que eu já tive”.
“Mas ela é uma personagem, Hektor. Desculpe te desapontar, mas ela não
existe. Só isso deveria ser o bastante pra você se desapaixonar. Um
relacionamento entre vocês é impossível”.
“Eu sei. Mas olha pra mim. Eu pareço desapaixonado pra você, apenas
seguindo a lógica de que ela é uma personagem? Nem mesmo no mais fundo da minha
imaginação eu encontrei uma explicação pra isso. A paixão me pegou na armadilha
mais ardilosa que poderia existir: a crueldade de um relacionamento
inalcançável. Mas eu te entendo. Não deve ser fácil aceitar um desafio como
esse, então vou te dar todo o tempo que for necessário. Ou pode desistir, se a
sua empresa não der conta do recado”.
Começo a rir, mas não de
zombaria. É impossível lidar com esse tipo de caso. Eu nem faço ideia de por
onde começar. Acho que estou é rindo de nervoso mesmo, de otário por viver me
deparando com os clientes e histórias mais delirantes.
“Denner, eu posso garantir que o pagamento vai ser muito bom”.
“Olha, Hektor, o problema não é dinheiro...”
“E não tô falando de dinheiro”.
Intrigado, retruco:
“Tá falando de que então?”
“Eu não só vou pagar o preço combinado para sua empresa, como vou fazer
um favor especial só pra você”, diz ele, piscando amigavelmente,
entrelaçando as mãos. “O que você acharia
de eu ler os seus contos e, de repente, comentar um pouco sobre eles com meu
agente literário?”
Meu Deus, estou ficando sem
fôlego. Uma proposta dessa, não pode ser real.
“Você consideraria me ajudar com a Laura Palmer, Denner?”
“Cara... Você tá falando sério? Tipo, sobre ler os meus contos. Seria
fantástico. Eu sou seu maior fã, Hektor”.
“Denner, eu tenho vários interesses excêntricos, como secar pratos com
os cabelos e fazer fanfics secretas
sobre a Inês Brasil estudando em Hogwarts, mas eu te garanto que eu não tenho
interesse em brincar com o sentimento de um colega escritor”.
Depois dele ter me chamado de
colega, meus ouvidos ficaram surdos ao som da sua voz. Tudo que eu consigo
ouvir agora são estrelas explodindo pela minha cabeça, produzindo um festival
de cores dançantes no céu. Colega! Colega escritor!
Cheio de orgulho, estufo o peito
e digo o que pode me trazer um gigantesco arrependimento mais tarde. Mas que se
dane.
“Hektor Casanova, nós temos um acordo! A Agência do Negócio Nada
Apaixonante aceita o seu caso”.
Saio da casa de Hektor preocupado
com esse tanto de acordos que venho fazendo, mas sem qualquer previsão de como
e quando vou cumpri-los. Por que eu sou assim? Por que sou atraído para coisas
assim?
Mal tive tempo de esquecer de
Pedro e Olívia, o carro deles já está estacionado do outro lado da rua.
“Vocês não iam me ligar amanhã?”
“Precisamos te mostrar uma coisa”, Olívia responde, enquanto Pedro
come uma pera jubilosamente.
“Me mostrar uma coisa?”, repito, o alerta de medo ativado.
“Vem com a gente até o nosso apartamento”, Olívia fala, embora
pareça que é uma ordem.
“Por que não me ligaram pra ir pra lá? Não precisavam ter vindo me
buscar”.
“Você é um cara legal, Denner”, Pedro se pronuncia, entre uma
mastigada e outra. “Só que de vez em
quando você nos evita e parece fugir da gente. Não quisemos correr esse risco”.
“É mesmo, é? Talvez porque seja difícil esquecer que vocês iam me
matar. Olha, eu acabei de aceitar um caso muito bizarro pra resolver, sendo que
eu nem faço ideia de como vou me virar pra solucioná-lo. E tem outra: não
consigo me sentir à vontade com vocês. Ou melhor, até que nem tem tanto
problema de ficar com você, Pedro, mas com a Olívia é tenso!”.
“Adoraria passar o resto da tarde fritando a Olívia com você, mas dessa
vez não vai dar, Denner. Eu vou entrar com você no seu carro e vamos pro nosso
apartamento no edifício Oceânico. Nossa contratante nos autorizou a te dar
algumas... explicações”.
Finalmente uma notícia animadora
em meio a esse turbilhão de emoções tão angustiantes.
Chegamos ao hotel Oceânico,
entramos no elevador e deixamos o silêncio tomar conta da ocasião. Nem acredito
que enfim vou ter uma noção clara do que está acontecendo. Tudo o que espero é
não ficar envolto em mais dúvidas, isso sim.
A porta do elevador se abre,
saímos. Repentinamente, um pensamento grita numa potência aterradora: e se eles
só me trouxeram aqui pra finalmente me matar? Afinal, eles não são cheios de
“truques”? Quem sabe nem precisam mais de mim, se tocaram que eu não sou lá tão
útil como julgavam.
“Larga de frescura e vem logo, que a gente não vai te matar”,
irrita-se Olívia, após ouvir meu pensamento oral, com uma arma em punho. “Bom, pelo menos ainda não”.
“Sua simpatia é irresistível”, replico, fulo da vida.
Dentro do apartamento 815, eles
param diante de mim, como se fossem explicar algo antes de partir para aquilo
que alegaram ter a mostrar.
“Odeio fazer isso, mas nossa contratante pediu pra gente se desculpar
com você”, começa Olívia, e ela dizendo isso é algo infinitamente fácil de
acreditar.
“Por conta disso”, adiciona Pedro, “ela nos autorizou a te mostrar algo que prove que nós realmente viemos
de outro mundo. Quer dizer, não exatamente outro mundo, mas de outra
realidade”.
Fito-os, profundamente
desconfiado. Outra realidade?
“O que vocês querem dizer com isso? Como... Como... Uma realidade
paralela ou algo do tipo? Vocês vieram de um mundo paralelo?”
“Mundo, realidade, universo... Não importa o nome. Mas sim, essa é a
explicação. Acredita na gente?”, Olívia está se deliciando com o meu começo
de estarrecimento.
Por que será que eles estão
soando tão convincentes?
“Esse papo é muito esquisito, não dá pra acreditar, desculpem”.
Pela primeira vez, vejo-os
trocando um olhar de cumplicidade que os faz até parecer melhores amigos do
mundo.
“Vamos”, chama Pedro, tomando a frente e adentrando mais o lugar,
encaminhando-se ao que provavelmente deve ser um quarto.
Ele abre a porta. De fato, tem
uma cama de solteiro, um criado-mudo, um roupeiro modesto. Bom, me parece um
quarto.
“Está vendo essa porta?”, ele aponta para uma porta que, ao que
tudo indica, dá para um banheiro ou algo assim.
“É atrás dela que fica o portal pro mundo de vocês?”
“Não seja ridículo”, debocha Olívia.
Só me resta dar de ombros. Ué,
poderia haver um portal, já que as circunstâncias estão fugindo sem dó alguma
do senso comum.
“Não me culpa, tá? Eu não tenho muitas referências sobre realidades
paralelas, então tô usando o máximo da minha imaginação aqui”.
Pedro abre a porta, enquanto
deixa à mostra um sorriso malicioso para mim, fazendo um sinal com o indicador
para eu me aproximar. Ele diz:
“Dá uma olhadinha nisso, Denner!”
Caminho, temeroso. O ambiente
guardado pela porta não se revela tanto, está privado de iluminação decente,
apenas uma lâmpada bem fraca nos permite distinguir alguma coisa. Com uma das
mãos, termino de abrir a porta, a fim de ter uma visão total.
Nem preciso entrar para ver. Da
soleira, sinto o coração acelerar, praticamente subir até à boca. Não sei bem o
que pensar sobre esse cenário. Isso é verdade? O que estou vendo aqui pode me
convencer do que Pedro e Olívia disseram sobre sua procedência ou, de alguma
forma, armaram para me engambelar?
Não consigo definir. Mas o olhar
que essas duas pessoas nessa espécie de cativeiro me lançam possui um misto de
grito por ajuda e extremo desprezo. Estão em condições sofríveis, mas uma coisa
não dá para negar: não sei como, mas dentro disso que poderia ser um banheiro
estão um homem e uma mulher amarrados e amordaçados, que começaram a gemer e se
debater assim que puseram os olhos em mim.
Nem em mil anos eu poderia
explicar sem que me considerassem um lunático, pois ao meu lado, de pé, estão
Pedro e Olívia me encarando e analisando cada pormenor da minha reação, com ar
de satisfação. Entretanto, há mais um exemplar de Pedro e Olívia mantidos
cativos num cômodo duvidoso no apartamento 815, iguaizinhos aos que estão aqui
pertinho de mim, com a diferença de que estes aparentam ser mais sádicos, além
de não estarem presos e amarrados. Mas mesmo assim... Caramba!! Como pode ser
possível uma coisa tão perturbadora como essa? E, além disso, por quê?
Um comentário:
CÊ TÁ LOUCO MANO!!!! kkkkk
Mas vou dizer uma coisa, mesmo com essa loucura do final ainda assim não consegui entender o que os anãos falam, apesar de ser um "português invertido".
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