(Denner)
Enojado, afasto-me da soleira da
porta do banheiro-cativeiro. A cabeça rodopia sem pena. O que eu acabei de ver?
“Vamos lá pra sala conversar”, Olívia diz, enquanto fecha a porta.
Eu não respondo, mas por dentro
estou agradecendo pela sugestão.
Durante os segundos em que Olívia
fecha a porta, ainda consigo ouvir os grunhidos das duas pessoas idênticas à
dupla misteriosa que anda me enchendo de preocupação.
Sento-me numa cadeira de estofado
e encosto brancos, tentando processar o emaranhado de pensamentos que chovem na
minha mente e a deixam alagada.
“O que... o que...”, gaguejo, paro pra respirar. “O que foi isso? Aquelas pessoas são iguaizinhas
a vocês. Como pode? São tipo uns sósias? Irmãos gêmeos, sei lá?”
“Calma, querido!”, preocupa-se Pedro. “Esse choque inicial é normal, mas a gente vai te explicar”.
“Elas não são nossas sósias, nem ‘iguaizinhas’ a nós”, fala Olívia. “Tecnicamente, elas são nós. A explicação não é simples, mas se você
prestar atenção, vai dar pra entender”.
“Como assim elas são vocês?!”, principio um surto, meneando a
cabeça pra lá e pra cá. “Vocês estão aqui
comigo, de pé bem na minha frente, não estão amarrados, não tem nenhuma mordaça
na boca de vocês. Aquelas pessoas ali... Caraca!! Elas foram sequestradas. Tem
uma mordaça na boca de cada um. Vocês raptaram aquelas pessoas. E do jeito que elas estavam com uns olhões
esbugalhados de susto, tenho certeza que elas queriam minha ajuda”.
“Escuta, Denner, a gente teve que fazer isso”, diz Pedro. “Quando Olívia e eu viemos pra cá, acabamos
nos deparando com as nossas versões deste mundo que, curiosamente, também se
conhecem e mantêm uma certa... hum... amizade. Sim, eu sei, desprezível e
improvável, não é? O problema é que eles também estão por dentro de coisas como
universos paralelos e outros assuntos que a maioria das pessoas considera
fantasiosos”.
“E quando eles perceberam que estávamos por perto”, Olívia continua
contando, “rapidamente vimos que isso
poderia nos meter em alguma enrascada indesejável. Não estamos aqui pra lidar
com esse tipo de coisa, então não poderíamos deixá-los nos atrapalharem”.
“E aí sequestraram eles”, concluo. “Quero dizer, sequestraram a si mesmos”.
“Olhando por esse lado, soa até divertido”, ela comenta, com as
sobrancelhas levantadas.
“Detesto admitir, mas não é que você tem razão?”, Pedro se diverte.
“As curiosas maravilhas de transitar entre os universos”,
deleita-se Olívia.
“Com licença”, digo. “Acho que
as explicações ainda não acabaram, né?”
“Ah, é verdade, querido”, diz Pedro. “Bom, tivemos que sequestrá-los, como você já entendeu, mas assim que
terminarmos a nossa missão, vamos soltá-los. Fomos instruídos a simplesmente
fazer nosso trabalho e ir embora, ou seja, o foco aqui não é trazer à
humanidade a revelação de que a teoria de múltiplos universos está correta”.
“O que seria um grande desperdício, pois esse tipo de informação é
precioso. Todo conhecimento é bem-vindo e libertador”, filosofa Olívia.
“Então vocês estão dizendo que existe mais de um universo, além do
nosso?”
Eles riem, porém não de escárnio.
É como se eu fosse um bebê aprendendo a andar.
“Engraçado”, comenta Olívia. “Quando
você diz ‘nosso’, automaticamente está excluindo a mim e ao Pedro, enquanto
que, pra nós, este universo é que é o ‘outro’, sabe? Como eu falei antes, são
as maravilhas de se transitar entre os universos. Claro que existem vários
pontos negativos imperdoáveis. Por exemplo: como pode o David Bowie estar morto
aqui?”
“Como pode a Joelma ser a presidente do Brasil no seu universo?”,
retruco.
“Mas que audácia!”, ofende-se Pedro. “Pois fique sabendo que do lado de lá, a Joelma é uma mulher extremamente
elegante e fina”.
“Detesto admitir, Denner, mas o Pedro tá certo. Apesar de eu não
concordar com algumas medidas que ela vêm adotando pelo país... Mas a Joelma do
seu mundo, nossa! Não deu pra engolir uma mulher que eu conheço como tão séria
e culta rebolando a bunda daquele jeito, naqueles trajes questionáveis e com
aquela música infernal”.
“Ah, a música até que era gostosinha”, opina Pedro. “E aquele bate-cabelo dela é um arraso,
vamos combinar”.
“Tá, tá, tá. Isso não é o importante aqui”, desconverso, e sei que
meu estado de choque ainda está evidente.
“Então, Denner? Acredita na gente?”, instiga Pedro.
“No momento, acho que sim”, suspiro com certa hesitação. “Que outra explicação existe pra isso? E
ultimamente só têm acontecido coisas doidas comigo, então... sim, eu acredito”.
Então, como um clarão ofuscante,
dou-me conta de um fato:
“Se vocês vieram de um universo paralelo, então a Rita Lina, a minha
amada namorada Rita Lina, é de lá? Essa é a casa dela, que vocês tanto falam?”
Ambos assentem com um breve gesto
de cabeça.
“E estão esperando o quê pra começar a explicar? Se ela é de lá, como é
que ela tá aqui?”
“Bom, Denner”, Olívia assume a explicação, “nós até podemos te explicar essa parte, só que de uma forma indireta.
Tudo que eu posso te adiantar agora é que não sabemos exatamente como ela veio
parar aqui”.
“Ah, essa é boa”, gracejo. “Então
quer dizer que até vocês também têm dúvidas sobre essa missão?”
“A missão não precisa dessa informação”, replica Pedro.
“Assim como a nossa contratante nos autorizou a te mostrar o que havia
naquele banheiro, ela também nos deu outra ordem: nós vamos atrás dos pais da
sua namorada e dar um jeito de convencê-los a nos entregar a Rita. Então, se
você quiser saber da verdade, fique à vontade pra ir com a gente. Lá você vai
ouvir tudo. Mas a partir desse momento, não precisamos mais de você”.
“Não te dá um alívio, Denner?”, indaga Pedro, extremamente alegre. “E a gente nem vai ter de te matar!”
No momento, não estou preocupado
com isso. Agora que sei do que sei (apesar de haver mais perguntas quanto mais
eu penso que sei de alguma coisa), Rita Lina é a única coisa que me importa,
mais até do que a minha própria vida. Por mais que eles não precisem mais me
matar, os problemas estão longe de terminar. Preciso descobrir um jeito de
impedi-los.
Penso tudo isso controlando até
as batidas do coração. Um pensamento oral vazando agora seria meu fim.
(Milena)
Por que uma pessoa se mete na
vida de outra com as intenções mais coloridas e românticas possíveis, só para
destruir tudo que foi construído, sem a menor piedade? O que há na mente de uma
pessoa que pratica esse tipo de ato tão deliberadamente que te faz questionar se
há qualquer resquício de empatia em tal indivíduo?
Quem Ivan Castro é? O que Ivan
Castro é? Um psicopata? Sociopata? Apenas um safado que não consegue segurar o
pinto dentro das calças e precisa seguir cada rastro de feromônio que se
alastra pelo ar? Sempre se ouviu dizer que os homens são todos iguais, mas Ivan
conseguiu se superar a todas as referências de canalhice das quais eu já tomei
conhecimento.
“Tá pensativa hoje, hein”, comenta o pilantra, aproveitando o
aconchego do meu sofá.
Eu sorrio, nota dez em simpatia e
amabilidade. Me aninho em seus braços enquanto vemos uma comédia romântica na Netflix. A hora está se aproximando.
“Quero um pouco de vinho”, levanto-me. “Bebe comigo?”
“Claro, amor”.
Mas é claro que ele bebe. Ele é o
cavalheiro perfeito que não deixa sua dama beber sozinha.
Ele continua fingindo que curte o
filme, apenas para me agradar. Enquanto busco a bebida, me pergunto quantas
outras coisas ele fingiu só para me manter no seu engodo, e me fazendo crer piamente que ele fosse o
namorado mais primoroso do mundo. Rita Lina tinha razão: esse desgraçado tem um
cérebro formidável, lindo. Mas seus dias de ter tudo sob controle estão
findando.
“Amor”, eu lhe estendo um copo com três dedos de vinho.
“Tá bem geladinho, deve estar uma delícia”.
“Guardei pra ocasião certa”, declaro, dando uma piscadela. “Não acredito que ela vai voltar pra esse
cara”, comento, dando uma de revoltadinha pelo andar do enredo do filme,
que eu já deixei de prestar a devida atenção há um bom tempo.
“É assim mesmo”, responde Ivan, dando um generoso gole no vinho. “Esses filmes precisam mostrar que o amor
têm de vencer no final”.
“Ai, sério? Eu não desejo uma história de amor dessas nem pros meus
inimigos. O cara sacaneou a menina o filme quase todo”.
“É só um filme, amor”.
“Hum”, resmungo. “Se um cara
mentisse desse jeito assim pra mim, mandava passear. Ainda bem que eu tenho
você. Amor, a gente nem brindou”.
Ele ri sem-graça (ou da minha
cara, o que é mais provável), me beija suavemente. Na certa, está pensando em
como eu sou otária e ingênua, que ele está me usando como um fantoche bobão.
Será que em nenhum momento bate um remorso? Mesmo que seja um remorso de gente
escrota, que vem e passa mais rápido que uma brisa. Pelo menos, seria algo que
o aproximaria de um humano normal, certo?
“Um brinde a nós dois”, ele diz, usando uma entonação que, em
outras circunstâncias, me derreteria toda. No entanto, hoje tenho a mais clara
certeza de que não passa de um truque. Malditos vampiros emocionais como Ivan
Castro!
“Um brinde a nós dois”, repito, com a serenidade no olhar de quem
já trocou o status de “enganada” no Facebook do meu coração. Esse pensamento
tosco dá até vontade de rir, mas é melhor continuar o jogo da Milena bestinha.
Copo com copo. Está brindado. Cada
um bebe o restante que há de seus respectivos conteúdos. De algum modo, ele tá
sacando que existe algo brilhando diferente no meu olhar. Como se eu fosse uma
Milena diferente. Iluminada, talvez. Esclarecida. Em pleno processo de
desapaixonamento.
“Hoje você tá um pouco mais romântica. Tem alguma coisa aí. O que foi
que aconteceu?”
“Você acha?”
“Tá mais apaixonada por mim, é?”
Aproveito e finjo um riso tímido,
mas por dentro estou gargalhando feito uma louca pela insistência dele em se
achar irresistível. Quando você descobre a verdade sobre uma pessoa, ela se
transforma em alguém praticamente diferente diante de seus olhos. È como se
toda a beleza, todo o encanto e todo o charme que me ganharam tivessem se
dissipado tão logo a máscara caiu. Um pano que cai revelando o homem por trás
da cortina, tal qual Dorothy ao encontrar o mágico de Oz. Não que Ivan tenha
deixado de ser um gato, porém o poder e relevância que isso costumava ter sobre
minhas percepções a seu respeito agora é fraco e vai ficando cada vez mais
fraco. Inofensivo. É como uma fruta que perdeu o sabor e a suculência.
“Tá sentindo soninho, meu bem?”, do nada, pergunto.
“O quê? Como... Como é que você sabe que...”, ele começa a ficar
zonzo, a língua se enrola, o olhar vai ficando anuviado.
“Agora você vai dormir”.
“Dormir? Não, eu não quero dorm... Eu não tô entend... eu... o que
tá...”
“Quando você acordar, seu filho de uma puta, a gente vai ter uma
conversinha bem séria”.
“Milena...”
Ele desaba no sofá, mal teve
tempo de processar minhas últimas palavras. Tive dúvida se exagerei no
calmante, mas acho que a dose que pus no vinho foi apenas grande para acelerar
que ele apagasse.
Preciso me apressar.
Daqui a algumas horas, Ivan
Castro vai ter de lidar com um confronto que vai fazê-lo se arrepender de ter
me conhecido.
(Denner)
O telefone toca. Número
desconhecido.
“Alô!”, atendo, com uma nota de suspeita na voz. É a primeira vez
que percebo, mas acho que sempre faço isso quando o número é desconhecido.
“Alô. Senhor Denner Corrêa, aqui é Bóris, mordomo do escritor
best-seller Hektor Casanova. O patrão manda perguntar se tem novidades sobre o
caso dele.”
Estou na minha sala, na ANNA, e
Sávio está presente, me olhando enquanto me aguarda terminar de responder ao
telefonema.
“Bóris? Ah, oi. Que estranho! Por que o seu patrão não ligou ele
mesmo?”
“O patrão está ocupado escrevendo a avassaladora cena da morte de
Rebecca Vasconcelos pelas mãos de Alfredo Barbosa. Porém, ele me deu total aval
para lidar com quaisquer novidades sobre o caso dele, caso o senhor tenha algo
a dizer”.
“O quê?!”
“O patrão me deu total aval para...”
“Não, não, não! É que você acabou de me dar um mega spoiler sobre o
próximo livro dos Detetives da Noite, Bóris,
só isso”, explico, irônico e disfarçadamente irado. Sujeitinho cretino duma
figa! E eu nem sonhava que o Heitor Barbosa pudesse matar alguém, um homem tão
pacato e distinto. Bom, certamente não deve ter matado Rebecca com a mesma
frieza com que Bóris matou minhas expectativas pelo próximo volume da série.
Sávio está com ar risonho,
decerto tentando imaginar o que se passa na ligação.
“Diga ao Hektor que ainda não consegui resolver a situação dele, tá? Eu
tô tendo de reler toda a série Detetives da Noite pra ver se consigo detectar algo que ajude no caso”.
“Hummm...”
“Algum problema, Bóris?”
“O senhor gosta de lambada, senhor Denner?”
“Oi?”
“Oi, tudo bem? Perguntei se o senhor gosta de lambada”.
“Ahn... Eu... Não sei, nunca parei pra pensar sobre isso... Lambada,
que você diz, é a música?”
“Isso mesmo, a música”.
Desencosto o telefone do ouvido e
olho para Sávio com olhar de total confusão. Ele devolve dando de ombros.
“Olha, Bóris, não sei te responder, sinceramente. Mas por que a
pergunta? Hektor te pediu pra perguntar, foi?”
“Não”, ele começa a cochichar, dando um rumo inesperado de segredo
à conversa. “Mas logo o senhor entenderá
a natureza da minha pergunta. A propósito, como estava a torta de cereja?”
É melhor eu dar um jeito de
encerrar logo essa ligação, pois estou com medo de que ele prossiga com essas
perguntas absurdas. E do jeito que o anão não tem o menor filtro para spoilers, preciso me prevenir antes que
me jogue mais uma bomba que estrague minha experiência de leitura.
“A torta estava deliciosa, Bóris. E o café também. Dê meus parabéns à
sua irmã. Preciso desligar, tô com um cliente precisando de mim. Tchau!”
“Darei os parabéns a ela, Sr. Denner Corrêa. Pode deixar. Mas o senhor
ainda não viu do que essa torta é capaz. Até breve!”
Desligo, um pouco chateado. Chega
de enigmas, droga!
“Dá pra acreditar nisso, Sávio?”
“Quem é esse tal de Bóris?”
“É um anão que trabalha de mordomo na casa do Hektor, o meu escritor
favorito que agora é nosso cliente. Além de me dar um baita spoiler do próximo livro que o patrão dele ainda tá
escrevendo, ficou me enchendo o saco com umas perguntas bizarras. Cara, tô
cansado de ficar cercado de gente doida, viu?”
“Denner, eu não entendo como você foi pegar o caso desse homem. O cara
tá apaixonado pela personagem que ele mesmo escreveu. Você já parou pra
analisar que viagem? Se esquizofrenia e egocentrismo se casassem, essa paixão
seria o filho deles”.
“Eu não sei, Sávio. Perdi o controle da normalidade dos meus dias. Tô
com medo das decisões que eu penso em tomar”.
“Não fica assim, Denner. Não sei se serve de consolo, mas você não é
muito normal também”.
“É”, sou obrigado a concordar. Mas será que devo agradecer? Tá tudo
tão confuso...
“Mas e aí? Continua me falando dos tais Pedro e Olívia”.
Antes de Bóris me interromper, eu
estava contando para o meu chefe todas as coisas que têm me acontecido desde
que conheci Pedro e Olívia. Um tanto receoso, já que eles podem até parecer
(veja bem, parecer) legais, mas há algo de perigoso neles.
“E eu vi, Sávio, num banheiro meio desativado do apartamento deles, a
coisa mais esquisita e inexplicável da minha vida. Pedro e Olívia abriram a
porta e me mostraram Pedro e Olívia sentados no chão, amarrados e amordaçados.
Você tá entendendo? Pois eu não tô entendendo é nada. Tipo, será que essa coisa
de universos paralelos é mesmo possível?”
Sávio prefere se manter quieto.
Espero que não esteja me julgando, afinal ele mesmo afirmara que eu não sou
muito normal.
“Se eles estão ameaçando você e a Rita, por que você não liga pra
polícia?”
“Não sei”, declaro, sem a menor intenção de mudar a situação. “Eu queria poder resolver isso sozinho. Ou
melhor, sem envolvimento de polícia, sem me encrencar, entendeu?”
“Sem se encrencar?”, repete Sávio, e eu não sei se ele está
juntando as peças. “O que você quer dizer
com isso?”. Confirmado: Sávio não está juntando as peças.
Sem dizer palavra, encaro meu
chefe com meus olhos aterrorizados e preocupados. Sou um homem em choque,
pronto a tomar qualquer decisão descabida em nome da mulher que ama e, talvez,
pra manter a própria sanidade.
“Se eu pudesse”, começo a esclarecer, “eu daria um jeito de sumir com esses dois. Eles não podem levar a Rita
Lina embora. E algo me diz que se eles não conseguirem o que querem, vão acabar
apelado pra alguma forma de violência e a coisa não vai cheirar bem. Então,
Sávio, a única alternativa que passa pela minha cabeça é... matá-los”.
“Ok, ok! Agora sim eu acredito”.
“Acredita? Na história dos universos paralelos? Graças a Deus! Pensei
que você tava me achando um idiota”.
“Não!”, exclama Sávio. “Eu
sou um nerd, Denner. Nunca duvidei
desse tipo de coisa. Eu sempre imaginei como seria uma outra versão de mim por
aí, o que essa versão estaria fazendo, se leva a mesma vida que eu... Será que
curte as mesmas coisas que eu? Mas eu não tava me referindo a isso. O que eu
acredito agora é que você perdeu o controle das suas decisões, isso sim.
Esquece essa ideia, você não vai matar ninguém”.
“Mas eu preciso fazer alguma coisa!”, insisto.
“É, mas não cometer um crime, né? Tirar uma vida, já pensou?”
“No caso, duas”.
“Quanto mais vidas, mais tempo de cadeia, meu amigo”.
Com o jeito que Sávio me olha,
notavelmente consegui (embora sem querer) arrastá-lo para a minha preocupação.
“Vou pensar em algo pra te ajudar, Denner. Te juro.”
“Obrigado”, agradeço com resignação, mas sem aquele alívio que
percorre a alma quando se encontra a solução de um problema.
Sávio está certo. Minha
compreensão dos fatos andava tão turva que eu não me dei conta do tamanho da
burrada que seria se eu matasse Pedro e Olívia. Mesmo eles nunca tendo
descartado que poderiam me matar. Entretanto, eu não sou eles. Já existem
versões demais desses dois. E eu não teria capacidade e nem habilidade para
liquidar com alguém. Alfredo Barbosa, de Detetives da Noite, também sempre se
passou por alguém incapaz de tal ato. Devo esperar sair o livro para, de
repente, pegar umas dicas?
Está mais do que claro que eu
preciso manter os pés no chão, focar no mundo real e lidar com as
responsabilidades. Eu só preciso encontrar a melhor solução para essa questão
adversa. Mas o que fazer?
Olho para a escrivaninha, o
volume III de Detetives da Noite marcado na página 58. Só para me lembrar que
ainda tem mais esse abacaxi pra resolver.
(Milena)
Ele acorda. Aos poucos, não de
supetão. Deve estar se sentindo despertando de uma ressaca desgraçada e
injusta, afinal, que sacanagem ficar de ressaca sem nem ter bebido tanto!
Sou a primeira visão que ele tem
quando sua consciência vai se expandindo. Quem o vê desse jeito, indefeso e
frágil, preso por algemas a uma cadeira certamente desconfortável, pode até imaginar
que se trata de um santo pego sem culpa.
“Milena?”
Sua primeira reação é típica e
óbvia de quem foi dopado e trazido para um local ermo, mas ao invés de se
deparar com sequestradores mal-encarados, dá de cara com a namorada. Melhor
dizendo, com uma delas. Sentada numa cadeira melhorzinha, um copo de chá gelado
de pêssego na mão.
“Ivan”, respondo, cortês, sem disfarçar o sorrisinho de prazer.
“O que é que tá acontecendo? Onde eu tô?”
Ele move os braços, numa
tentativa ridícula de confirmar se realmente está preso.
“Desculpa o espetáculo e todo esse drama de algemas, mas... achei que
era a sua cara”.
“Minha cara?”
“Sabe, Ivan”, introduzo, inclinando-me um pouco para a frente, “você provou pra mim que o meu lema sempre
esteve certo. Todo mundo pode ser desapaixonante. Até hoje não conheci uma viva
alma que me convencesse do contrário. Quase você conseguiu, mas nem mesmo você
escapou. E sabe o que eu penso com tudo isso? Que fica cada vez mais difícil
encontrar alguém que não seja”.
“Amor, você pode me explicar do que se trata tudo isso?”
“Às vezes a gente não se atenta pras coisas que estão na nossa cara,
mas é que elas estão tão camufladas em meio a evidências que a gente alimenta. A
gente insiste em fazer vista grossa pra alguns pontos que não harmonizam com a
imagem completa, e é nesses pontos que mora o perigo, porque a gente não vigia,
achando que os outros aspectos compensam essas pequenas coisas. E o irônico
nisso tudo é que eu sempre soube disso, mas só agora eu vim experimentar na
pele essa informação. O fato de você não ter redes sociais, não gostar de que
eu poste fotos nossas nas minhas redes, embora pra um homem como você seria
completamente normal ter conta no Facebook ou no Instagram. Mas não!
Você não pode se expor. Você não pode deixar rastros tão estúpidos que
estragariam essa vida que você adora levar. Ivan Castro! Um homem meticuloso e
preocupado com os detalhes. Parabéns! Você quase conseguiu”.
“O que é isso, Milena?”, para alguém que estava semi-zonzo, agora
está sério até demais.
“Não se faz de bobo pra cima de mim, Ivan. Aja como homem, seja maduro.
Essa sua malandragem já não é mais segredo. E você sabe do que eu tô falando.
Então, pode cortar o papo furado!”
“Amor”, ele volta a adotar um comportamento mais terno, “o que foi que te falaram? Hein? Me viram
com alguma outra pessoa, foi isso? Calma, eu posso te explicar. Não precisava
você ter me trazido pra... Que lugar é esse?”
“É um lugar bem longe da zona urbana. E isso aqui é um antigo galpão.
Eu não te falei que tava dando espetáculo? Pois é! Nada menos para o maior
enganador de todos os tempos. Talvez você sentiu falta de um palco enquanto me
fazia de trouxa e me vendia suas historinhas, então olha ao seu redor: esse
galpão é grande o bastante pra você? Finge que esse aqui é seu palco. Mas com
uma diferença: agora eu sei que você é um ator, meu querido”.
“E essas algemas? E por que me trazer aqui? A gente tava na sua casa,
não tava? Por que não me chamou pra conversar lá?”
Respondo com um fiapo de sorriso.
Numa mesinha à minha frente há um controle remoto, que liga a TV atrás de mim.
Há um pendrive conectado à televisão.
Viro-me para o aparelho, seleciono a função de vídeo, escolho o arquivo e deixo
no ponto de apertar o play.
“Eu não quero mais conversinhas fiadas, Ivan. Depois que você terminar
de ver esse vídeo, eu não quero mais que você finja que não fez o que você fez.
Eu quero conversar com um homem de verdade. Quero dizer, pelo menos um homem
que assume suas merdas, mesmo eu sabendo que depois vai continuar dando um
jeito de se safar. Quando você terminar de assistir a esse vídeo, Ivan, eu
quero que você me respeite da maneira que você jamais me respeitou”.
Ivan se cala. Engole em seco. Seu
semblante inicia um processo de desabamento, ciente de que foi pego.
Dou play no vídeo.
Pouco menos de meia hora depois,
o vídeo termina. Desligo a televisão, volto a me sentar, desta vez com as
pernas cruzadas e o corpo contra o encosto da cadeira. O chá gelado
indefectível na mão, infelizmente já não tão gelado assim.
“Me perdoe”, murmura ele.
Não respondo. Vamos deixar o
animal acossado se desvencilhar da armadilha. Ou se acossar mais ainda.
“O que eu fiz não foi nada legal. Foi um erro. Um grande erro”.
Continuo só analisando.
“Como você descobriu isso? Foi você quem gravou esse vídeo?”
Essa é a preocupação do
cafajeste?
“Eu estou envergonhado”, afirma Ivan, todo solene.
De fato, a metáfora sobre isso
aqui ser um palco cai bem, porque o danado é bem convincente. Se eu me
descuidar, acabo caindo na história de que ele está morto de vergonha. Se bem
que... vergonha e arrependimento não são sinônimos, né?
“Você pode, por favor, falar comigo? Milena?”
“Eu quero saber o porquê”.
“Milena...”
“Eu estava contando os dias por esse momento. Eu não vou perder o
gostinho de ter chegado até aqui. Eu quero saber o porquê.”
“Amor...”
“Milena. O meu nome é Milena. A partir de hoje, sou simplesmente Milena
pra você. E você tá com sorte de eu permitir que você pronuncie o meu nome”.
“Isso parece coisa de adolescente”, ele me critica.
“É mesmo? E é assim que você acha que vai me fazer desistir de arrancar
de você a verdade? Que eu vou tirar suas algemas e deixar você ir embora livre
pra voltar a sacanear outras mulheres?”
“Amor...”
“MILENA!!!!”
Vejo um tremor em seus lábios.
Gritei com ele e o orgulho do bonitão ficou feridinho, tenho certeza. Ele se
recompõe, volta a falar:
“Milena, essas outras mulheres que apareceram nesse vídeo... Eu posso
explicar cada história e como eu fui me envolvendo com elas. Eu não as amo
tanto quanto amo você. Por você eu sou capaz de mudar, de verdade. Se eu puder
ter mais uma chance, por favor. Eu sei que eu posso te provar o que eu tô
dizendo. As pessoas falham, não é? Infelizmente essa é a minha falha, eu cometi
um erro gigantesco. Mas me dá essa chance pra consertar. Caramba, a gente tem
vivido tanta coisa bacana, não tem?”
Relaxo os ombros, amoleço o
corpo. Quase deixo o copo de chá despencar da mão. Penso sobre o que ele está
dizendo. Esse florescimento de novas promessas, o doce tom de voz investido
para fazer dançar na minha cabeça todas essas palavras...
“E quanto a elas, Ivan? Algumas delas são suas namoradas há anos! Eu
sou a mais recente. Como é que você pode me amar mais do que ama a Ágata ou a
Valéria ou qualquer uma das outras?”
“Não é pelo tempo que você tá com alguém que te faz amar essa pessoa”.
“Difícil de acreditar em você”.
“Nenhuma delas é você, Milena”.
“Não adianta tentar me enganar”.
“Enganar?! Por acaso você não vê nos meus olhos toda vez que eu digo
que te amo? Todas as vezes em que estamos juntos? Não consegue perceber no meu
toque, no meu carinho, todas as vezes em que a gente faz amor? Qual é, Milena,
eu sei que você sente aí no seu coração que tudo isso é verdade. Que apesar de
ter errado feio, eu sou um homem que pode te fazer feliz, que tem feito você
feliz, pra ser mais exato”.
“Você me traiu. Eu não merecia isso. Nem as outras”.
“Eu sei, Milena. Mas eu... Nossa!!”, ele suspira. “Eu te prometo pela minha vida que eu vou
consertar essa burrice. Vamos! Por favor! Eu mereço ser perdoado, Milena”.
Tento não piscar para não perder
um só movimento, uma só frase. Ivan é sedutor, hipnótico, cativante. Não é
recomendável enfrentá-lo sem ter cortado totalmente os laços afetivos com ele,
do jeito que eu estou fazendo aqui. No entanto...Tudo que chega a mim são
palavras vazias, com a agilidade de uma faca cega. Meu coração está aprendendo
a se blindar.
“Quer saber, Ivan? Hoje não!”
Ele deixa escapar um olhar de
surpresa quando me vê levantar.
“Meninas!”, eu me viro para trás e grito. Mas imediatamente me
torno para observar sua reação, porque por essa ele certamente não estava
esperando.
Do lado mais escuro do galpão
elas vêm, lado a lado, exibindo fisionomias que variam entre indignação,
tristeza e nervosismo. Fico alternando entre olhá-las se aproximando e
acompanhar a cara de Ivan cada vez mais embasbacada pelo que se configura
diante de seus olhos incrédulos. Quero vê-lo tentando se explicar e argumentar
para seis mulheres traídas juntas.
“Gostou?”, provoco. “Seu time
de namoradas tá completo agora”.
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