(Sávio)
Já deve fazer, sei lá, uns dez
anos que não vejo meu pai. Dar de cara com ele durante uma investigação da
ANNA, nessas condições (no caso, trombando com ele num park buffet infantil, ainda por cima vendo ele vestido de palhaço),
ajuda a deixar minha cabeça numa bela bagunça.
“E aí? E as novidades?”, indaga ele, modelando a voz para parecer à
vontade. Mas não está. Deve estar mais embaraçado do que eu, aposto.
Após o estranho reencontro,
viemos parar nesse botequinho do outro lado da rua do Divertix; um lugarzinho
fedendo a cerveja e fritura e tocando música de alguma dessas cantoras
sertanejas que estão estouradas atualmente. Depois de confirmar minhas suspeitas
de que eles não servem chá gelado por aqui, então tô me virando com uma Coca-Cola mesmo, a escolha mais óbvia
das escolhas óbvias.
Meu pai se chama Samuel e, próximo
dos meus 17 anos, ele e minha mãe resolveram se separar. Não tive muita coragem
de perguntar o porquê, e mamãe apenas me enrolou com aquele papo de desgaste no
casamento e sei lá mais o quê, embora eu soubesse que havia algo mais que ela
preferia esconder. Naquela época, minha vida tava toda zoada e repleta de
problemas adolescentes e o meu coração ressentido e se recuperando da Anna,
além das outras preocupações como vestibular e a quase recuperação que eu tive
de enfrentar em História e Literatura. Escapei por pouco da humilhação de
passar o fim de ano estudando humanas, enquanto até os mais manés da minha
escola já haviam passado nessas disciplinas.
Dominique era um pirralho de seis
ou sete anos de idade, e pouco sentiu o impacto do desaparecimento repentino do
pai. Dói pra cacete admitir, mas deu até inveja dele por causa disso.
Após a separação, chegamos a nos
falar com certa frequência, saímos juntos algumas vezes, até que o contato foi
diminuindo e... Pluft! O cara sumiu. Meu pai não deu mais notícias, não
apareceu, não telefonou, não surgiu do nada entre “as pessoas que eu talvez
conheça” no Facebook... Por um tempo, isso foi como o efeito de uma comida que
não caiu muito bem e tudo que restou foi aquele mal-estar. De repente, tive que
entrar na vida adulta na marra, sem aqueles toques maneiros que um pai pode dar
ao filho. Não foi exatamente uma experiência legal. Porém, minha mãe estava
ali, firme e forte. E, apesar de eu nunca ter engolido suas razões de ter se
largado do meu pai, aprendi a respeitar o espaço dela e as decisões dela. Se a
coroa optou por levar a vida assim, quem sou eu pra interferir?
Mas o sumiço do meu pai... Isso
até hoje tá entalado na garganta. Depois que me resolvi a respeito do real
motivo de Anna ter acabado o namoro comigo, a questão com o velho saltou
imediatamente pro topo da minha lista de “pendências emocionais a serem
resolvidas”.
“Faz um bom tempo, hein!”, despejo, ignorando a pergunta trivial
sobre as “novidades”.
Meu olhar salta sobre a mesa que
estamos dividindo no boteco, indo atingi-lo com um certo nível de amargura e
desdém (essa parte, confesso, é por causa da maldita roupa de palhaço que por
algum motivo ele ainda está usando; pelo menos removeu a maquiagem).
“É verdade...”, ele concorda, sem graça.
O dono do boteco, um sujeito
muito magro e de bigode vasto, se aproxima:
“Oh, Loló! Não vai querer nada mesmo?”
“O de sempre, Lobato”.
“Ah, por favor”, peço a palavra, com um dedo levantado. “Será que daria pro senhor abaixar essa
música da Marília Mendonça? Só um pouquinho”.
“Tudo bem”, responde o tal do Lobato, todo boa-praça. “Mas essa aí na verdade não é a Marília, é a
Julinha Cowgirl. É que as vozes dela são um pouco parecidas mesmo. Eu sou muito
fã dela. Olha lá!”
Dirijo meus olhos na direção que
ele aponta, um pôster na parede atrás do balcão, que exibe uma mulher
consideravelmente feia segurando um violão de um jeito que tenta ser sedutor à
força, mas que não convenceria nem um homem vesgo bêbado depois de uma festa.
“Ela é bastante estranha, tem uma cara de homem”, comento, mas
Lobato já está cuidando do “de sempre” do meu pai, e eu apenas fico esperançoso
de que ele abaixe logo o volume dessa sofrência insuportável. Tô quase
desenvolvendo um par de chifres à medida que a tal Julinha Cowgirl entoa seus
refrões desconsolados.
A sós outra vez com meu pai,
pergunto:
“Sério que ele chamou o senhor de Loló?”
“É o meu nome de palhaço, eles me conhecem assim por aqui”, ele dá
de ombros.
É, faz sentido. Ou melhor, “faz
sentido”, mas só pelo fato de que minha cliente Aretha tinha um nome artístico
parecido lá no Divertix, então noto que é um padrão que sugere a ideia de uma
“família de palhaços”. No entanto, pelo menos o nome que Aretha usava, Lulu, é
bem mais fofinho e não lembra um entorpecente.
Dois minutos aqui e não tá
parecendo que vai dar certo...
“Eu teria trocado de roupa, mas só me concederam uma hora de intervalo,
então eu vim assim”, explica-se. “Espero
que não se importe”.
“Se o senhor não me der uma tortada na cara, já tá ótimo”, brinco
sem sequer dar um sorriso, mas isso claramente vem do meu péssimo hábito de
brincar em momentos que estou lidando com o nervosismo. “Tô admirado que eles lhe deixaram sair no meio daquela agitação toda”.
“É, esse emprego não é fácil”.
Lobato volta com uma caixa de
suco de caju e um copo com bastante gelo, despejando logo em seguida o líquido
dentro dele. Suco de caju! Até hoje o seu Samuel não perdeu o costume... Por
mais estranho que possa parecer alguém beber suco num boteco. Pelo menos parece
que nesse tempo em que passou desaparecido, meu pai não se tornou um
alcoólatra.
Depois que Lobato se afasta
novamente, desisto das amenidades e paro de fingir que não existe um abismo de
dez anos entre nós.
“Por que o senhor sumiu?”
Ele dá uma boa golada no suco
antes de me olhar, suspirar e dizer:
“Porque eu sou um merda”.
“Ah, corta essa!! Não mascare desse jeito tão generalizado. Eu mereço
explicações e o Dominique também”.
“Mas é a verdade!”, rebate ele. “Exemplar
é que eu não sou, não é?”
“Não, mas também não dá pra resumir tudo ao redor de uma mesa de boteco
apenas dizendo que é um merda. Eu fiz 30 anos recentemente, e o senhor já tem
mais de 50, então somos dois homens adultos que podem ter uma conversa franca”.
“Desculpa, Sávio, você sabe que eu nunca fui muito bom com palavras e
explicações...”
“Nem o senhor e nem a mamãe, pelo visto...”, comento, em tom de
rancor.
“Como assim?”
“Ela nunca me explicou direito a separação de vocês”.
“O que ela te disse?”
“Faz alguma diferença?”
Ele parece ofendido, baixa a
cabeça por um instante e bebe mais suco.
“Você tem toda a razão de me odiar”.
Não dá pra acreditar na falta de
maturidade desse homem. Droga, em momento algum até então eu mencionei ódio.
Ressentimento não é ódio. Mágoa não é ódio. Eu só quero uma porcaria de uma
explicação! Eu tenho esse direito, não tenho?
“O senhor não é muito bom com as palavras, mas é muito bom em fugir,
não é? Tenta transformar a conversa num drama e assumindo o papel do vilão, em
vez de tentar acertar as coisas”.
Me pego esquadrinhando sua
aparência atual. Não houve muitas mudanças em dez anos, exceto por algumas
rugas novas, um semblante mais cansado do que eu costumava me lembrar e a
notável queda de cabelos, de onde, aliás, Dominique puxou as madeixas alouradas.
Mas os cacoetes de quem está envergonhado porque foi pego fazendo besteira
permanecem intactos, desde os tempos em que ele ficava sem-graça quando mamãe o
flagrava assistindo hipnotizado à banheira do Gugu. Mas eu não boto muito fé de
que algumas bundas empinadas e ensaboadas em close nas tardes de domingo tenham sido o pivô do fim do casamento.
“Me diz uma coisa, Sávio. Se você quer acertar as coisas, então isso
significa que não me odeia? Mesmo depois de eu ter desaparecido sem dar notícias
nos últimos, o quê, cinco anos?”
“Dez”, corrijo-o, achando ridículo que ele seja capaz de errar o
tanto de tempo que faz.
“Isso, isso, dez. Parece que números também nunca foram meu forte. Bem,
enfim... Eu estou aqui na frente de você agora, um rapaz bonito, bem arrumado,
que fala bem... Eu olho pra você e tudo que eu consigo enxergar é a grande
burrada que eu fiz. Tô com muita vergonha de você”.
“Eu sei”, dou uma amaciada no tom, pra ver se ele desembucha algo
útil. “Mas já que estamos aqui, podemos
conversar e ver no que dá”.
“Tem razão. Mas antes de mais nada, você precisa saber que eu estou
morrendo de vergonha”.
“O senhor já disse isso”.
“É, eu sei, eu sei...”, percebo que ele não consegue parar de me
enrolar e se enrolar. “É que eu não sei
como começar. Não tem explicação, eu acho. Quero dizer, quando vi que você e o
Dominique estavam crescidos, pensei que eu não fosse mais tão importante assim
na vida de vocês”.
“Quando o senhor sumiu, Dominique nem bem devia ter uns 10 anos”,
argumento. “E nem me venha com essa
história de ser ruim com números, porque dá pra olhar pra uma criança e
perceber que ela é uma criança”.
“Tem razão, Sávio. De qualquer forma, eu achei que eu não poderia ter
mais nenhum papel importante na vida dos meus filhos e que vocês iam se
encaminhar bem, já que a Lola vinha fazendo um bom trabalho”.
“O senhor tava errado”, respondo com amargor, mesmo sabendo que
talvez ele não vai entender o quanto eu precisei de sua presença por perto. A
maldita coca acabou antes do previsto, a garganta começa a ficar seca numa
velocidade absurda.
“Pois é”, concorda meu pai, contraindo os lábios. “Infelizmente eu demorei muito a perceber
isso. E quando percebi, achei que o meu tempo de consertar tudo já tinha
esgotado, então deixei simplesmente a vida acontecer”.
“É mesmo? E quando foi que o senhor percebeu?”
“Vários anos atrás. Eu cheguei a abrir uma conta naquele Facebook e
procurei por você e pelo seu irmão, então vi umas fotos de algum natal de vocês
juntos, sorrindo, unidos como uma... família. E me senti mal pra caramba.
Culpado, na verdade”.
“Por favor, Lobato!”, faço sinal para o dono do lugar, dando a
entender que preciso de outra coca.
Meu pai continua:
“Eu não cheguei a adicionar vocês no Facebook porque o amigo que me
ajudava a mexer com essas parafernalhas tecnológicas acabou se metendo numas
enrascadas e teve que fugir pra não ser pego pela polícia, sabe. Até hoje não
sei como usar aquela geringonça direito, então nunca mais entrei na conta. Mas
enfim, não tô querendo me justificar. Nada justifica a minha covardia de ter
ido embora sem dar a menor satisfação a vocês”.
“Tá aí uma palavra bastante correta que o senhor usou: covardia. Sabe,
eu não tenho filhos e tô bem longe de ter algum, mas o que eu entendo a
respeito de relacionamento entre pais e filhos é que, não importa quantos anos
seu filho tenha ou o quanto encaminhado ele pareça estar na vida; não se deixa
um filho pra trás. Não se deixa um filho carente da presença e do apoio de um
pai. Não se deixa um filho privado de um simples contato, uma ligação, uma carta,
qualquer forma de comunicação. Isso é uma coisa muito cruel”.
Seu Samuel encara o meu rosto
como alguém que ouve um diagnóstico macabro de um médico, isto é, com a atitude
de quem está diante de uma verdade impossível de contestar, inegociável. Desde
a hora em que nos deparamos no meio da bagunça no Divertix, essa tristeza
assombrosa não desgruda da cara do meu pai. Posso ter todas as razões do mundo
para guardar mágoas dele e de ter desenvolvido um ou outro trauma relacionado a
isso, mas o homem de fato está morto de vergonha, e até em mim isso está
gerando um certo constrangimento. É quase como se ele fosse um deficiente
mental que não tem culpa dos atos e tudo o que lhe resta é inocência.
Entretanto, como é duro dar o
braço a torcer e fingir que nada aconteceu e perdoar. Como é difícil! Parece
que eu estou revivendo os dias árduos do início dos meus vinte anos, tendo de
se virar para ingressar nessa selva que é a vida adulta, quando eu imaginava
que não seria lá tão complicado como as pessoas davam a entender, mas me
enganei lindamente e tomei várias vezes naquele lugar.
“Sávio, eu sei que eu não mereço”, ele diz, enquanto lágrimas
começam a escorrer, “mas tudo que eu mais
desejo nessa vida é que você e o Dominique me perdoem. Eu sei que eu não
mereço, eu sei muito bem disso”.
“Você tem que pedir perdão pra mamãe também”.
Lobato traz a segunda Coca-Cola, deixa-a sobre a mesa, percebe
a tensão mas se retira educadamente. De bônus, faz o maravilhoso favor de
desligar o som e calar a voz irritante da cantora de quem eu nem me lembro mais
o nome. Não hesito em dar um longo gole pra me abastecer de saliva e deixar de
parecer que estou com medo de verbalizar tudo que sempre quis. Sempre que você
puder contar a alguém tudo o que sempre desejou, não hesite, porque as chances não
estão todo dia a seu dispor.
Quando menciono mamãe, o
semblante envergonhado dele é levemente alterado.
“Filho, veja bem”, ele toma um ar de quem vai discordar. “Eu não tenho nada contra a Lola e de todo o
meu coração eu quero que ela seja muito feliz, mas pra ser sincero, aquele
casamento não tinha como dar certo, desde o início. Sua mãe nunca me amou”.
“Mas vocês tiveram dois filhos!”, protesto, em seguida me dando
conta de que ter dois filhos não significa, de fato, amar a pessoa com quem
você tem esses filhos.
“Sim, sim, eu sei. Mas é que as coisas são muito complicadas quando se
trata de relacionamentos, ainda mais casamentos. Olha, Sávio, casamento é uma
das escolhas mais equivocadas que um ser humano pode fazer. As chances de darem
erradas são muito grandes, e tudo é bem pior quando você se dá conta de que
sabia que podia dar errado desde antes de se casar.”
“O que o senhor quer dizer?”
Perguntei, mas meu coração está com
medo da resposta. Eu, um homem de 30 anos de idade, temendo feito um garotinho
que se embrenha numa floresta escura. Será que ele vai me contar o verdadeiro
motivo do divórcio? Será que eu vou saber lidar?
“Sua mãe gostou de mim por um tempo, por assim dizer. Mas amor mesmo...
Bom, eu sabia desde os tempos de namoro que o coração dela sempre foi de outra
pessoa. Eu tentei por todos os anos do meu casamento com a sua mãe ver se dava
um jeito de fazer ela esquecer aquele convencido metido a intelectual do Marcos
Kerber!”
“QUÊ?”
“Marcos Kerber”, repete ele, sem disfarçar um pouco do desprezo
aparentemente preservado todos esses anos. “Inclusive,
ele foi seu professor no Santo Cristo, só não me lembro a matéria. Não me
admirava que ela adorasse ir buscar suas notas na escola sempre que tinha
aquelas reuniões de pais e mestres”.
Acho que vou vomitar o
refrigerante. Meu pai, esse homem que eu não vejo há uma década e que foi um
dos grandes responsáveis pela minha desconfiança dos seres humanos em geral,
este homem aqui na minha frente, está dizendo que a minha mãe arrastava uma
asinha pro pai da Milena?!
“O senhor tem certeza do que tá falando?”
“Claro! Pode perguntar pra ela. Pouco antes de me conhecer, a Lola teve
um namorico com esse cara. Parece que ele a convidou pra sair uma vez, eles
dançaram e se beijaram. Assim ela me contou. E não sei se você já teve essas
convicções bem fortes, mas essa foi uma que eu tive. Eu olhava pra Lola e só
conseguia enxergar no olhar dela que aquela lembrança do Kerber ainda estava
lá. Até que um dia nós tivemos uma discussão feia e eu joguei na cara dela que
eu sabia que ela nunca tinha esquecido o sujeito e, bem, ela não negou. Na
verdade, acho até que ela ficou prestes a confirmar o que eu disse, mas na hora
acho que ela quis me poupar”.
“Vocês se separaram porque o senhor tinha ciúmes de uma paixão antiga
da mamãe? Inacreditável!”
“Sávio, uma paixão não é antiga se ela ainda permanece viva dentro da
pessoa. Por mais que você não esteja se relacionando com essa pessoa de quem
você ainda gosta, o seu coração está completamente tomado e ocupado por ela. Eu
não tinha a menor chance. E em vinte e poucos anos com a Lola eu nunca fui
páreo pro Marcos Kerber. Até hoje não sei se foi o sotaque gaúcho ou aqueles
olhos, cada um de uma cor diferente. Ou talvez ele fosse mais carinhoso,
gentil, sei lá...”.
Essa última parte ele se esforçou
muito pra deixar sair, porque a voz já está ficando bem embargada. Nessa teoria
maluca do meu pai, que ele crê com a mesma certeza de que dois mais dois são quatro,
reside um coração bastante machucado. Se com razão ou não, é outra história.
Porém, minha mente já está ficando enlouquecida se tudo isso for verdade. Minha
mãe, com uma história de amor jamais revelada envolvendo o pai da Milena?! Não
dá pra medir o quanto isso é de explodir minha cabeça, ainda mais quando paro
pra pensar que sempre tive o maior carinho e admiração pelo melhor professor de
Literatura que já passou pelo Santo Cristo.
Essa convicção do meu pai “ajuda
a explicar” por que minha mãe passou por um período de depressão, que eu acabei
descobrindo depois de fuçar uma conversa entre o Dominique e Cibelle, a
cantorinha desafinada da igreja dele. Seguindo a lógica dessa ideia do meu pai,
minha mãe se sentiria culpada por meu pai ter nos abandonado, em vez de ter
sido sincera com ele a respeito de seus reais sentimentos, ao mesmo tempo em
que deveria ter lutado para manter a seu lado um homem que se esforçou em amor
e respeito ao longo de pouco mais de vinte anos. Tanto ela quanto meu pai tem
vivido imersos na mais pura culpa, sofrendo por não terem sido capazes de
administrar as próprias escolhas.
Outro ponto assustador é a
obsessão de minha mãe em dizer que Milena e eu um dia casaríamos. Será que isso
não passava simplesmente de uma projeção do seu próprio desejo de ter ido mais
longe em sua relação com Marcos? E a Milena, será que ela sabe disso? Muito
provável que não.
Esse tempo todo eu tenho
trabalhado para eliminar a paixão dos corações dos meus clientes, mas na minha
própria família alguém teve um casamento arruinado porque em sua época nunca
existiu uma ANNA para lhe dar uma mãozinha.
Meu Deus, por que toda essa
loucura tem de fazer tanto sentido?
“Mas como eu disse, filho”, meu pai prossegue, “tudo o que eu mais desejo é que você e seu irmão me perdoem. Será que
um dia isso vai ser possível?”
Respiro fundo. Depois dessa chuva
de segredos inimagináveis, conceder o perdão não me soa mais tão improvável.
Certas histórias precisam ser enterradas, e você precisa ter o cuidado de não
ser enterrado com elas.
Até que, examinando os detalhes
da roupa de palhaço do meu pai, tenho um estalo: Aretha, minha cliente, onde
quer que esteja, está precisando dos meus serviços. E agora não posso deixar
minhas questões pessoais e familiares interferirem. Afinal, se agora eu sinto
dó da minha mãe por ela nunca ter tido a chance de contar com uma ANNA e salvar
seu casamento, eu ainda posso ajudar a salvar algumas vidas. Positividade!
“Eu vou precisar da sua ajuda primeiro”, respondo.
Quem sabe agora não é a hora de
pai e filho fazerem algo juntos, mesmo que pareça tarde demais para reatar os
laços.
Depois de arrancar sutilmente
algumas informações do meu pai a respeito do Seu Mathias, marquei um encontro
imediato com Aretha para o mesmo dia. Apesar da cabeça toda chacoalhada com o
reencontro com meu pai e as bombas que ele me jogou no colo sem eu sequer estar
prevenido, eu estou decidido a pôr um fim no caso da palhacinha Lulu e seu
ex-patrão de caráter duvidoso.
“Pode falar, Sávio, estou preparadíssima!”, ela me diz, enquanto se
senta de frente a mim na minha sala na ANNA.
Aretha é muito fiel aos seus
princípios de ser uma pessoa positiva, mas diante do que eu vou lhe contar
agora, até quando conseguirá se manter com essa visão de mundo?
“Bom, eu não registrei fotos nem vídeos, mas acho que consegui algo bem
melhor. Tive acesso a informações privilegiadas de gente lá de dentro”.
“Ótimo!”
“Você deve saber quem é o palhacinho Loló, certo?”
“Claro! Era um excelente palhaço. Tirando uma vez que eu o confundi com
o palhacinho Lelé e joguei spray de
pimenta na cara dele, nossa relação era muito harmoniosa”.
“Então... ele é meu pai”.
“Nossa! E por que não me falou que seu pai trabalha no Divertix?”
“Na verdade, Srta. Marques, eu não sabia... Mas vamos deixar isso pra
lá... Então, conversei com meu pai sobre o seu ex-patrão e consegui descobrir
coisas a respeito da sua demissão”.
“Certo. E isso vai me ajudar a me desapaixonar do Seu Mathias?”
“Aí é que está, Srta. Marques”, aviso. “Parece que o Bento Mathias deixou escapar para alguns funcionários do
parque, incluindo meu pai, que a melhor coisa que ele havia feito foi se livrar
de uma... Bom, ele usou essas seguintes palavras: mulherzinha preguiçosa,
inútil e oferecida. E, segundo meu pai, ficou mais do que claro que ele estava
se referindo à senhorita. Alguns funcionários aproveitaram a deixa pra comentar
que, se soubessem que a senhorita era tão ‘fácil’, teriam investido”.
“Sério?”, ela se surpreende, apesar de não parecer tão abalada.
“Sim. E eu lamento muito por ter que lhe contar essas coisas, mas foi a
melhor maneira que encontrei de lhe ajudar a quebrar a ilusão. Essa é a visão
que o Bento Mathias tem da senhorita, e o pior é que ele acabou manchando a sua
reputação pra todo mundo”.
“Nossa...”
É agora que a positividade vai
desmoronar, tenho certeza. Ninguém sobrevive a esse tipo de ataque. Nem Dalai
Lama, do alto de seu pacifismo, engoliria tamanha difamação numa boa, e na
certa desferiria um soco bem no queixo de seu difamador. Ou, no mínimo,
escreveria um tweet arrasador que
logo seria propagado pela web e
culminaria numa treta explosiva.
“Detesto perguntar isso”, digo, “mas
o que a senhorita pensa de tudo que eu acabei de dizer?”
“Ah, é lamentável, definitivamente”, declara ela. “Mas desde que eu aprendi a lidar
positivamente com tudo, não vou deixar isso abalar quem eu sou. Mais cedo ou
mais tarde as pessoas pagam pelo que dizem ou pelo que fazem, não é mesmo? O
universo trata de consertar as coisas”.
“Concordo”.
“Não vou mentir que tô me sentindo muito injustiçada por ter sido
chamada de preguiçosa, sabe... Depois de ter sido praticamente escrava do
entretenimento infantil por um salário tão mixuruca...”
“Tá vendo? Você tá começando a deixar a realidade te convencer de que a
paixão por um homem desses não vale a pena”.
“Uau!”, exclama ela. “Você
sabe mesmo como deixar um cliente impressionado com os podres que consegue
descobrir sobre uma pessoa. Eu não esperava isso do Sr. Mathias. E pensar que
eu fico com pena toda vez que me lembro da história do Pica-Pau... Mas enfim,
né? Tenho certeza que depois de saber disso, a visão que eu tinha dele vai
mudar completamente. Mas eu vou sair bem dessa, disso não tenho a menor dúvida”.
“Também fiquei sabendo que a história do Pica-Pau era lorota. Na
verdade o Mathias é filho de pai fazendeiro e com uma bolada que recebeu do
pai, abriu o Divertix e outros empreendimentos. Essa história de um cara
lascado que um belo dia voltou pra casa com a fantasia de Pica-Pau e acabou
apanhando de bandidos foi tirada de um ex-funcionário do Divertix, a quem ele
obrigava a contar a história só pra poder rir e zombar como se não houvesse
amanhã. Seu Mathias é um sujeito com um coração muito malvado, pior até que o
Zeca Urubu”.
“Que coisa horrorosa!”, lamenta Aretha. “E eu caí que nem uma patinha nessas histórias”, ela ri. “Pelo menos agora a experiência no parque me
fez ver que eu posso até mesmo começar meu próprio negócio de entretenimento
pra crianças. Eu tava pensando em abrir uma escola para formação de
palhacinhos. Já pensou? Eu podia ensinar aos pequenos a bela arte de
proporcionar diversão às pessoas. Posso te convidar quando inaugurar?”
Essa não!! O mundo não precisa de
inutilidades dessa natureza. Mas me reservo a simplesmente ser cordial:
“Claro”.
“Legal. Porque eu tenho certeza que vai ser um sucesso!”
“Sei”, digo, com um sorriso. “Esse
lance de positividade te faz bem mesmo, hein!”
“Sempre, meu querido”, confirma ela, com uma piscadinha.
No dia seguinte, voltei ao
Divertix. Ele não estava esperando por mim. E eu não estava esperando que ele
viesse me receber sem a roupa de
palhaço.
“Pedi demissão”, ele explica. “Na
verdade, depois de ter te contado aquelas coisas ontem, decidi que não vale a
pena ser funcionário de um cara maldoso como o Seu Mathias. Ele só quer saber
de explorar a gente. Tô fora”.
“Mas com o que o senhor vai trabalhar agora?”
Ele nota em mim a preocupação.
Afinal, ninguém gosta de descobrir de repente que o pai tem um trampo bem
humilhante como palhaço, então se nem mais isso ele tem, o que viria em
seguida?
“Vou espalhar uns currículos por aí. Fiquei sabendo que tem uma empresa
precisando de ‘homens maduros’ como acompanhantes de pessoas solitárias em
bailes de bolero e coisas assim. Vou arriscar uma chance. Tô bem empolgado, sabe”.
“Legal. Tomara que dê tudo certo”.
E eu noto nele a apreensão. A
expectativa.
Com a cabeça, faço um sinal para
nos afastarmos dali.
“Você perguntou aquilo pra sua mãe?”
Nego com a cabeça.
“Decidi que vou deixar essa história de lado por enquanto. Não é o tipo
de coisa com a qual eu gostaria de lidar no momento porque, pra ser bem
sincero, eu ainda tô meio assustado”.
“Certo...”
Paro de frente a ele, encarando-o
com seriedade. Sem dúvida, aparenta estar mais respeitoso sem a fantasia.
“Olha, pai, eu... Eu perdoo o senhor”.
O sorriso que ele abre e o brilho
que se destaca nos seus olhos não deixam dúvida de que ele estivera ansiando
por isso. E aqui, neste pequeno instante com um monte de pormenores a serem
levados em conta, aprendo com meu pai o que significa perdoar.
“Obrigado, meu filho”.
Abro os braços e o deixo se
aconchegar a mim, permitindo que possamos matar a saudade ao invés de ficar
enumerando todas as coisas que ele está me “devendo”. Perdoar é se sacrificar.
É abrir mão do seu direito de ficar triste, zangado, magoado, e permitir ao
outro que, mesmo sem direito algum, possa desfrutar de um pedaço bom do seu
coração, aquele pedaço que pode ser dividido entre vocês dois e que gera paz
entre as partes.
Atravessamos a rua juntos, indo
parar novamente naquele boteco onde ele provavelmente vai pedir mais suco de
caju. Sob a condição de que eu contarei a ele melhor sobre meu emprego tão
inusitado, e de que em breve ele terá um encontro com Dominique (tendo a mim
como um preparador deste terreno), tenho a sensação de que estou ganhando um
selo na minha carteirinha da maturidade. Sávio Miranda alcançou uma brilhante
performance na difícil arte de perdoar hoje.
Às vezes a melhor coisa que você
pode fazer é dar uma chance à positividade. Valeu, Aretha!
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