(Denner)
Luzes se acendem. De repente,
estou acordado, os olhos se acostumando à claridade, porém um dos cantos do
quarto se mantém escuro, estranhamente. A cama e os outros objetos sumiram, e
eu estou sentado numa poltrona de couro preto, bastante confortável. Estou de
terno, o que é muito incomum, já que eu nem sequer tenho um. Meus cabelos estão
molhados, penteados pra trás, como eu mesmo jamais vi. Um cheiro paira no ar.
Café? Além disso, há outro aroma, algo mais frutado, delicado.
Por algum motivo desconhecido,
sei que este é o meu quarto, mas estou tão lúcido que nem me sinto num sonho.
Tudo ao redor está diferente; o chão, as paredes e o teto estão pintados de
listras brancas e pretas, ajustadas em ziguezague, sobrepondo-se umas às
outras.
Ao lado da minha poltrona,
identifico o que atrai meu olfato. É café mesmo. Quentinho, com a fumacinha
cheirosa subindo da xícara farta. E tem um generoso pedaço de torta, com uma cara
apetitosa. Parece com aquela torta de cereja que eu experimentei na casa do Hektor
Casanova...
Num crescendo, um som
característico de lambada invade o ambiente. É impossível não saber que se
trata de “Chorando se foi”, daquele antigo grupo Kaoma, só pelos acordes
iniciais. Mas quem é que sonha com lambada? Bom, sonhos não fazem sentido.
E o tal canto que estava escuro
ganha luz, como se um holofote só para ele tivesse sido aceso. Uma curiosa
figura de baixa estatura está dançando a lambada, com graciosidade e... hã...
um certo esforço de sensualidade, talvez? Pelo menos essa deve ser a intenção
da pessoa. Já vi essa anãzinha antes. O nome dela é Borsana. Outro suposto
holofote se acende a mais ou menos um metro de distância dela. Seu irmão gêmeo
Bóris é quem está assumindo o vocal da performance, com igual entusiasmo (e um
surpreendente grave na voz bem gostoso de ouvir). Eu estou sorrindo, não sei o porquê.
Assisto a tudo no estado mais pleno de paz. Arrisco até a dizer que estou tendo
um momento muito divertido, balançando a cabeça levemente enquanto me deixo
apossar pelo ritmo envolvente da lambada.
Chorando estará ao lembrar de um amor
Que um dia não soube cuidar...
Do mais profundo das minhas
lembranças, me vem uma conversa que tive pouco tempo atrás com Bóris, e me
recordo dele me indagar se eu gostava de lambada. E agora, me deparo com isso.
Como as duas coisas podem estar conectadas? Sonhos não fazem sentido, mas o
ruim é quando eles fazem ainda menos sentido ao trazerem referências que nem na
realidade a gente entendeu.
Canção, riso e dor, melodia de amor
Um momento que fica no ar...
Por que estou sonhando com os
anões serviçais de Hektor? Eu tenho trauma de anões, todo mundo conhece a
história; a julgar por essa referência, o mais correto seria dizer que estou
num pesadelo. E por que isso parece tão real?
Como é que eu sou capaz de saber que isso é um sonho?
Bóris para de cantar e engata um
solo admirável de saxofone, apesar de eu ter a vaga lembrança de que na versão
original da canção isso não existe. E Borsana se acaba dançando, suando tanto,
mas desenvolvendo a atividade como se fosse seu último dia no mundo.
A apresentação dos irmãos
termina. Sinto vontade de aplaudir, mas do nada o clima fica tão solene que nem
parece que agora há pouco o quarto estava mergulhado em uma alegria caliente. Mas isso é um sonho, não é? Os
sonhos não se preocupam em seguir a lógica, muito menos de construir alegrias
num momento, só para detoná-las num instante seguinte sem a menor pena.
Borsana sobe com certa
dificuldade numa poltrona perto de mim, enquanto Bóris vem caminhando em passos
lentos e meio desengonçados, carregando o saxofone com ambas as mãos,
encarando-me sério. Ele está usando um paletó vermelho, com uma camisa vermelha
por baixo e uma calça― adivinhe!― vermelha também.
Bóris, por sua vez,
diferentemente de sua irmã e eu, não se senta numa poltrona, mas num sofá de
três lugares. Assim como eu, tanto ele quanto Borsana têm café e torta de
cereja à disposição. Não dá pra mensurar o tempo com precisão aqui, mas um
longo tempo se passa enquanto Bóris me encara, pensativo. Borsana apenas come
torta e beberica café, cantarolando “Chorando se foi” baixinho, alheia à qualquer
coisa.
“Áh sopmet êcov oãn aimrod oãt meb missa, Denner”, sibila Bóris, de
trás pra frente.
“Se eu estou dormindo, como consigo sentir tudo tão... intensamente?”,
respondo-lhe com outra pergunta, o que é surpreendente, pois eu entendo o que
ele diz sem o menor esforço. É como se eu tivesse habilidades especiais neste
universo delirante. “Meus sentidos estão
totalmente ligados e minha consciência e percepção das coisas também”.
“Sues soditnes oãtse sodagil iuqa euqorp êcov asicerp seled, sam on
onalp ‘laer’, rop missa rezid, ues oproc átse me odnuforp odatse de otnemaxaler,
omoc êcov mev odnasicerp áh said. Outse otrec, oãn?”
Com um gesto quase ensaiado,
apanho a xícara da mesinha ao lado da minha poltrona, levo-a até as narinas,
deixo o cheiro agradável do café atravessar os meus sentidos.
“É”, concordo com Bóris. “Dormir
não tem sido fácil”.
“Amoc ad atrot”, ele mexe o queixo em direção ao meu prato.
Não havia um garfo ao lado do
prato de torta segundos atrás, mas como isto é um sonho, então não é com a
materialização repentina de um garfo que eu vou me preocupar.
“Está gostosa , como da outra vez”, elogio, mastigando a primeira
garfada.
O olhar fixo de Bóris esquadrinha
meu rosto. Me encabulo. Por um momento fico me sentindo como um experimento
científico, onde a qualquer minuto vou demonstrar reações previamente esperadas
devido a estar comendo da torta e bebendo do café.
“Por que eu estou aqui?”
“Met azetrec ed euq é ossi euq êcov reuq ratnugrep, Denner?”
Claro que eu tenho certeza, ora.
Não tô acostumado a entrar tão fundo num sonho a ponto de interagir com as
pessoas de forma tão vívida, quase como se... não fosse realmente um sonho.
Peraí, não tem como não ser, o contexto todo é exagerado demais, não há a menor
chance de eu ter marcado um encontro com esses dois numa sala misteriosa (que eu
agora não sei dizer com certeza se é o meu quarto ou não) e não me lembrar
disso. Ainda mais com um histórico como o meu envolvendo anões.
“Sohnos oãn masicerp res sanepa sasioc ueq someviv san sasson setnem”,
filosofa Bóris, finalmente se servindo do café. “Sa sasioc ueq somezaf mun ohnos mecnetrep eleuqà odnum, oãtne é
odacilpmoc ragluj euq sale majes siaerri ós euqrop somavátse odnimrod an
oãisaco”.
“Isso é muito confuso pra mim”.
“O euq reuq ratnugrep, Denner?”
Ele esfrega as mãos após colocar
um pouco de torta na boca, sem usar o garfo; o prato repousando em seu colo,
como uma criança que vê TV e faz um lanchinho ao mesmo tempo.
Por que ele me oferece a
oportunidade de fazer uma pergunta com esse ar misterioso incessante? Por acaso
ele guarda todos os segredos do universo e está se gabando disso?
E se eu lhe perguntar, por
exemplo, quando será a data da minha morte? Não, não, não, talvez algo mais
urgente. Quem sabe se eu perguntasse o que devo fazer com Pedro e Olívia e
encontrar uma maneira de fazê-los deixar a mim e, consequentemente, Rita em
paz? Ou, indo mais além, e se eu perguntasse a ele como erradicar efetivamente
a corrupção no Brasil? Ou, sendo mais abrangente e tentar obter a resposta que
não deixa o mundo literário dormir: Capitu traiu Bentinho?
Bóris e Borsana começam a rir.
Droga, será que me ouviram? Nem no sonho eu deixo de ter pensamentos orais?
Suas risadas são pavorosas. À
medida que riem, a luz do ambiente fica mais baixa, tremeluzindo como se
ameaçasse ir embora mas não vai. Uma sombra assustadora perpassa o rosto de
cada um dos irmãos, até que a luz se restabelece de vez e Borsana simplesmente
volta a comer sua torta. Bóris remove o prato do colo e o devolve à mesa. Em
seguida, levanta-se com certa dificuldade em alcançar o chão facilmente, e vai
andando até uma cortina de veludo vermelha. Por que esse sonho tem tanto
vermelho?
Bóris dá meia-volta, exibindo um sorriso
malicioso. Me olha com apenas metade do corpo direcionado pra mim e pergunta:
“Airatsog ed recehnoc
Laura Palmer?”
Emudeço. Conhecer Laura Palmer??
De todas as coisas absurdas que se pode esperar acontecer num sonho, ficar
frente a frente com uma personagem de livro é bastante invejável.
“Sim, por favor”, aceito sem a mínima hesitação.
O anão vai para trás da cortina e
some. Perto de mim, ouço Borsana sussurrar uma música que não conheço.
Alguns segundos depois, Bóris sai
detrás da cortina vermelha, de mãos dadas com uma mulher de cabelos tão loiros
que chegam a ser quase brancos, amarrados como rabo-de-cavalo. Ela está
elegantemente vestida; com um terninho preto estilo executivo, saia também
preta, sapatos pretos de saltos baixos. Felizmente, Laura Palmer é mais bonita
do que minha imaginação prévia concebera.
Não cheguei a fazer a tal
pergunta a Bóris, mas por alguma razão ele sabia―melhor que eu, aliás―, que uma
das questões que vem martelando e me matando por uma solução é justamente essa:
como ajudar Hektor Casanova a se desapaixonar de uma personagem que ele mesmo
criou? E então ele me traz Laura Palmer, o próprio objeto de paixão do meu
cliente, para diante dos meus olhos. Como isso pode ser possível? Não há como
desprezar a grandiosidade deste momento.
Bóris se senta de volta em seu
sofá de três lugares; Laura se posiciona no mesmo sofá, mas na extremidade
oposta à de Bóris, ficando um vão entre eles. Agora entendi porque havia esse
sofá aqui.
“Muito prazer, senhorita Laura Palmer. Eu sou muito seu fã”,
declaro.
Ela abre um sorriso lentamente;
sua feição carrega uma melancolia opressiva, que, por mais que um par de lábios
semiabertos tentem disfarçar, os olhos escancaram desesperança.
Sinto que eu deveria, por
educação, me levantar para cumprimentá-la, mas é como se eu não tivesse o menor
controle das minhas ações aqui. Domínio zero das minhas vontades. Algo me
impede de sair do conforto desta poltrona.
“Você é o desapaixonador?”, indaga ela.
Ufa! Pelo menos ela fala as
palavras na ordem normal.
“Sou um agente do desapaixonamento, pra ser mais exato”, esclareço,
escondendo a surpresa de como é que ela sabe disso. Quero dizer, ela é uma
personagem, um produto da imaginação de outra pessoa. Se bem que, eu sabendo
dessas informações e nós estando no meu sonho, acredito que ela deva ter acesso
à qualquer coisa relacionada a si mesma. Ainda bem que eu nunca fui como esses nerds pervertidos que se masturbam
pensando em gente fictícia. Já pensou na vergonha que eu estaria passando
agora?
“Aroga êcov edop ratnugrep à airpórp Laura Palmer omoc ale odep raduja
êcov moc a aus edalucifid, Denner”.
“Nossa!”, me admiro, meu olhar certamente exprimindo alegria por
enfim encontrar uma maneira de cuidar do
caso do Hektor, por mais absurda que essa maneira tenha se apresentado. “Eu só não imaginei que eu teria um sonho só
pra me ajudar com isso”.
“Sam són oãn somatse on ues ohnos, Denner”, revela Bóris, voltando
o olhar com doçura para Laura. “Somatse
on ohnos aled”.
Me sinto afundar na poltrona ao
constatar que o anão não está no menor clima para zoeira, e então a sala (que
agora eu sei que não é mesmo o meu
quarto) gira lentamente. Não há a menor lógica no que vou concluir agora, mas
neste exato momento tudo parece fazer mais sentido. E, ao mesmo tempo, não faz
sentido algum.
“Como faço pra ajudar o Hektor a se desapaixonar de você, Laura?”
Com suavidade, ela cruza as
pernas e solta os cabelos, que se espalham deslizando com graciosidade por seus
ombros.
“Eu não quero mais estar aqui”, afirma ela, simplesmente.
“Mas... Ué! Desculpa, mas eu não entendo. Não quer mais estar aqui?
Aqui no sonho?”
Seus ombros caem, e ela inclina o
busto um pouco para a frente, parecendo reflexiva; Ambas as mãos sobre as
pernas.
“Não quero mais estar aqui, no lugar onde eu estou, no lugar em que
nasci. Tem sido tão... sufocante. Tem sido um fardo. Eu já não tenho mais
necessidade de estar aqui. Você entende?”
“Não”.
“Você consegue enxergar a tristeza? Existe uma música triste no ar;
tudo ao redor apenas confirma essa tristeza constante”.
Tudo que ouço é Borsana
sussurrando ainda a mesma música de minutos atrás, a tal que eu desconheço.
Seria essa a “música triste no ar”? Tem uma pegada meio caída mesmo, uma
melodia trágica, mas também bonita.
“Você parece muito triste, é verdade”, observo.
“Tantos livros e tantas investigações”, ela diz, com cansaço e
certa frieza. “O Hektor me usou e
explorou de todas as formas que um autor poderia abusar de um personagem. Anos
a fio tendo de me submeter a todo tipo de tramas e reviravoltas, mortes e
romances, segredos e mentiras. Estou irremediavelmente cansada”.
Ela tem um jeito todo poético de
se expressar. É natural, sendo criatura de Hektor Casanova, cuja prosa é toda
entremeada de um lirismo primoroso. Mas Laura Palmer tem tanta vida própria
pulsando e uma personalidade tão marcante, que começo a enxergar razões para
Hektor ter se apaixonado por ela.
“E o que você quer então?”, encorajo-a.
“Eu quero ser liberta desse fardo, sr. Agente do Desapaixonamento. Eu
preciso morrer”.
As luzes começam a piscar na
sala, novamente o ambiente sendo coberto por uma aura soturna. Sinto frio. O
ambiente estava ameno o tempo inteiro, mas agora está com um frio esquisito. A
sensação é de que a mera menção à morte, num universo onírico, acabe atraindo a
presença do horror para o nosso redor.
“Morrer?”, repito, tentando entender se Laura quis ser literal.
“Morrer”, reforça ela.
“E como isso vai fazer o Hektor se desapaixonar de você?”
“Por que a paixão prende as pessoas. Mas o amor não. Amar também é
deixar ir”.
“Então, se ele entender que te ama, ele vai entender também que precisa
matar você. É isso? Mas não matamos a quem amamos. Ou não deveríamos matar”.
“Sou uma personagem, Denner”, argumenta Laura. “Na mente fértil do Hektor ainda existe um lugar em que ele tem
consciência de que eu não sou de carne e osso, e que matar um personagem
importante também pode ser um excelente recurso narrativo, porque traz impacto
para a história, e se for feito da maneira certa, traz honra ao personagem que
precisou morrer, pois este morre como herói ou pelo menos como alguém que
cumpriu uma missão relevante naquele universo. Além do mais, ao me matar,
Hektor não vai mais precisar ter nenhum tipo de obrigação comigo, não vai
precisar se martirizar pelo fato de estar apaixonado por mim, porque o problema
todo aqui é o fato de eu estar viva na imaginação dele. É aí que eu preciso ser
eliminada, porque é aí que eu existo”.
“Os fãs também te adoram. Você também está na imaginação deles”,
retruco.
“Minha morte vai ter significado diferente para os fãs. A ligação entre
Hektor e eu é muito mais pessoal e profunda. Minha morte é a única solução”.
“Uau!”, exclamo, ligeiramente incomodado na poltrona que outrora me
fora tão aconchegante. “Eu sinceramente
não sei se teria coragem de chegar pro Hektor e propor uma coisa dessas. Não
consigo nem imaginar como eu iria começar. Bom, primeiro que eu nem ia comentar
sobre esse nosso encontro”.
“Você tem medo?”
“Não, é que... Não é exatamente medo. É que eu sou fã do Hektor e
também sou seu fã. Entenda, eu nunca passei por isso, esse é o caso mais
surreal que eu já tive e vou ter nas minhas mãos, então não é fácil. E se ele
ficar com raiva de mim por eu ir até ele com essa ideia de que ele tem de matar
você? E se ele ficar com raiva de mim?”
Bóris pigarreia em seu lugar,
insinuando que quer a palavra. Laura troca um olhar misterioso com ele. Eu, por
minha vez, já estou preparado para a próxima surpresa.
“A oãn res euq ele esnep euq a aiedi iof dele”, conjectura o anão mordomo.
“Como assim?”, estou claramente confuso.
“Etsixe amu amrof licáf de rartne an etnem ed amu aossep. E són sodemop
et raduja a resseca a etnem od rohnes Casanova sévarta sod sohnos”.
“Peraí, o quê?”, vou ficando abismado com o que estou entendendo. “Você tá falando de entrar num sonho dele,
que nem aquele filme com o Leonardo di Caprio?”
Bóris e Borsana trocam uma
risadinha cúmplice, dessas de irmãos que aprontam juntos longe dos olhos da
mãe. A anã, até então inexpressiva, comenta:
“Esse emlif iof aiedi
asson, a etneg avat on roíam oidét e íad somevloser racoloc asse aiedi an
açebac od roterid od emlif. A etneg oiem euq siuq ridivid moc o odnum mu ocuop
od osson ohniderges”.
“Se meb euq sele mararegaxe me samugla setrap, sam euq es aned, o emlif
é siamed!”, complementa Bóris. “Mifne,
o euq átse me ogoj iuqa é raduja osson oãrtap a se ranoxiapased e, ao omsem
opmet, rarvil Laura Palmer essed odraf. E es rof êcov, Denner, iav res siam
licáf eled ratiderca, euqrop êcov recerapa mun ohnos eled, iav res omoc mu
lanis”.
Laura Palmer me olha,
esperançosa. Sou sua única e última aposta. E ela também é a minha, já que até
então eu vinha devorando novamente a série dos Detetives da Noite em busca de indícios que eu pudesse apontar como
elementos desapaixonantes. Todo esse tempo falhando consideravelmente, mas
agora tenho uma arma inesperada. Tudo bem que não me alegra muito o fato de
receber um spoiler tão arrasador como
esse, ainda mais de uma fonte tão fidedigna. Um presente dos sonhos, com
trocadilho elevado à centésima potência.
“Eu quero fazer isso então”, decido. “Como é que eu faço pra entrar nos sonhos do Hektor Casanova?”
“Axied moc a etneg”, Bóris esfrega as mãos e sorri outra vez com
malícia, como quem tem um plano infalível, e se levanta do sofá. Borsana também
se retira de sua poltrona.
Os dois fazem sinal para que eu
os siga e caminham rumo à mesma cortina de onde Laura Palmer saiu. Finalmente
tenho controle das minhas vontades e posso me erguer de minha poltrona, embora
esteja um pouco tonto e com muita informação a processar. Antes de eu seguir na
direção que Bóris e Borsana tomaram, Laura Palmer faz um sinal com uma das mãos
espalmadas para mim. Ela dá a entender que precisa me passar um recado ao pé do
ouvido, então me abaixo um pouco. Após escutar suas palavras, só posso dizer
que, apesar de falar em português claro e na ordem convencional, me parece algo
enigmático. Levanto o corpo, minhas sobrancelhas estão franzidas, mais confuso
com o que ela acaba de me contar do que com toda essa situação que estamos
vivenciando.
“Na hora certa você vai saber a quem repassar essa mensagem”, ela
me deixa totalmente sem pistas.
“Você não vem com a gente?”
“Não. Vou ficar aqui, no meu mundo, torcendo pra que esse plano dê
certo”.
“O plano Laura Palmer”, invento um nome na hora.
Ela pisca, aprovando o nome.
“Foi um prazer, senhorita Palmer”.
“Por favor, sr. Agente do Desapaixonamento! Certifique-se de que esse
homem me mate. O prazer foi meu”.
Acordo suado, são mais de oito e
meia da manhã. Meu Deus! Estou atrasado para ir pra ANNA. O colchão sob minhas
costas encharcado de suor. O ar condicionado funcionando normalmente, no
entanto eu despertei morrendo de calor. Não me pergunte o porquê, mas minha
primeira reação é olhar minhas mãos, meio que pra ter certeza de que eu sou eu
e que meu corpo é o meu corpo. Só depois é que faço reconhecimento visual do
ambiente ao redor. Sem dúvida, dessa vez é o meu quarto. Posso ouvir pessoas
tagarelando ao longe, vulgo meus familiares.
Testo o paladar: um sabor
acentuado de cereja, e um pouco mais pro fundo, café. Como pode? Que espécie de
sonho foi esse? Eu estava mesmo no sonho de Laura Palmer ou no meu?
E o que aconteceu depois, quando
segui os anões para trás daquela cortina? A mim pareceu que naquela mesma
ocasião iríamos invadir o sonho de Hektor e plantar a ideia da morte da Laura
Palmer. Entretanto, não consigo recordar de um detalhe sequer sobre o
desenrolar disso. Será que algo deu errado no meio do caminho?
Aconteça o que acontecer, não
posso comentar isso com ninguém. Nem mesmo com Rita Lina, e olha que ela é a
pessoa que seguramente me encorajaria a encarar esse tipo de evento com
naturalidade.
Depois de uma longa higiene
matinal, volto pro quarto, toco no colchão e ele ainda está muito molhado. Vou
ter de colocá-lo ao sol, esperando que meus pais não suspeitem que, depois de
marmanjo, eu tenha voltado a fazer xixi na cama. Espero que seque antes do
Lucas chegar. O sono dessa noite foi tão violento que nem deu pra escutar meu
despertador, mesmo ele estando configurado pra tocar seis vezes (eu gosto de me
prevenir). E, assim como Bóris deixou bem claro, meu corpo relaxou muito. Mas a
cabeça está a mil, especialmente depois de tudo que eu “vivenciei” naquela
espécie de sala branca e preta misteriosa.
Quando enfim pego o celular pra
verificar, me deparo com uma mensagem de Sávio parecendo preocupado por eu
ainda não ter chegado; Rita me mandou um gif
de um cachorrinho comendo hot-dog (uma piada interna entre a gente, porque uma
vez eu comentei com ela que um cachorro comendo hot-dog seria canibalismo
semântico, mas eu nem sequer sei direito se esse tipo de colocação está
correta, até mesmo como piada; portanto, não perca tempo tentando entender). E
tem uma mensagem de Hektor Casanova, a qual eu abro com o coração mais tenso do
que um aluno de 6ª série antes de fazer uma apresentação diante de toda sua
turma.
Por favor, se puder, passe aqui. Tenho algo urgente pra te falar. É
insano, então se prepare. Posso adicionar um extra ao serviço, mas por favor,
preciso muito que você venha aqui ainda hoje.
Me encho de uma coragem
improvável e digito uma mensagem para Sávio, informando que precisei comparecer
a um compromisso importante envolvendo um cliente, por isso não fui hoje. Não é
totalmente uma mentira, então a culpa nem dói.
Chego à casa do meu escritor
favorito. Toco a campainha e, com uma impressionante eficiência, Bóris vem me
receber. Lanço a ele um olhar e um sorriso a fim de remeter à experiência
amistosa do sonho da noite passada, mas o anão não devolve o agrado e se porta
estritamente profissional e azedo:
“Bom dia, senhor Denner Corrêa! O senhor Casanova o aguarda em seu
escritório”.
Enquanto atravessamos o jardim
rumo ao interior da casa, dou uma de teimoso e faço uma nova tentativa de
contato com Bóris:
“E aí, Bóris? O plano deu certo? Porque eu não me lembro de nada”.
“O euq ecetnoca son sohnos, acif son sohnos”, sibila ele.
Agora, não consigo entender porcaria
nenhuma do que ele diz. Perdi minhas habilidades especiais de tradução simultânea
da linguagem reversa, que saco!
Borsana está espanando uma
estante na sala, elevada em cima de um banquinho, fingindo não notar minha
presença. Desisto de cumprimentá-la. Onde eu estava com a cabeça quando resolvi
fazer as pazes com o mundo dos anões? Eles sempre ferirão meus sentimentos, não
importa o quanto eu me iluda achando que serão legais comigo.
Antes de bater na porta do
escritório, Bóris cochicha em tom de ameaça:
“Cuidado com esses seus pensamentos que saem pela boca”.
Apesar de eu não gostar do tom
atrevido com que ele me tratou, preciso admitir que ele tem razão. Se algum
pensamento oral escapar, sabe Deus quais seriam as consequências.
“É disso que eu estou falando”, reclama ele, balançando a cabeça
negativamente.
O mordomo, então, bate na porta
do escritório de Hektor, que abre em menos de três segundos, nitidamente
ansioso pela minha chegada.
Já dentro do cômodo, Hektor nos
tranca aqui. O laptop está sobre uma
escrivaninha, virado para minha direção, aberto numa página em branco do Word.
“E então, Hektor? Estou aqui”, começo, colocando as mãos nos
bolsos.
“Ótimo, ótimo, Denner! Fantástico!”, vibra ele, puxando uma cadeira
para eu me sentar. “Meu Deus, eu estou
tão nervoso, tão nervoso. Olha!”
E me mostra as mãos tremendo.
“Eu tô tentando escrever uma cena desde que acordei, mas as mãos não
param de tremer”.
“É mesmo? O que aconteceu?”
“Eu tinha escrito um capítulo ontem e fui dormir às 2 da manhã, mas aí
acordei de novo às 5, e daí não consegui mais dormir”.
Tô tentando pensar em patinhos
enfileirados marchando numa rodovia, meu método prático para espantar qualquer
possibilidade de um pensamento oral vazar.
“Você... você não vai acreditar no que eu vou te dizer. Nossa!”
“Estou ficando meio preocupado, Hektor. Você tá tão tenso!”
Ele pega uma garrafa térmica,
provavelmente cheia de café preparado por Borsana, dá uma boa golada, respira
fundo e diz:
“Sonhei com você”.
“Hum!”, resmungo, cada vez mais perto de constatar que, sim, a
coisa toda aconteceu mesmo. “E o que
aconteceu nesse sonho de tão estranho?”
“Bom, eu não me lembro de detalhes em geral, mas o mais importante e
mais perturbador de tudo eu definitivamente lembro muito bem”.
Meu Deus, homem, por que você
precisa fazer tanto suspense?
Nossa, que desprezível esse meu
comportamento egoísta! Se tiver realmente acontecido a inserção da ideia da
morte de Laura Palmer, preciso demonstrar um pouco mais de piedade e empatia,
porque este homem deve estar com o coração em pedaços.
“Sabe, Denner”, Hektor continua, “eu acordei com essa sensação tão... tão poderosa no meu coração, como
se eu precisasse colocar em prática o quanto antes, mas ao mesmo tempo que eu
encaro isso como uma missão, eu tô sentindo tanto lamento, sabe? Uma tristeza
pesada tomando conta de mim, como se eu estivesse prestes a dar adeus a um
grande amigo”.
“Tô tentando entender”.
“Eu sonhei que você resolvia o meu caso, é isso. Quero dizer, essa foi
a conclusão que eu tive ao acordar, porque não foi algo tão direto, entendeu?
Você chegava na minha casa e dizia que eu não podia continuar apaixonado pela
Laura porque ela estava...”
Essa pausa é a coisa mais dramática
que ouvirei em dias, quem sabe meses. Estremeço levemente. Estou visualizando
nossa empreitada tomando forma e se personificando na figura de Hektor Casanova
sendo assolado por uma tristeza insuportável. O semblante dele despenca de tão
abatido. Eu sei que se trata disso porque sei qual é a próxima palavra que termina
a frase, a palavra maldita.
“... morta”, despeja ele, por fim.
“Caraca! Morta?”, emprego a falsa surpresa, uma atuação deplorável.
“Sim, Denner. Só que isso no sonho parecia tão verdadeiro. E você me
dizia que foi bom eu ter matado a personagem no volume 9 da série, porque ela
tinha morrido como uma personagem que cumpriu uma missão relevante pro universo
da história, e que eu tinha de seguir em frente e isso seria bom pra mim e pra
eu esquecê-la. E eu acordei completamente perturbado, com essa ideia fixa. E
então eu entendi o significado do sonho: pra eu me desapaixonar da Laura, eu
preciso sacrificá-la. Você ter aparecido no sonho foi um sinal claro de que é
isso que eu tenho que fazer. Sério, Denner, foi como se você realmente tivesse
estado lá. Geralmente os sonhos não fazem o menor sentido, mas dessa vez foi
tão realista, tão racional. Nunca tive um sonho tão claro quanto esse”.
“Nossa!”, a garganta vai ficando seca.
“Eu disse que era insano”.
“Bastante”, concordo. “Então,
você pretende fazer alguma coisa a respeito?”, me esforço pra não gaguejar.
E pra manter os patinhos na rodovia.
Ele assente com a cabeça. Os
olhos se enchendo de água.
“Eu já fiz um esboço e... Estou pronto!”
“Pronto pra...?”
“Pra escrever o capítulo em que ela morre”.
“Então você vai mesmo... matar a Laura?”, pergunto tão baixinho e
com tanto medo que pareço o Denner da infância, que tinha medo de tudo e de
todos.
Hektor respira fundo e, mais uma
vez, confirma com a cabeça.
“Foi de um jeito muito louco que aconteceu, mas você me ajudou, Denner.
Você surgiu no meu sonho e trouxe a solução pro meu caso. Então eu confio que
vai dar certo”.
“Nem sei o que dizer”.
“Não precisa dizer nada”, Hektor puxa uma cadeira para si, coloca-a
de frente para o laptop e, apontando
para o objeto, me diz: “Eu te chamei aqui
porque eu quero que você testemunhe. Como um leitor fiel e fã do meu trabalho,
e além de tudo, como um colega escritor, eu quero que você seja a testemunha
desse momento tão importante pra minha carreira literária”.
Estou tão nervoso. É óbvio que
aceito de imediato; enquanto me sinto aos poucos mergulhar nesse momento que
parece ser tão íntimo e pessoal para um escritor, estou desfrutando de tal
honra. E controlando cada vão pensamento que cruza minha mente, com todo o
cuidado para não estragar tudo. Meu Deus!! Eu realmente consegui implantar a
ideia. Eu realmente consegui.
Hektor passeia com os dedos pela
tecla como um hábil mestre da escrita. Fico imaginando se, junto com a ideia,
eu também lhe passei dicas de como escrever essa fatídica cena. Mas realizo o
tamanho da minha presunção e me recolho à simples tarefa de espectador. Porém,
não deixo de saborear o fato de fazer parte dos dois lados da história: sou aquele
que participou do plano da morte de Laura Palmer e o mesmo que acompanhou em
primeira mão o processo de “assassinato”. Essa bizarrice é de proporções tão
descomunais, que volta e meia me pego pensando se na verdade eu não fiquei
preso no mundo dos sonhos.
Hektor está chorando. As lágrimas
fluem com uma sofreguidão que deixam a minha alma moída, mas os dedos dele não param, tão
absorto ele está em executar esse que deve ser seu maior ato de coragem. Faço a
decência de me levantar da cadeira e paro ao seu lado, tocando em seu ombro,
como um amigo da família que consola alguém num funeral, à beira da despedida
final de seu ente mais querido.
Hektor chora e chora como uma
represa arrebentando para inundar uma cidade em minutos, causando uma grande
catástrofe. Soluçando e gemendo igual a uma criança que se perdeu dos pais no
meio da multidão. Ele está matando sua protagonista. Ele está livrando ela do
fardo de ser uma personagem que precisa carregar o peso de um best-seller nas costas. Ele está sendo
livre de estar fisgado numa paixão ilógica e irracional, rompendo um laço
afetivo que não é incomum entre escritores e personagens; a diferença aqui é
que Hektor ultrapassou os limites do impossível, assim como eu, quando invadi sua
mente despreparada e o convenci de que isto era o necessário a ser feito. Mesmo
que essa parte da história tenha sido apagada da minha memória.
E Hektor digita o ponto final do
capítulo. Laura Palmer está morta.
“Está feito”, murmura ele, jogando pra trás os longos cabelos.
E volta a chorar, afundando o
rosto entre as mãos, inconsolável. Sinto pena, sinto compaixão, sinto mais
tristeza. E um pouco de remorso, pra ser bem sincero. Ninguém gosta de ser o
responsável por um término ou uma perda, por mais que seja necessário.
Ainda com o rosto em prantos, só
que em menor grau, ele olha para mim e diz:
“Obrigado, Denner”.
Bóris me acompanha até o portão
quando vou embora. Insisti para Hektor ir descansar e deixar que o mordomo
ficasse com essa parte de ir comigo até a saída. Mas na verdade foi uma
estratégia para ficar a sós com o anão.
“Acho que eu mereço uma explicação, não é, Bóris?”
“Explicação sobre o que, senhor?”
“Cara, você não precisa ficar fingindo. O Hektor nem tá por perto. Dá
pra parar com isso e conversar comigo sem fugir?”
Ele ergue as sobrancelhas, mas
não diz palavra. Encaro como uma deixa para que eu prossiga, então vou direto
ao ponto:
“Como é que vocês fazem isso? Como é que vocês conseguem passear nos
sonhos das pessoas e fazer todas essas coisas, sei lá, sobrenaturais? Quem são
vocês?”
Bóris me encara. Me analisa.
Busca alguma coisa no meu rosto, no meu olhar. E então dá aquele sorriso
malicioso que eu tanto odeio.
“Uma vez eu lhe disse que o senhor não sabia do que nossas tortas de
cereja são capazes, senhor Denner”.
O tom como ele emprega e articula
as palavras não deixa dúvidas de que está falando sério, apesar da droga do
sorrisinho.
“Torta de cereja?!”
“Torta de cereja com café. Algumas coisas são agradáveis delícias de
outro mundo, não acha? Passar bem, senhor Denner!”
E nem me espera reagir,
simplesmente bate o portão na minha cara. Torta de cereja com café?? Então é
esse o grande segredo?! Que explicação mais furada!!
Tomo o meu rumo, mas não vou para
a sede da ANNA hoje. Como alguém que está aprendendo a omitir informações e
tirando vantagem disso, decido que vou sair em busca de alguma atividade para
relaxar a mente e desviar o foco para outras questões, antes que esse mundo me
engula com esse tanto de loucuras que vêm pra cima de mim.
No entanto, não deixo de pensar
no quanto seria proveitoso se eu pudesse desenvolver a prática de entrar nos
sonhos das pessoas. Pedro e Olívia seriam as vítimas no topo da minha lista.
Mas a vida não é tão fácil nem tão doce quanto uma torta de cereja, não importa
o quanto eu deteste a veemente ironia nisso.
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