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2 de dezembro de 2017

CONTO: Eritrofobia



Novatília era longínqua e praticamente perdida entre vales e montanhas repletos de flores raras, cujo perfume era extraído para a fabricação de colônias, produtos que os Novatilenses, em sua maioria, usavam como ganha - pão. Foi dessa forma que Eliezer Dasco, um viúvo casado pela segunda vez com uma manceba, enriqueceu e firmou propriedades invejáveis, tornando assim a própria vida invejável. Ele cultivava duas das espécies de flores mais fantásticas e pouco comuns da terra, extraindo dessa fonte a essência que lhe conferia muito dinheiro. Sua esposa, quase uma infante, fazia parte do tesouro conquistado por Eliezer, e todos que o conheciam possuíam a insaciável curiosidade de saber como foi que, num certo dia, o viúvo viajou e, menos de uma semana depois, regressou ao lado de Fiorella, então sua noiva aos catorze anos.
Na noite de vinte e um de abril, um acontecimento muito esperado aguardava uma vasta comemoração, que se estenderia por sete dias. A Igreja Católica, entre apertos e espinhos, conquistava cem anos de estabelecimento na cidade, onde setenta por cento dos habitantes mantinham uma formação religiosa protestante. O Centenário Da Igreja, assim batizado pelo bispo local Dom Teodoro Campos, foi cuidadosamente planejado pelas autoridades clericais de Novatília, pretendendo torná-lo o evento do século.
A preparação meticulosa não escapava da supervisão do rígido Dom Teodoro, naquela primeira noite do Centenário da Igreja. As beatas, os coroinhas e toda a porção de fiéis se desenrolavam nos ornamentos e cuidados finais, para que desse tudo certo nos sete dias em que os católicos daquela cidade tentariam responder à altura da maioria luterana.
Foi durante a cerimônia de abertura que o bispo apresentou às quase quinhentas pessoas que assistiam à missa inicial, no altar, o recém-formado em Teologia Guilherme Roffman, sobrinho de um falecido diácono, Dionísio Roffman. Rapaz de vinte e seis anos, moreno, ligeiramente corpulento, olhos castanhos cristalinos e uma cabeleira vasta mas não longa, de fios ondulados; era um jovem alto e sóbrio, mantendo-se concentrado o tempo todo nas palavras bastante inspiradas de Dom Teodoro. O bispo chegou a se emocionar enquanto contava as dificuldades experimentadas e vencidas naquele século, embora tivesse vivido somente onze anos dele. Breves lágrimas rolaram por sua face enrugada e aplausos ressoaram por toda a catedral.
Ao fim da celebração, três horas depois, Dom Teodoro conversou longamente com Guilherme. Esgotado pela viagem e pelo dia por si só fatigante, o rapaz pediu licença para se retirar e foi dormir. Entrou no dormitório paroquial, onde lhe haviam reservado um dos quartos, e tomou-se de espanto quando, ao abrir a porta, um padre punha fogo em tudo com uma tocha poderosa.
Guilherme ficou tão assustado que andou pra trás em cambaleios, sem saber como reagir àquele atentado inexplicável, principalmente com o tal padre a gritar “Vai-te, filho do demônio!”, enquanto incendiava o quarto. O fogo logo se alastrou pelo dormitório e os guardas que protegiam o lugar se dividiram para apagar as chamas e salvar os párocos, que acordaram atordoados.
Dom Teodoro não parava de se desculpar com os padres pelo triste incidente e, sobretudo, com Guilherme Roffman, ainda chocado com uma “recepção” tão “calorosa”; nem dissera coisa alguma, a não ser alguns monossílabos ou murmúrios, mortíssimo de sono.
— Não devíamos ter libertado o padre Estefano—lamentou o bispo, andando de um lado para o outro.—Sei que só estávamos agindo com compaixão pelo seu estado de loucura mas... foi horrendamente absurdo o que fez agora. Mandarei que o tranquem novamente na torre.
Guilherme, silencioso, acabava de entender que tivera seu quarto atacado por um padre vítima de loucura violenta. O padre Estefano havia sido trancafiado na torre da Catedral cinco anos antes, quando um médico o classificara de louco agressivo (isso explica ele ter xingado Guilherme de filho do demônio e ateado fogo no quarto). O bispo estava pagando uma promessa de dar-lhe liberdade pelo menos durante vinte e quatro horas no primeiro dia do Centenário da Igreja, só que não esperava que logo tão rapidamente ele fosse transgredir e provocar aquela situação feia e constrangedora. Sua punição foi o retorno à torre.
Ao despertar de seu semi-sono, Roffman percebeu que havia chegado um outro sujeito que não parecia ser do comando da igreja. Deparou-se pela primeira vez com Eliezer Dasco, o perfumista maior e mais endinheirado das redondezas. O homem entrou cheio de categoria, trajando um sobretudo preto contra o frio, camisa de algodão e calça cinza de linho. Roffman deu uma olhadela para sua aparência: Eliezer tinha os cabelos penteados para trás, muito pretos, brilhantes; seus olhos possuíam uma tonalidade mel puro, o rosto em geral denotava bom cuidado, embora não lhe tirasse a característica de ser um homem com mais de quarenta anos. A priori, qualquer um que o visse poderia lhe julgar um sujeito implacável e metódico, além de sarcástico. E não estaria errado em pensar de tal maneira.
— Estarei disposto a ajudar no que for preciso, senhor bispo—ofereceu-se Dasco, compadecido.
— Obrigado, senhor Dasco. A igreja agradece profundamente—disse Dom Teodoro, notando a preocupação de seu hóspede.— E quanto a você, meu jovem Guilherme, precisamos providenciar um abrigo para que descanse logo. Quero que perdoe nossa imprudência, isso simplesmente é vergonhoso.
— Mas isso não é mais um problema—resolveu o perfumista, lançando um sorriso ao teólogo.— Em minha casa há muitos lugares e penso que não seria demais hospedá-lo. Afinal, não é todo dia que enviados do Senhor nos dão a honra de uma visita.
— Faria isso, senhor Dasco?—admirou-se o bispo.
— Pois sim, com muito gosto. E digo mais: adoraria que o jovem Guilherme ficasse em minha casa por toda a semana do Centenário. Pelo que já ouvi falar dele, creio que sua intelectualidade me proporcionaria bons momentos de boa conversa, quero dizer, a mim e à minha amada Fiorella.
Dois dos padres que presenciavam a ocasião estremeceram ao ouvir o nome da esposa de Eliezer Dasco, uma ninfa encantadora de quinze anos, por quem aqueles religiosos já suspiraram tantas  e tantas vezes, chegando a se castigar com uma cinta de couro secretamente, e o curioso é que nenhum sabia do tormento do outro. Mas logicamente não era só com aqueles pobres padrecos que a mocinha mexia nos nervos. Muitos outros homens já haviam sido vitimados do secreto “Mal de Fiore”, conforme denominaram alguns cultivadores de ervas de Novatília.
— O que me diz, meu caro Guilherme?—Dom Teodoro deixou a decisão por conta do teólogo.
— Bom, não deixo de reconhecer que o convite não é digno de desfeita. Porém, acho melhor não dar trabalho ao senhor Dasco, ainda mais sendo quase meia-noite.
— Ora, meu prezado Guilherme, não é trabalho algum. Não se esqueça que a idéia partiu de mim mesmo— redargüiu o homem mais rico das redondezas.— A menos que não queira misturar-se com minha família...
Seguiu-se uma onda de gargalhadas ao comentário descontraído de Dasco, inclusive do célebre teólogo, que resolveu deixar-se convencer. Naquela noite mesmo partiu em companhia do homem mais invejado de Novatília.

Assim que chegaram ao casarão de Eliezer Dasco, foi dada a ordem de que o visitante fosse imediatamente hospedado num bom quarto. A mansão não fazia menção à fortuna presumidamente inacabável do proprietário. Ela era velha, tinha uma aparência medieval devido à sua arquitetura de traços góticos e paredes de um tom escuro fantasmagórico. Havia sido pertencida à família que levou os primeiros sinais do catolicismo para Novatília.
Eliezer despediu-se de Roffman e desejou-lhe boa noite, fazendo votos de que no outro dia pudessem travar uma boa conversa e tomar um licor de pêssego.

Um dos pensamentos da noite maravilhosa sob lençóis macios e perfumados da casa de Dasco, perpassando a mente de Guilherme Roffman, foi de como certas coisas na vida sofriam reviravoltas que podiam transpor qualquer ser humano de um lugar para o outro quase por acaso, e muitas vezes de forma inimaginável. Dormiu muito confortavelmente.
A manhã do dia seguinte começaria logo cedo, tendo em vista os eventos na Catedral, onde a presença de Eliezer Dasco e Guilherme Roffman seriam impreteríveis. Foi sabendo disso que, mal o galo cantou ao longe, fora das propriedades de Dasco, Roffman se levantou um tanto sonolento, esfregando os olhos para acordar de fato e ver que ao seu redor todo aquele luxo era verdadeiro. Desceu para a sala de jantar, onde o café da manhã posto lhe deixou impressionado pela indefectível presença do dono da casa à mesa, elegante e aparentando um rosto nada amarrotado pela noite de sono.
— Fiquei curioso em saber quem chegaria primeiro ao café: o senhor ou Fiorella—Dasco demonstrou mais uma vez seu bom humor afiado.— E então, senhor Roffman? Foi uma boa noite?
— Muito boa. Tem uma ótima casa, senhor Dasco.
— Obrigado. É o resultado de trabalho árduo e da mão poderosa de Deus. Ah, aí vem minha doce Fiore!— anunciou o anfitrião, erguendo-se de seu lugar.
Imitando o gesto de Dasco, Guilherme levantou-se da cadeira educadamente, observando o caminhar de princesa de Fiorella Dasco, completa e discretamente atônito ao constatar sua puerilidade, embora aquela qualidade não lhe devesse mais ser atribuída, dado seus quinze anos; era uma adolescente esplêndida. Seus olhinhos verdes e graúdos, fixos num rosto de alvura feérica, onde um nariz afilado e uma boca vermelha como morango davam o toque final de beleza única. Os cabelos escorriam pelos ombros, em cachos castanhos, indo acabar no meio do dorso, penteados com esmero de uma mulher vaidosa.
Foi um golpe fulminante e covarde contra o peito desprevenido de Guilherme. Ele teve certeza naquele momento, como nunca tivera na vida, de que aquela era a visão mais demoníaca e deslumbrante que já encontrara em seu caminho. Seu cérebro se turvara de um sentimento arrebatador, e ele chegou a visualizar aquela gazela correndo nua para seus braços, roçando-lhe os seios como pêssegos frescos (seriam deles que Dasco retiraria seu licor?, cogitou indevidamente o jovem). A inveja ia se apossando do coração outrora nobre de Guilherme Roffman.
— Olá, querida, dê bom dia ao nosso hóspede.
— Bom dia, senhor Roffman—cumprimentou Fiorella, estendendo a mão cortesmente para que o teólogo beijasse.
Com muito gosto, Roffman curvou-se e beijou a mão direita de Fiore, esforçando-se ao máximo para guardar na lembrança o gosto daquela pele suave.
Os três se sentaram e uma empregada os serviu. Após o chocolate quente, a serviçal levou suco de morango e Guilherme novamente teve um espanto. Fiorella gritou ao ver a jarra de suco, que exibia a cor viva do líquido.
Dasco fiou sobressaltado e, chateado, ordenou que retirassem a bebida da mesa e obrigou a esposa a se calar.
— Por favor, senhor Guilherme, queira desculpar Fiorella. É que ela tem um mal raro, uma doença psíquica chamada eritrofobia.
— Pavor à cor vermelha?— concluiu o hóspede, através de uma dedução etimológica.
— Exatamente—confirmou Dasco, dirigindo um olhar fuzilante à desconcertada Fiorella.—Queira comportar-se, Fiore! Já não agüento mais esses atos estúpidos. O que vai pensar o senhor Roffman?
— Por favor, não se importe, eu realmente não me incomodo com esse tipo de coisa. Aliás, é a primeira vez que ouço falar de tal “moléstia”, digamos assim.
O café da manhã foi recheado de delícias camponesas, entre frutas e pães, queijos frescos e sucos que não tivessem a mínima coloração púrpura. Sem falar que Guilherme Roffman foi alvejado com perguntas e mais perguntas sobre sua vida de teólogo, suas preferências, graças à grandíssima curiosidade de seu hospedador. Mas tudo que o rapaz dizia era atentamente ouvido por Fiorella Dasco, que vez ou outra lançava olhares enigmáticos a Roffman, em silêncio de menina obediente.

À tarde, horas depois das cerimônias do segundo dia do Centenário, Roffman pensou em tirar uma sesta costumeira depois do almoço. Adentrou seu quarto e deitou-se na cama macia de pano laranja de algodão. Virou-se de um lado para o outro, nada conseguiu. A recordação da pele angelical e do rosto inocente de Fiorella Dasco não lhe permitiam o descanso. Guilherme, na verdade, não queria mesmo dormir, temendo rudemente que a primeira visão da moça se perdesse de seu cérebro— o qual lhe bombardeava covardemente com pensamentos insanos de sexo e adultério, de carícias ousadas e mordiscadas no lóbulo do ouvido, beijos ensandecidos de línguas que se enroscavam e se perdiam num tonto universo de prazer proibido.
Roffman levantou-se suado, o coração palpitando. Balançou a cabeça como se, assim, fossem se apagar os devaneios voluptuosos. Contudo, o único pensamento do qual ele não queria se distanciar (até porque, talvez fosse um questionamento de Novatília inteira) era: por que tal deusa tinha de ser casada? E sendo tão menina, por que ser casada logo com um homem tão rigoroso (e relativamente velho) quanto Eliezer Dasco?
Sentiu-se à vontade para abrir a janela e, após fazê-lo, experimentou a suave brisa Novatilense que levava consigo um pouco do aroma das ervas que sustentavam o lugar. Eliezer bateu na porta do quarto, autorizado prontamente a entrar.
— Desculpe o incômodo, meu caro Guilherme, mas é que eu pensei... Bom, eu pensei que seria melhor lhe explicar algumas coisas. Sobre Fiorella. É que ainda não tivemos oportunidade de conversar sobre o assunto, por causa das cerimônias.
— Tem certeza de que é preciso?
— Sim. Eu não costumo falar sobre a doença dela, porém vejo que as circunstâncias me obrigam, quero dizer, é uma forma de eu desabafar minhas preocupações. Sabe, senhor Roffman, tenho muito medo de um dia precisar trancar minha amada esposa numa torre, tal como foi feito com o padre Estefano.
— E é tão sério assim? Bem, eu entendo que se preocupe que o problema de Fiorella pode piorar a ponto de... Mas, se me permite um comentário, ela me pareceu muito sadia.
— Sei. Na verdade, sua eritrofobia se deve a um trauma. Fiore viu a mãe morrer, derramar muito sangue. Isso foi quando ela era muito mais nova, e trouxe danos psíquicos à sua vida, como o senhor pôde ver durante o café. Fiore detesta ver a cor vermelha. É como se lhe enojasse e perturbasse. A nós, que não padecemos desse mal, soa estranho e até inconcebível uma fobia aparentemente patética.
— É verdade. Mas eu consigo compreender o quanto deve ser angustiante uma vida alheia a tantos meios de se deparar com o vermelho.
— Bom... Senhor Roffman, deixe-me lhe fazer uma confissão de homem para homem, sim?— Eliezer corou um pouco ao pedir a palavra— Enquanto o vermelho causa tanto estardalhaço mental em minha mulher... bem, em mim ele me causa excitação. Veja bem, peço que não me compreenda mal, o senhor é teólogo e, como eu, católico fervoroso, mas convenhamos que nós, homens, não devemos negar certas influências, por mais pecaminosas que sejam.
Guilherme forçou um sorriso de compreensão masculina e sentiu vontade de aproveitar a deixa do outro e confessar a ele que estava muito desejoso de pecar com sua esposa eritrofóbica.

Um dos piores acasos pouco antes do anoitecer do terceiro dia do Centenário, na mansão de Eliezer Dasco, foi o proprietário ter necessitado sair, imprevisivelmente,  e deixar que Roffman fizesse companhia a Fiorella.
A sala de estar do casarão, além de decorada com móveis de luxo e quadros pintados por renomados artistas, exibia no centro uma mesa de cedro onde um único elemento se fazia presente: a harpa de Fiorella, instrumento que ela tocava com maestria e paixão. Mas ele não estava sobre a mesa, estava nas mãos da doce e sempre pesarosa moça, que, sentada sobre uma poltrona de estofado de couro, dedilhava as cordas de olhos fechados; abriu-os e não se espantou com a presença de Roffman, olhando-a extasiado.
— Senhor Roffman— disse Fiorella, encerrando sua atividade e abrindo meio sorriso.— Minha música o estava incomodando?
Fingindo não perceber o decote hipnótico da blusa rosa-iogurte da musa, Roffman sinalizou que não estava incomodado. Atravessou a sala até chegar ao cantinho perto da janela, onde ela permanecia.
— A senhora toca muito bem, senhora Dasco. Música própria?
— Não. Só toco minhas composições quando estou inteiramente sozinha.
— Ah!— fez Guilherme Roffman, atormentado ao ouvir a última palavra dita por ela, pois esse vocábulo lhe sugeria momentos íntimos cheios de tesão— E sobre o que são suas composições?
— Sobre amor, ódio, tristeza. Sentimentos simples e universais. Gosto de imaginar melodias que possam me dar alguma fuga. E o senhor? Além de entendido em Deus, tem alguma paixão artística?
— Já tive. Cheguei a vender quadros para me sustentar nos tempos de faculdade, os quais eu mesmo pintava. Meus pais morreram quando eu tinha sete anos e, portanto, não havia quem pudesse me bancar os estudos. Meu tio Dionísio estava recluso na Itália, mandando algum dinheiro sempre que podia, já que era diácono.
— Que pena!— comentou ela, amargamente— Eu entendo perfeitamente sua dor. É dessa forma que eu componho. Então não tem esposa, filhos?
— Não.
— Pretende usar batina, então?
— Oh, não, não, senhora Dasco!—riu-se Guilherme— Ainda sou muito jovem e pretendo organizar minha vida primeiro.
Ela baixou a cabeça por um instante e ele aproveitou para espiar o relevo de seu par de pêssegos maduros, sentindo um frio percorrer-lhe os nervos, uma vontade voraz de avançar naqueles frutos empinados. Desviou o olhar quando Fiorella ergueu a cabeça e se lamentou:
— Meu marido brigou muito comigo. E eu queria me desculpar por tê-lo assustado, senhor Roffman, com meu ataque. Imagino que ele já deve ter lhe dito sobre minha doença estranha.
Roffman ficou em dúvida se contava ou não sobre a conversa do dia anterior com Eliezer. Talvez Fiorella não fosse se zangar, posto que ela demonstrava ser tão adulta. Talvez as circunstâncias da vida a tivessem obrigado a envelhecer mentalmente depressa.
— Bem, ele me disse algo. Mas não se preocupe com isso, eu não tenho porquê ficar me aborrecendo. E a senhora não tem culpa de sua mente ter se traumatizado com as atrocidades que lhe ocorreram.
Fiore deixou a harpa cair, estupefata com o que ouvira de Roffman, levantando-se agitada da poltrona.
— Meu marido lhe contou?!
— Hã... Ele... sim, ele... —atrapalhou-se Roffman, percebendo que cometera alguma falha.— Perdão, eu juro que não queria lhe chatear. O que houve?
— Ele não deveria ter lhe dito, senhor Roffman. Esse tipo de segredo só cabe a nós dois. Esse segredo é tão íntimo. Sinto-me envergonhada que esteja a par desse assunto.
— Perdão, senhora Dasco. Com licença.
Guilherme fez menção de sair, e Fiorella o segurou pelo braço, fitando-o com desespero.
— Senhora Dasco...
Ela o abraçou de repente, com força, como se o jovem fosse um abrigo seguro e fiel. Os nervos de Roffman foram ao delírio e ele correspondeu àquele amplexo, enlaçando-a firmemente também. Notando que seu membro começava a se intumescer numa velocidade tremenda, o teólogo tentou afastar-se um pouquinho a fim de não deixar suspeitas à púbere.
— É tão horrível, senhor Roffman. É tão nojento e traumatizante passar pelo que passei. Ver meu próprio sangue jorrando aos montes, manchando minha pele e meus lençóis...
Guilherme esquecera de sua vontade ardente ao ouvir aquilo. Do que estaria ela falando? Não havia sido traumatizada por ver a mãe morrer? Que história era aquela de “meu sangue jorrando aos montes”?
— Senhora Dasco, por favor...— preocupou-se Roffman, meio constrangido em sentir às suas fuças o perfume dos cabelos de Fiore— Não há necessidade de se deixar entristecer e... seu marido pode chegar e interpretar mal essa situação de nós dois.
― O senhor... tem medo de meu esposo?
Fiorella continuou abraçada a Guilherme Roffman, entretanto inclinou-se um pouco para trás e mirou seus olhos cor-de-folha-seca, e naquele minuto ele leu, dentro daquelas pérolas verdes da menina, que havia uma cumplicidade naquela pergunta, uma espécie de desafio: “o senhor tem medo do meu esposo?”
Guilherme quis fugir como uma criança temerosa, ao mesmo tempo em que queria atacá-la com ósculos quentes e carinhos sem culpa, abraçá-la ternamente ou até mesmo como uma fera faminta. Ele viu nos olhos dela, teve certeza que Fiore não lhe fizera aquela indagação à toa. Ela tinha se oferecido e ainda por cima o enfrentou. Tentação do inferno!
— Responda-me, senhor Roffman—insistiu ela, como uma moleca cheia de curiosidade.— Tem medo de que meu marido nos veja abraçados, em plena troca de experiências? O senhor me entende, eu o entendo. Somos parecidos, não somos?
— É melhor evitarmos qualquer coisa. O Senhor Dasco deve ser um homem ciumento e eu não quero parecer audacioso. Para ser sincero, nem eu mesmo entenderia se visse minha esposa abraçada a um hóspede que eu mal conhecesse. Principalmente uma esposa tão bela.
Fiore se soltou de Roffman e continuou a esquadrinhar seu rosto, levando sua mão à face esquerda do rapaz, acariciando-a afavelmente; Roffman tremeu como um inseto abatido.
— Então o senhor Roffman me acha bela!? É isso mesmo, senhor Guilherme Roffman? Acha-me mesmo bela?
— Sim, senhora Fiorella. Admito que sim. E não é nenhum segredo, a senhora bem deve saber. Novatília inteira pensa o mesmo.
— Mas o senhor me acha bela como os outros acham? Ou...?
— Chega, senhora Dasco. Dê-me licença, acho que preciso ler um pouco. Se não se importa, essa situação está me deixando encabulado, eu realmente me intimido muito facilmente.
Ela mais uma vez o segurou pelo braço, novamente o desafiando. Guilherme esqueceu-se completamente de sua condição ali; o leão voraz em seu peito parecia ter escapado da jaula e estava pronto para investir contra sua presa. Guilherme Roffman puxou a manceba para si e, fitando-a a ponto de explodir, sucumbiu ao desejo pulsante, beijando-lhe e sugando sua língua molhada. Ele estava certo quanto a ela estar lhe provocando, pois permitia livremente que aquele pobre tentado fizesse o que bem queria.
— Eu sabia, eu sabia—murmurou ela, com voz abafada e também extasiada de paixão.
— A senhora é uma grande puta, senhora Dasco. E das mais saborosas.
Roffman já nem se lembrava de quem era Deus (se bem que, de fato, era de quem mais queria esquecer) e arrancou a blusa de Fiorella com um só puxão, sendo presenteado com os dois pêssegos de bicos rosados que se desvendaram, nus e saudáveis; a silhueta dela e suas curvas de moça formada, adolescente cheia de vitalidade, com um tronco bem-arquitetado feito estátua grega.
— Agora sei que não tem medo, senhor Roffman. Nem se meu marido entrar por aquela porta destrancada, não é? O que tem a perder? Está apaixonado por mim?
— Eu quero devorá-la inteira, Fiorella. Meu peito pulsa de lascívia por seu corpo, por suas curvas, suas ancas arredondadas e suculentas. Eu chego a tremer de paixão desde nosso primeiro encontro, Fiorella. Quero fazer amor dentro de ti. AGORA!
Fiorella despiu-se de resto e deitou-se de bruços no assoalho, deixando os quadris ligeiramente empinados. Guilherme tirou suas vestes feito louco e pulou na direção do corpo ofertado pela ninfa sedutora. O teólogo entregou-se à armadilha daquela carne vistosa com gosto, e fez amor dentro dela como confessara, na aventura de serem flagrados, e a janela aberta perto deles, deixando entrar a brisa de ervas frescas. Era um brinde à consumação proibida.

Após um jantar bem-humorado em que Eliezer narrou a emergência que o tirara de casa durante a tarde, todos tomaram vinho. Guilherme adoraria que fosse licor de pêssego, contudo contentou-se com a “dose extra”, na ausência do hospedador, provada da própria fonte embutida no tronco da jovem adúltera. 
— Fiore, vá deitar-se!—ordenou Dasco, taxativo.
Ela o obedeceu e despediu-se do amante, lançando-lhe um olhar que confirmava que teriam um encontro rápido na madrugada, enquanto Eliezer dormisse, para mais uma dose do “licor”. Só de pensar nisso, Roffman sentia o membro enrijecer.
— Como foi a tarde, senhor Roffman? Acredito que entediante.
— De modo algum. Tive a oportunidade de ver e ouvir a senhora sua esposa tocar harpa, que, aliás, lhe rende um talento fantástico.
— Ah, sim, claro. Herança da mãe. O talento artístico e a paixão pela música erudita. Devo confessar que além dos atributos naturais de minha querida Fiore, este seu dote foi de grande importância para que me encantasse perdidamente.
— E eu percebi outras semelhanças entre os dois, que decerto não se resume apenas a gostos. Sem dúvida formam um bonito casal, apesar da diferença etária, já que também possuem certos traços físicos semelhantes.
— O senhor acha mesmo?— admirou-se Eliezer, interessado— Nunca notei, se bem que não me olho muito no espelho. Detesto enxergar as primeiras rugas. Mas com toda certeza posso lhe afirmar que Fiorella e a falecida mãe têm os mesmos olhos verdes e expressivos.
— Diga-me, senhor Dasco, isto é, se não for incômodo... Chegou a conhecer a mãe de Fiorella antes da tragédia?
— Sim— respondeu Eliezer com educado pesar na voz.— E creia, meu caro: Fiore tem os olhos idênticos aos da mãe. Às vezes olho para ela e me lembro da pobre mulher. Que triste destino! Depois desse fatídico acontecimento, minha querida precisou arrancar forças do nada para suportar a dor, e se desmancha em lágrimas toda vez que se recorda da perda. E do sangue se espalhando pelo chão... O que deixou uma seqüela terrível, como a que o senhor pôde constatar com os próprios olhos: a eritrofobia.
— Humm... Porventura há médicos especializados nesse tipo de neurose?
— Há estudiosos do assunto. Discípulos de Sigmund Freud, entusiastas que não me convencem o suficiente. Fiorella é o primeiro caso que muitos deles ouviram falar.
Guilherme deu um suspiro, sorveu o último gole de vinho da taça e deu “boa noite” a Eliezer Dasco, retirando-se da mesa para dormir. Lá pelas tantas da madrugada, a cama usada por Roffman ganhou uma temperatura febril, e balançou freneticamente, molhando-se de suor e saliva por horas a fio, até esgotar as energias de ambos os transgressores.  Num quarto não muito longe dali, Eliezer Dasco roncava feito um inocente.

A semana do Centenário ia se esvaindo e, no exato sexto dia, ainda embriagado de amor pelos dias anteriores nos quais Fiore dava algumas escapadas de minutos para lhe servir “licor”, Roffman já tinha notado que muitas vezes ela parecia estranha e cada vez mais se revelava apaixonada—o que possuía a irritante dualidade de ser perigoso e maravilhoso. No entanto, Roffman ia desconhecendo o perfil de sua criança amada. Guardava dúvida a respeito do que ela dissera sobre seu próprio sangue. Será que o milionário Dasco se olvidara de algum detalhe da história da morte da sogra? Será que por alguma razão ele omitira o pormenor que, conforme os lamentos de Fiorella, seria a verdadeira causa de sua eritrofobia? Mas por quê?
Engenhoso, Roffman aproveitou que os mais influentes de Novatília haviam ido a um almoço cristão com o bispo Dom Teodoro (Eliezer e Fiorella também, obviamente), esgueirou-se para o quarto do casal, determinado a procurar algum indício que lhe resolvesse as indagações. Algum jornal da época da morte, algum diário, alguma carta, alguma fotografia, qualquer coisa. Então Guilherme Roffman, já perdido e sem sequer repudiar seu comportamento de ultimamente, mexeu cauteloso pelos pertences dos Dasco, em cômodas, guarda-roupas, sob a cama, onde quer que fosse. Encontrou papéis, mas nenhum lhe dava qualquer luz, qualquer idéia. Não dispensou nem a Bíblia e meteu a mão entre suas tantas páginas, até tatear um papel que, ao tirá-lo, constatou ser um documento antigo.
Deu uma rápida olhada. Era uma certidão de nascimento. Lendo assustadoramente rápido e agoniado, Guilherme Roffman caiu prostrado e boquiaberto ao descobrir um horrendo fato. Pensou ter visto o próprio satanás no quarto, sarcástico e satisfeito em assisti-lo respirando arfante.

Quando a madrugada chegou e Fiorella percebeu que o marido roncava como um porco, saiu nas pontas dos pés para o aposento de Guilherme, que a aguardava ansiosíssimo, afinal ela mesma decidiu que, sendo aquela a noite da despedida, haveria capricho e dedicação quase mortal no leito.
Mal entrou, Fiore foi recebida com uma reprimenda do amante, que confessou saber do pavoroso segredo daquela mansão. Ela quis recuar, assustada, atordoada, porém Roffman trancou a porta, exigiu que ela fizesse silêncio e ordenou que lhe admitisse a verdade.
Aos prantos, encolhida no chão frio, Fiorella abriu o coração:
— É verdade. Você descobriu a verdade. Por favor, liberte-me desse sofrimento.
— Desgraçado! Infame! Torpe! Miserável, hipócrita, pervertido!— enfureceu-se o teólogo, mas em voz baixa, doido de raiva de Eliezer Dasco.
Agachou-se perante sua ninfeta amada, enxugando-lhe as lágrimas e consolando-a.
— E ele ainda guardava isso na Bíblia! É um despautério daquele cretino imoral! Foi ele que matou sua mãe, não foi? Aquele mentiroso... Diga-me, meu amor, ele matou a esposa pra ficar com a filha, não foi?
Fiorella consentiu com a cabeça e o rosto banhado em lágrimas, seus braços foram ao encontro do corpo de Guilherme, seu protetor naquela hora angustiante. Tanto tempo tendo que engolir os atos vis e imundos do próprio pai. Sim, pai, essa era a realidade familiar do casal Dasco. E ela contou toda a história entalada durante anos, em que Eliezer abusava de sua inocência e a estuprava longe dos olhos da mãe. Sua eritrofobia não se devia ao sangue da genitora, mas do seu próprio, quando perdera a virgindade à base da brutalidade de um homem dissimulado e perverso, daquele em quem ela deveria confiar, que lhe ensinavam na escola a respeitar e amar, que lhe ensinavam na igreja a honrar, que lia nos livros que contavam os atos heróicos dos pais. Todavia, o seu não era assim. O seu era infernal, violento, sanguinário e cafajeste. Matou a mãe trabalhadora de Fiorella, sua real mulher, quando essa descobriu sua canalhice. Depois encheu a pobre menina de ameaças e a coagiu a tornar-se sua nova esposa, num plano perfeito de aparências que todo bom religioso hipócrita era capaz de pôr em prática. 
— Então é por isso que o canalha nunca mencionou sobre seu pai, só sobre sua mãe. E é por isso que os achei parecidos. Maldito! Cretino!
— Mate-o, senhor Roffman! Liberte-me desse martírio. Mate-o e fujamos juntos o quanto antes.
Roffman fixou a vista lânguida no rosto molhado da amante e lhe jurou:
— Sim, meu amor. Será morto. E você será minha, e livre.

O plano diabólico era de, durante o café da manhã, já que após servir à mesa os criados se encarregariam de outros afazeres, Roffman apunhalaria Eliezer e, em silêncio, carregria o corpo para o quarto do homem. Posteriormente, ele e Fiore fugiriam escondidos, prontos a embarcar no primeiro navio que os levasse para longe de Novatília.
— Eu sugiro que bebamos agora um pouco de licor de pêssego— comentou Guilherme.— Tendo em vista que não encontrarei um tão bom quanto este da sua casa, senhor Dasco.
— Sim, como não?— aprovou Dasco— Vou mandar que nos sirvam já. E você, Fiore, não vai beber nem um gole. Sabe que não é para uma mulher que se preze.
— Como quiser, senhor meu marido.
Enquanto saboreavam a bebida, calados e se observando, Roffman verificou a faca que ele deixara preparada desde que descera àquela manhã, pousada sobre a mesa, cuja lâmina selaria o fim da vida sórdida de Eliezer Dasco.
—Parece tenso, senhor Roffman— avaliou Eliezer, nem vendo a esposa/filha apanhando a harpa e apoiando-a sobre o colo.
— Se me permitem, meus homens— disse ela, com voz etérea e dedilhando as cordas do seu instrumento—, quero lhes mostrar essa melodia que eu compus para esta ocasião.
— Fiore, vá guardar isso. O que pensa que está fazendo?
— Pensei que só tocasse suas composições quando estivesse plenamente sozinha, senhora Dasco—balbuciou Roffman, vendo que Fiorella ia atrasar o plano.
— Desta vez não, amado senhor Roffman. É uma ocasião que precisa de trilha sonora.
— Mas de que ocasião está falando, ó menina tola?— esbravejou Eliezer, sentindo sufocar-se e o ar lhe ser escasso— E que intimidade é essa... com o senhor... Roffman?
— Eu amo o senhor Roffman. Eu o odeio, papai. Amo minha música. Mas só posso executá-la pra mim, porque só eu me entendo, só eu basto pra minha vida.
Eliezer trocou um olhar de ódio com Roffman, descobrindo tardiamente que os dois mantinham um romance sob seu teto.
—Ingrato!—mal gritou Dasco, levantando-se agitado e furioso. Mas não resistiu e caiu fulminado sobre o tampo da mesa, de olhos abertos e mãos tremendo.
Guilherme Roffman olhou para Fiorella atrás de uma explicação. E ela, interrompendo sua música, falou:
— Não quero ver sangue, senhor Roffman. Odeio o vermelho, lembra-se? Por isso mudei os planos por minha conta. Desculpe se não o avisei. Vá, mas saiba que o guardarei em meu coração. Para sempre.

Roffman caiu estatelado sobre a superfície da mesa, tal como seu rival, o veneno do licor fazendo efeito instantâneo em seu organismo. E Fiorella, egoísta, tocando sua composição macabra, melancólica e finalizadora. Se um quarto personagem ali estivesse (e vivo), poderia jurar que sua face macilenta exibia um breve sorriso de alívio. 

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