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23 de outubro de 2017

DESAPAIXONANTE --- EPISÓDIO 4x10: UNI, DUNI, TÊ



(Sávio)


Os dias têm sido exaustivamente repetitivos. Termino o que tenho de terminar na ANNA, sempre por volta das 8 da noite, dispenso Madonna e eu mesmo tranco tudo. Quase sempre Denner e eu saímos juntos, mas hoje ele está de folga. Aproveitou a ocasião para ir a uma degustação de geleias exóticas com Rita Lina. Na hora que ele me falou desse programão, a vontade de julgá-lo foi quase irresistível, mas a pontada de inveja foi mais forte (mesmo ele tendo frisado que estava curiosíssimo por provar a geleia de camarão rosa com banana-da-terra, o que liquidaria qualquer inveja na hora). Tirando o fato de Denner estar presente ou ausente, quase nada varia. Será que essa sensação de tédio constante faz parte da tal crise dos 30? Provavelmente.
Parece que nada mais empolga, nada mais emociona. Quando a gente chega aos 30 e começa a trilhar essa nova faixa etária, ainda sentimos necessidade de ter algo que nos faça sentir vivos, de que algo aconteça. Ainda é possível ter a vivacidade de quem está ingressando nos 20. Além do mais, é sempre bom ter uma novidade, algo que balance o seu mundo e te dê uma razão para pensar na vida, e que até mesmo te dê um tantinho de trabalho e preocupação.
Até mesmo os casos da ANNA têm sido como uma reprise vespertina chata de alguma novela na TV. Preferiria que fosse como as reprises do Chaves, em que mesmo sabendo que o Seu Madruga vai levar um tabefe injusto da Dona Florinda, ainda assim é divertido.
Entro no carro e reconsidero a possibilidade de dar uma passada na tal degustação de geleias exóticas. Enfio a chave na ignição, ligo o carro e começo a rir por chegar tão ao fundo do poço assim. Desculpa, Denner, mas não é hoje que vou me entregar a esses tipos de prazeres. Sei que pra algumas pessoas eu pareceria estranho por colecionar funko pops de personagens de filmes e séries ou por saber de cor e na sequência correta os nomes dos primeiros 150 pokémon já criados, porém existe uma coisinha chamada limite, não é mesmo?
Se Anna e eu ainda estivéssemos juntos, certamente eu dirigiria até seu apartamento e lá a gente comeria algo gostoso, conversaria e terminaríamos debaixo das cobertas. Mesmo soando repetitivo, as variáveis durante esses encontros sempre faziam uma grande diferença. Não que eu esteja me lamentando pelo rompimento, pois no fundo eu já vinha querendo isso. Mas também não vou mentir que não curtia essa rotina.
Estou bem sem esse relacionamento. Não voltaria para a Anna só porque tô sentindo falta de alguma coisa. Até porque, como eu disse, tô ansiando por novidades. Talvez a expectativa por uma novidade te roube um pouco a surpresa do que pode acontecer, já que de certa maneira você já está no aguardo por algo. A graça das surpresas está no fato de você não esperar por elas.
E quanto a Mile?
Depois de ter ido confrontar o Ivan, como me disse que faria, nos falamos pouquíssimo (três vezes, pra ser exato... e sim, eu contei, e numa delas foi só um “oi” no whatsapp, ao que ela respondeu com um emoji de carinha sorrindo). E isso já tem uns bons quinze dias. Tô preocupado com ela. Mas depois que passamos por aquele furacão em nossa amizade, e depois de vê-la colocando abaixo a sala dos desafios no prédio da Aurora, passei a compreender que preciso deixar Milena ter seu tempo pra cuidar da própria vida; dar a ela uma solidão necessária pra se reconstruir.
Ou pode ser que eu esteja errado e minha amiga esteja precisando de companhia, vai saber... Homens nunca sabem direito dessas coisas. Bom, Ivan saberia, porque ele é expert em estar disponível quando uma mulher precisa dele. Pena que usasse essas habilidades a serviço do diabo.
Para ser bem honesto, eu gostaria que a Milena voltasse pra ANNA. Algo aqui dentro me diz pra esperar até poder fazer esse convite a ela.  A tal história de dar um tempo a ela para lidar com os últimos acontecimentos.
É tanto devaneio nessa cabeça que, quando mal me dou conta, já chego em casa.


Abro a porta e, para meu espanto, tem um loiro sem camisa deitadão de boa no sofá. Mas quem é esse folgado?
“Ah! E aí, Sávio?”, o loiro se vira e me cumprimenta, e eu congelo olhando pra ele por uns longos cinco segundos, até meu cérebro me fazer entender que esse é o Dominique!!
“Que negócio é esse? Cadê os seus cabelos?”
“Gostou? Novo visual!”, ele se ajeita no sofá, passando a mão na cabeça, que agora está com uma merda de um corte normal de homem.
“Não, não gostei nada disso”, sou categórico, e falo sério. “Você é idiota ou o quê? Cortou o cabelo?! Mas por quê? Ah, não acredito nisso. É coisa da mamãe, né? Oh, mãe!”
Dessa vez dona Lola foi longe demais na implicância com as madeixas do garoto. Não se faz uma maldade dessas. Mamãe surge de algum lugar da casa, só de camisola, aturdida com meus gritos.
“Por que a senhora fez isso?”, questiono, apontando para Dominique como se ele fosse uma falha grave no sistema da realidade.
“Eu não fiz nada”, defende-se ela, limpando os óculos no pano da camisola. “Mas Deus ouviu minhas orações. Já nem tô mais sentindo vergonha dele. Inclusive, Dominique, pode voltar a me marcar nas suas postagens do Face, meu filho”.
“Não foi a mamãe que obrigou nada”, explica ele, com um sorriso cínico. “Foi a Bianca que pediu, como uma prova de amor, sabe? Cada um pediu uma coisa pro outro”.
“Mas, cara”, teimo, “os seus cabelos são a sua marca. Ou melhor, eram, né? Você era tipo Sansão ou algo assim. Eram cabelos tão bonitos. Pra mim, perdeu totalmente a identidade. Eu ia sugerir comprar uma peruca, mas ia ficar pior que amador tentando fazer cosplay.
“Ah, tá, muito engraçado”, retruca Dominique. “Você só tá assim porque não vai mais poder me encher o saco me chamando de ‘Rapunzel’ e outras besteiras”.
“Mas é claro! Por que mais eu estaria assim? Olha, eu espero que você tenha pedido algo de valor equivalente pra essa Bianca, hein! Tem que ser no mínimo pra ela cortar um dedo fora ou ficar cega de um olho”.
“Hum”, resmunga ele, “dá pra notar que você é mesmo o irmão mais velho. Teve mais tempo nesse mundo pra desenvolver a sua estupidez, né? Não foi só um pedido de namorados. E a prova de amor que eu falei não é o meu amor por ela ou o dela por mim. A gente resolveu ajudar outras pessoas. Eu cortei o cabelo pra doar pra uma garota da igreja que tá com câncer, vão fazer uma peruca pra ela. E a Bianca vai doar um monte de roupas pra uma outra moça que perdeu tudo num incêndio, incluindo muitas roupas novas. Entendeu? Prova de amor. O que aconteceu é que a Bianca e eu estávamos querendo fazer alguma coisa legal e cada um escolheu o que o outro devia fazer. Você devia tentar fazer coisas boas pelas pessoas de vez em quando”.
“Uau!”, sinto o impacto. Não estava esperando por nada disso. E eu apenas fico parado aqui, encarando minha mãe e meu irmão, me sentindo um otário. Um pouquinho ofendido pelo que ele falou, não vou negar; afinal, se um trabalho como o meu não for considerado um ato de amor ao próximo, então não sei mais o que é.
Me aproximo de Dominique e o envolvo com um abraço, que ele permite com certa relutância.
“Cara, isso é muito bonito da sua parte”, admito. “Eu já tava até pensando em violar uma das regras da ANNA e fazer um serviço de desapaixonamento pra você. Tô até me sentindo mal agora. Mas, olha, parabéns pelo gesto!”
“Valeu! E, na verdade, eu gostei do corte. Vou até deixar a barba crescer pra ver se fica uma combinação legal”.
“Só não deixa ficar ridícula igual a barba do Sávio”, mamãe comenta.
“Mãe, não quebra o clima de broderagem aqui, por favor”, repreendo.
E todos rimos. Essa é a minha família. Uma das únicas coisas repetidas e manjadas que ainda me fazem sentir bem nesse mundo. Dona Lola é o meu maior orgulho, a mãe mais corajosa e dedicada que eu poderia querer. Às vezes paro pra pensar no fato de que nosso pai não fez tanta falta, na prática. Apesar das vezes em que eu me senti excluído de grupos de amigos por não ter tido a oportunidade de vivenciar coisas de pai e filho ou de até hoje ter referências falhas de relacionamentos parentais.
Por fim, olho meu irmão bem dentro dos olhos e declaro, do fundo do meu ser emocionado:
“Fique sabendo, mano, que aqui no meu coração, não importa se você corta o cabelo ou deixa a barba crescer. Aqui, aqui nesse coração duro e cheio de falhas, você sempre será a minha Rapunzel das trancinhas de mel”.
E o bom e velho Dominique irritadinho ressurge, me fazendo ganhar a noite.


Acordo às sete e meia pronto para um dia novinho em folha. “Novinho” é só maneira de dizer, porque já sou capaz de prever todos os pontos básicos. Chego à agência, encho uma caneca de café e vou para minha sala esperar pela cliente nova, Aretha Marques. Num contato preliminar, ela me adiantou que quer os serviços da ANNA porque “precisa se livrar dessa paixão absurda e inegavelmente sem futuro”, segundo suas palavras. Aretha alimenta uma paixão pelo ex-chefe há cerca de um ano. O mais “engraçado”, se é que posso chamar assim, é que nem o fato de ele tê-la mandado embora do emprego serviu como motivo para ela se desapaixonar.
E, como eu estou topando desafios, vamos nessa.
Aretha entra, após ser anunciada por Madonna, com seu corpo enfiado num moletom azul desses que têm estampado o nome de alguma universidade americana. Sorrindo como se estivesse entrando no camarim de seu ídolo musical, ela é um pouco rechonchuda, altura média, cabelos marrons em cachos que caem até um pouco abaixo dos ombros.
“Bom dia, srta. Marques! Pode ficar à vontade, sente-se, por favor!”, eu não largo as formalidades.
“Bom dia nada! O dia está excelente, está lindo, está formidável, meu querido!”, ela esbanja alegria e por um segundo parece que rasgaram a parede e toneladas de raios de sol penetraram o ambiente. E eu tô falando daquele solzinho com óculos escuros e bochechas rosadas. Pois é, tive de recorrer a essa metáfora exagerada para dar uma ideia mínima da sensação.
Seu aperto de mão é tão firme e confiante que me dá até constrangimento não estar na mesma vibe que ela. Você já se sentiu assim, tão inconveniente perto de pessoas que estão num humor bem distinto ao seu?
E, quando percebo, estou sorrindo não apenas por cortesia de prestador de serviço, mas porque eu quero sorrir.
“Que bom que a senhorita está tão... animada, tendo em vista que estamos aqui para tratar de assuntos complicados”.
“Ah, tudo bem! Essas coisas não me abalam. Complicações são parte da vida e a gente tem que saber tirar proveito delas”.
“Certo...”
Gostaria de saber explicar por que esse tipo de gente tão otimista parece tão irritante... Não que seja ruim, não é isso. Esse desconforto deve ser algum resquício da minha fase gótica. Odiava quando alguém tentava cortar minha bad e, pior, quando conseguia. Tudo que eu queria era curtir minha trevosidade e emanar tristeza por onde quer que passasse, então pessoas com esse espírito de “vai-dar-tudo-certo” geralmente eram as primeiras com quem eu evitava contato.
“E então, o que você achou do meu caso?”
“Achei interessante. E intrigante, é claro. Não consigo entender como a senhorita continua apaixonada pela mesma pessoa que lhe tirou o emprego”.
Aretha dá de ombros, mas sustentando o sorrisão.
“Eu exagerei, pra ser sincera. Depois de ter aguentado um ano de paixão secreta e proibida, eu tive a coragem de me declarar pra ele no escritório do parque e tasquei um beijão nele. Foi por isso que ele me despediu. Justa causa.”
Abro a boca, surpreso. Essa parte não tava no formulário, mas tudo bem. Pelo menos agora a situação está mais clara. Se a Madonna resolvesse me roubar um beijo, eu definitivamente teria de mandá-la embora pela audácia. Mas será que isso não tem mais a ver com o fato de eu não achar Madonna atraente? E se ela fosse atraente? Hum, isso soa bem machista... Começo a refletir que eu nunca ouvi falar de Madonna ter um namorado ou namorada ou sequer um crush. Meu Deus, tô concluindo aqui o quanto a vida da minha secretária não me causa o menor interesse... E pior: mesmo depois de ponderar a respeito, sei que ainda vou continuar desinteressado.
“A senhorita achou que ele fosse corresponder e por isso arriscou?”
“Digamos que sim. Mas é que desde que eu adotei uma postura de positividade pra minha vida, eu tenho tido mais coragem e determinação nas minhas decisões. Eu sabia que podia dar errado, mas fui lá e fiz. Perdi o emprego, mas valeu a pena. Pelo menos esse arrependimento eu não vou carregar”.
“Se a senhorita é tão... positiva, por que se desapaixonar? Quero dizer, por que contratar a nossa empresa pra isso, em vez de esperar o tempo passar e a paixão acabar sozinha?”
“Ah, mas é justamente por ser positiva que eu preciso seguir em frente. Eu não posso contar que o tempo vá fazer alguma coisa por mim. Se eu puder fazer antes, melhor ainda. Seguir em frente faz parte de ser uma pessoa como eu. Por que eu iria querer esperar essa paixão terminar sozinha se eu posso pagar pra vocês fazerem isso pra mim? Eu tenho uma vida pra viver, e a vida acontece hoje, meu bem”.
“Entendi...”
Reparo numa informação no formulário dela e ressalto:
“O que exatamente a senhorita fazia no parque Divertix?”
“Eu era a palhacinha Lulu”.
“Faz sentido...”, deixo escapar, mas emendo: “digo, não que a senhorita lembre uma palhaça, mas é que... hã... acho que é bom pra um palhaço ter um comportamento tão empolgado assim, né? Quero dizer, até o seu jeito de falar é meio teatral, meio performático... Tipo, não tô dizendo que a senhora tá atuando ou exagerando no jeito de se comunicar... ou... mentindo, sabe... é que...”
Ela dá uma risada contagiante. Tão contagiante que me leva junto e compartilhamos uma boa gargalhada por dez segundos. Ainda bem que ela explodiu desse jeito, porque eu já tava morrendo de tanto querer me explicar e falhar que nem um imbecil.
“Ai, ai... Você tá todo enrolado”, diz ela. “Mas eu entendi o que você quis dizer. E, sim, eu adorava fazer a palhacinha Lulu. Nossa, era um prazer enorme. Já imaginou? Proporcionar tanta alegria pra criançada, carregar a molecadinha nas costas, fazer eles rirem pelo simples fato de você saber imitar algum animal? Quer ouvir a minha imitação de porco? Ou você prefere cachorrinhos pequineses?”
“Bem, eu... É... Melhor deixar pra uma outra hora, mas tenho certeza que a senhorita arrasa”.
“Obrigada! Eu arraso mesmo, modéstia à parte”.
Fico assentindo com a cabeça, segurando a agonia só de imaginar a pirralhada correndo desvairada e berrando no meu ouvido; moleques e molecas sujos, descabelados, fedendo a suor, peido e salgadinho de queijo, tudo misturado e com direito àquela trilha sonora chatinha e grudenta que ressoa por esse tipo de ambiente em que Aretha trabalhava. Imagino a gurizada me odiando porque tô fazendo eles descobrirem que palhaços são o suprassumo da encheção de saco, e que tudo que eles mais querem é dar um chute bem no meio das minhas bolas ou me atirar da parte mais alta da roda gigante. Todo mundo já teve um desejo secreto envolvendo palhaços e alguma forma de “acidente”. Com eles, claro. Certo? Não há positividade que resista a todo esse cenário imaginado, não em mim.
“Eu nunca perdia a compostura e me mantinha profissional o tempo todo”, continua Aretha, “mesmo na vez em que dois garotos me deram uns chutes bem fortes nas duas pernas. Mas o sorriso e a empolgação estavam lá, inabalados. Positividade!”
Essa mulher diante de mim é um ser humano raro. Seu coração está realmente convencido de que a vida é bela e que o mundo é um doce recheado de hakuna matata. Se eu fosse sacana, meteria a faca e cobraria um preço abusivo, pois esta senhorita claramente é do tipo fácil de enganar. Mas sacana eu não sou, pois pra isso eu teria de me chamar Ivan Castro.
“A senhorita nunca presenciou ou soube de algo que pudesse comprometer seus sentimentos pelo seu ex-patrão? Como é mesmo o nome dele?”
“O nome dele é Bento Mathias. Ele começou a trabalhar com crianças em 1998, quando tinha os seus 20 anos, alegrando as criancinhas da comunidade onde morava. Ele se vestia de palhaço, de Mickey, de Donald, de homem-aranha, de Batman... E com o tempo descobriu que tinha veia de empreendedor e...”
Ótimo. Perguntei um nome e ganhei a biografia do cara que fundou a Carreta Furacão.
“O Divertix é um park buffet, com um espaço amplo e com várias atrações e brinquedos pra toda a família. Por apenas 35 reais a hora, você tem direito a um saquinho médio de pipoca e um copo de refrigerante de 300 ml de sua livre escolha, além de poder aproveitar qualquer brinquedo do parque. E tem wi-fi grátis pros pais usarem enquanto os filhos têm diversão garantida. Sem falar na equipe de funcionários prontos para melhor atendê-lo”.
“Fascinante!”, respondo com meu melhor sorriso, mas um pouco incomodado com essa linguagem decorada de propaganda. “Dá pra notar que a senhorita ainda tem uma verdadeira paixão por esse lugar, hein! Tem certeza que não tá precisando se desapaixonar do Divertix em vez do Bento?”
Aretha dá uma risadinha tímida, encolhendo os ombros como se quisesse dizer “o que se pode fazer?”.
“Mas a senhorita não me respondeu uma coisa que eu perguntei”, digo. “A senhorita nunca presenciou ou soube de algo que pudesse comprometer os seus sentimentos pelo Sr. Mathias? A meu ver, o fato dele ter lhe despedido já seria suficiente, mesmo que tenha sido por conta da sua atitude ousada, mas eu não quero lhe influenciar na sua resposta”.
“Entendo”, diz ela, colocando o indicador e o polegar no queixo e olhando para cima, tentando se recordar de algo. “Sinceramente, não me lembro de nada assim. O Seu Mathias sempre foi um homem generoso e muito correto. Ao fim de cada dia de trabalho, ele sempre reunia os funcionários e nos parabenizava pelas nossas performances. Sempre contava a sua linda história de vida, de como um dia teve de voltar pra casa no último ônibus da noite, ainda fantasiado de Pica-pau, e que naquela ocasião teve vontade de desistir, mas não desistiu. E que bastava olharmos ao nosso redor e ver a que ponto o seu sonho havia chegado”.
“Ele literalmente contava essa história ao fim de cada dia de trabalho?”, pergunto, disfarçando meu horror.
“Sim. E a cada vez era mais emocionante e mais inspirador”.
“Imagino. Deve ter sido uma barra tentar ganhar a vida com entretenimento infantil”.
“O Pica-Pau é o único personagem que o Sr. Mathias não permite no parque. Ele pegou trauma dessa noite no ônibus, porque foi assaltado e os bandidos bateram nele com a cabeça da própria fantasia, enquanto imitavam aquela gargalhada famosa, sabe? Se ele sequer ouvir o barulho daquela gargalhada do Pica-pau, é capaz de surtar. Mas, mesmo assim, não é o bastante pra me desapaixonar. Tá vendo só? Vai ser um grande desafio!”
“Olha, srta. Marques, não vou mentir”, solto um suspiro. “Vou precisar pensar bastante antes de tomar qualquer atitude pra cuidar do seu caso”.
“Mas eu sei que o senhor vai conseguir”, vibra ela. “Sabe por quê?”
Eu a encaro, esperando a resposta, embora eu tenha uma vaga ideia do que ela vai dizer. E então ela diz:
“Positividade!”
Sabia.


Passei a noite anterior inteira buscando uma estratégia de como cuidar do caso de Aretha. E tive de me contentar com a única opção que pareceu a mais razoável (apesar de ser a que eu mais temia).
Estaciono numa avenida próximo ao Divertix e, a poucos metros, já dá pra escutar a musiquinha xarope do Patati e Patatá, ecoando de uma caixa de som cuidadosamente posta do lado de fora. Não deu para estacionar mais perto porque parece que hoje o lugar está lotado e muitos pais decidiram trazer suas crianças no mesmo dia em que eu vim tentar fazer algo pela minha missão. Esse mar de gente já tá me dando coceira...
“Senhor, livrai-me de tropeçar numa criança e que eu não sinta vontade de beliscar nenhuma delas, amém!”, sussurro, indo em direção à entrada.
Existe uma longa fila de adultos e crianças, ambas as gerações parecendo aborrecidas com alguma coisa. Pelas caras, a maior parte dos fedelhos tem no máximo uns oito anos. É assim mesmo: quando vai se aproximando dos 10, ninguém mais quer ser criança. Ou, pelo menos, parecer criança. Me lembro da minha mãe querendo me obrigar a usar cuecas do Cebolinha nessa idade, e eu morto de medo que algum dos meus amiguinhos descobrisse aquilo. Mas consegui, com uma boa birra e batendo os pés solenemente, fazê-la comprar cuecas normais, isto é, com estampas do Dragon Ball ou dos heróis da Marvel. Afinal, eu tava virando um homenzinho e queria ser respeitado... Ok, a minha birra foi muito bem recompensada com uma surra inesquecível antes de obter o que eu queria, e mamãe repetindo por mais de um mês que tinha gastado dinheiro com as cuecas do Cebolinha e tal― falatório que, na verdade, doeu mais do que a surra―, mas o que importou foi que eu me impus.
“Seja bem-vindo ao parque Divertix, lugar de criança feliz!”, uma voz vinda de trás me assusta, cuspindo esse textinho decorado com precisão automática.
É só alguém fantasiado de Peppa Pig (o que não deixa de ser meio medonho), com a voz abafada pelo traje. Um dos olhos está mal costurado, deixando a coisa ainda mais grotesca.
Apenas assinto com a cabeça, e a Peppa agora se põe na minha frente, me encarando. Quero dizer, a cara da personagem tá olhando pra mim, então não dá pra dizer se o pobre infeliz dentro da fantasia tá ciente de que tá atrapalhando meu caminho.
“Sávio! O que tá fazendo aqui?”
Caraca, a pessoa me conhece?
“Sou eu, a Rita Lina!”, explica a pessoa. Por que estou surpreso? “Vem cá, me dá um abraço, meu amigo!”
O abraço sai todo desajeitado, por causa do focinho da porquinha.
“Quer dizer que agora você tá trabalhando aqui, hein...”
“Sim, sim. Depois daquele período vendendo algodão doce, descobri que amo crianças”.
“Sério?”
“No começo foi meio estranho”, descreve ela, abrindo os braços da Peppa, “porque éramos duas pessoas dentro de uma fantasia de My Little Pony, e eu ficava com a parte traseira, sabe... Mas depois fui promovida a usar uma fantasia solo e agora tá tudo belezinha”.
“Uau!”, finjo interesse, mas me dou conta de que Rita pode ser muito útil no caso. “Rita, será que você pode tirar pelo menos a parte da cabeça da fantasia, pra gente conversar?”
“Sinto muito, Sávio”, sua voz sai como se viesse das profundezas de um sonho longínquo. “Quando vestimos as fantasias, não podemos tirá-las, a menos que seja caso de vida ou morte. Se não for nada disso, nossa comunicação vai ter que ser assim como estamos falando agora”.
“Você não se sente agoniada? Não tá, tipo, morrendo de calor aí dentro?
“Ah, eu tô suando que nem uma porca aqui dentro, é verdade e... Peraí! Você ouviu o que eu disse?”
Rita para subitamente de falar pra ficar rindo de si mesma, por notar que acabou de fazer um trocadilho sem querer. Suando que nem uma porca. Parabéns, que brilhante!
“É o seguinte”, eu começo, depois que ela finalmente se recupera, “eu estou num caso pra agência e minha cliente está apaixonada pelo dono desse lugar. Você acha que eu poderia falar com ele agora?”
“Com o Sr. Mathias? Pode ser, ele deve estar no escritório dele. Mas deve estar bem ocupado. Hoje é dia de autógrafos no parque”, explica Rita.
Olho em volta, finalmente compreendendo o porquê de estar tão apinhado. Quem será que está aqui? Minha pergunta é respondida ao bater os olhos numa garotinha loirinha e vesguinha de olhos azuis, abraçada a uma das pernas de sua provável mãe; a garota está usando uma camiseta gigante estampada com a foto de um garoto de aproximadamente doze anos, cujo nome escrito numa imitação da caligrafia original diz “Lucas Corrêa”.
“Esse Lucas Corrêa não é o irmão caçula do Denner? O que é estrela mirim?”, indago.
“Ele mesmo. Todas essas crianças são inscritas no canal que ele tem no Youtube, e vieram aqui pra pegar autógrafo e tirar foto. ‘Uma tarde no parque com Lucas Corrêa’, é o nome do evento”.
“Pelo visto hoje não é um bom dia pra ter vindo aqui”, comento, tentado pela ideia de dar no pé e voltar num dia menos movimentado. Ou, quem sabe, nem voltar. Agora que sei que Rita trabalha aqui, posso tentar marcar de encontrá-la em algum local e sondar informações sobre o Bento Mathias.
“PEPPA PIG!!!!”, um berro estridente de um garotinho de uns cinco anos ecoa ao redor, fazendo todo mundo se voltar para nossa direção. “MANHÊÊÊÊ!!! EU QUERO TIRAR FOTO COM A PEPPAAAAA!!! MANHÊÊÊÊÊ!!!!!”
“O dever me chama, Sávio”, conforma-se Rita, ao perceber que a mãe vai atender o moleque prontamente. “Boa sorte!”
Sozinho e sem direção, decido que vou dar um jeito de resolver essa situação hoje mesmo.


O Divertix é bem a cara do século XXI e sua parafernália é toda pensada na infância atual. Logo que entro no parque propriamente dito, avisto um painel desses onde as pessoas tiram foto, repleto de símbolos que remetem à era digital e às redes sociais, cheias de plaquinhas com frases da moda, tipo “eu curti isso”, “deixei meu like pra esse parque” ou “pisa menos, Divertix!”. Essa última me pareceu meio fora de contexto para o segmento infantil, mas eu não sei direito que tipo de vocabulário a criançada anda usando, então me mantenho em frente.
Há umas três piscinas de bolinhas de tamanhos diferentes, parede de escalada, máquinas de videogame, carrossel, roda gigante, carrinhos bate-bate, karaokê, plataforma para Just Dance, uma área de lanches, e outros brinquedos que eu não tenho a menor ideia de como funcionam e como se chamam. E tem pessoas fantasiadas de tudo quanto é personagem, além de muitos, uma quantidade infindável de palhaços passeando ao longo do lugar. Dá pra ver o quanto essa galera tá realmente precisando desse trampo, porque se portam com a mesma positividade peculiar que Aretha demonstrou ontem. Eles pulam, riem, falam alto... Enfim, ignoram com maestria o fato de que aqui é uma zona incontestável de estresse. Como será a vida de um palhaço ao chegar em casa após “um dia divertido e cheio de muitas brincadeiras eletrizantes?”
Lucas, o irmão mais novo de Denner, está sentado atrás de uma mesa próximo a uma das piscinas de bolinhas. Sobre a mesa, várias bugigangas estampadas com a imagem do garoto. Tem canecas, estojos, cadernos... Estranho é não ter um livro, mas isso provavelmente é questão de tempo. Não deixo de me impressionar, de fato criaram uma marca evidentemente vendável com ele. A mulher de pé ao seu lado faz as vezes de “secretária”, agindo como uma espécie de intermediadora entre ele e seus fãs. Pelos relatos de Denner, essa deve ser a irmã mais velha, Glenda, a quem meu funcionário acusa de se dar bem às custas do menino-celebridade da família.
“Minha senhora, não podemos fazer desconto”, Glenda explica pacientemente a uma mãe cujo filho está tendo dificuldade em segurar o algodão doce e um sacão de pipoca. Reparando melhor, o filho da mulher está parecendo uma cópia de Lucas. “Para aparecerem três pessoas na foto com o Lucas, é um preço diferente. Vai ter de deixar apenas o seu filho com ele, se quiser pagar apenas os 50 reais”.
“Ah, é uma pena, uma pena mesmo”, lamenta a mãe, fazendo bico, porque claramente ela também queria sair na foto. “Mas tudo bem. O Pietro ganhou o concurso de melhor imitação do Lucas na escola. Agora ele só quer andar por aí igual ao ídolo. Pietro tá realizando um sonho”.
Basta uma rápida analisada no look do pequeno Pietro para notar que sua mãe o veste e penteia semelhantemente a Lucas, como se projetasse no próprio filho uma imagem de criança ideal. A julgar pela concentração de Pietro com suas guloseimas, eu diria que ele tá pouco se lixando pro Lucas, mas mãe é mãe, né? Em toda época das nossas vidas elas têm um plano ideal pra gente seguir, de pequenos Lucas na infância a futuros médicos na juventude. Se bem que a minha mãe nunca abriu a boca para dizer que sonhava em me ver nessa ou naquela profissão. Ela era categórica ao afirmar que eu só tinha que dar um jeito de não virar um vagabundo que só dorme e come. Uma vez eu brinquei com ela e disse “ah, é? E se eu virasse um garoto de programa?”, ao que ela respondeu, sem pestanejar: “cuide bem do corpo e não cobre muito barato”.
“Será que dá pra andar logo com isso?”, berra um pai nervosinho de algum lugar da fila, ganhando o apoio de outros pais igualmente impacientes.
Lucas se levanta de sua cadeira e se posiciona ao lado de Pietro, que ameaça abrir um berreiro se tomarem seu saco de pipocas e seu algodão doce por causa da maldita foto. O resultado é risível: Lucas sorrindo para a lente como um verdadeiro profissional, enquanto Pietro franze a testa e não move um músculo da face para sorrir, com os ombros caídos, totalmente indiferente. Os punhos fechados segurando firmemente o saco de pipoca e o algodão doce. É, já posso dizer que atingi um grau de diversão que eu nem sonhei que fosse ter hoje.
Avançando um pouco mais no ambiente, noto que há também um pequeno palco onde cinco pessoas fantasiadas de Mônica estão se preparando para tocar. Isso mesmo, a famosíssima dentuça, baixinha e gorducha dos quadrinhos. Só que o que temos aqui é uma banda musical e, a julgar pelos instrumentos e a postura dos integrantes, estranhamente acredito se tratar de uma banda de rock especialmente para crianças. Curioso e interessante.
“Boa tarde, criançada!”, uma das Mônicas se adianta ao microfone, a voz rouca e grave denunciando se tratar de um homem por baixo da fantasia, muito provavelmente um fumante habitual. “E pra animar mais um dia maravilhoso no Divertix, nós vamos cantar pra vocês. Nós somos os The Mônicas”.
Crianças e pais começam a curtir quando a bandinha entoa os primeiros versos de “Uni-duni-tê”. Alguém precisa avisar esses caras sobre essa cacofonia horrível que o nome “The Mônicas” causa. Não gostaria de acreditar que essa sacada “infernal” foi de propósito. O que é que estão fazendo com as nossas crianças, hein?
Mas vamos lá, preciso continuar me ambientando. Onde será que fica o escritório de Bento Mathias?

Vai nos levar pra um mundo de magia
Onde a fantasia vai entrar na dança
E quando o brilho do amor chegar
Quero é mais brincar, melhor é ser criança

Uni, duni, duni, tê, oooh ooohh
Salamê minguê, oooh oooh
Sorvete colorê, sonho encantado
Onde está você?

Eu disse que essas músicas infantis são grudentas. Mas eu não esperava ser fisgado na armadilha da nostalgia tão sorrateiramente. Fazer cover de Trem da Alegria é muita sacanagem pro meu coração.
Esbarro num dos 300 palhaços que zanzam pra lá e pra cá. Mas não é qualquer esbarrão. O camarada, além de estabanado, acaba por me derramar uma bebida verde na camisa limpíssima.
“Car...amba, bicho!!”, evito um palavrão mais feio, olhando pra enorme mancha que vai se alastrando no meu peito, enquanto o palhaço fica boquiaberto me olhando. “Por que você não olha por onde anda?”
Eu sabia dos riscos desse tipo de acidente, mas tava esperando que uma criança catarrenta acabasse me causando transtornos, não um adulto que ganha a vida usando roupa colorida e um nariz vermelho. Tudo que ele sabe fazer é ficar me olhando com essa cara de tonto, a bocarra aberta como se estivesse articulando um inaudível “ó”. Que ódio!! É por isso que tem muita gente desenvolvendo coulrofobia por aí, de tanto que essas criaturas acabam nos irritando.
“Você pode pelo menos me dizer onde tem um banheiro pra eu poder tentar secar isso?”, eu pergunto meio alto, por causa da música das The Mônicas.
E o palhaço apenas me fita, com os olhos arregalados.
“Você ouviu o que eu disse, cara?”, insisto, começando a sair do sério. Contudo, começo a perceber algo familiar por baixo de toda essa maquiagem. Tem algo nos olhos desse palhaço, algo que começa a despertar meu entendimento para o porquê de ele estar tão surpreso por me ver.
Aos poucos, a cara de abismado dele vai dando lugar à outra emoção. Vejo o semblante dele se transformar e, de repente, não há mais um palhaço, um personagem diante de mim. Há um ser humano cujos olhos estão ficando marejados e a imagem de um homem assustadoramente melancólico se torna nítida pra mim. Essa não!
Minha pressão parece cair quando a verdade me vem como uma marretada na cabeça. Mas pode ser o calor também.
“Sávio!”, ele consegue pronunciar, com aquela voz de que eu quase não me lembro, mas que eu sei reconhecer quando e onde quer que eu escute, mesmo após tantos anos. Sinto como se meu coração estivesse sendo espremido.
“Pai?!”, a voz quase não sai.
E, sob a cantoria contagiante das The Mônicas e o agito de crianças dançando ao som da música, ele e eu permanecemos imóveis, nenhum acreditando que esse reencontro realmente está acontecendo.

Uni, duni, duni, tê, oooh  ooohh
Salamê minguê, ooooh  ooohh
Sorvete Colorê, sonho encantado
Onde está você?


Uni, duni, duni, tê, ooohh ooohhh... 

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