(Sávio)
Os dias têm sido exaustivamente
repetitivos. Termino o que tenho de terminar na ANNA, sempre por volta das 8 da
noite, dispenso Madonna e eu mesmo tranco tudo. Quase sempre Denner e eu saímos
juntos, mas hoje ele está de folga. Aproveitou a ocasião para ir a uma
degustação de geleias exóticas com Rita Lina. Na hora que ele me falou desse
programão, a vontade de julgá-lo foi quase irresistível, mas a pontada de
inveja foi mais forte (mesmo ele tendo frisado que estava curiosíssimo por
provar a geleia de camarão rosa com banana-da-terra, o que liquidaria qualquer
inveja na hora). Tirando o fato de Denner estar presente ou ausente, quase nada
varia. Será que essa sensação de tédio constante faz parte da tal crise dos 30?
Provavelmente.
Parece que nada mais empolga,
nada mais emociona. Quando a gente chega aos 30 e começa a trilhar essa nova
faixa etária, ainda sentimos necessidade de ter algo que nos faça sentir vivos,
de que algo aconteça. Ainda é possível
ter a vivacidade de quem está ingressando nos 20. Além do mais, é sempre bom
ter uma novidade, algo que balance o seu mundo e te dê uma razão para pensar na
vida, e que até mesmo te dê um tantinho de trabalho e preocupação.
Até mesmo os casos da ANNA têm
sido como uma reprise vespertina chata de alguma novela na TV. Preferiria que
fosse como as reprises do Chaves, em que mesmo sabendo que o Seu Madruga vai
levar um tabefe injusto da Dona Florinda, ainda assim é divertido.
Entro no carro e reconsidero a possibilidade
de dar uma passada na tal degustação de geleias exóticas. Enfio a chave na
ignição, ligo o carro e começo a rir por chegar tão ao fundo do poço assim.
Desculpa, Denner, mas não é hoje que vou me entregar a esses tipos de prazeres.
Sei que pra algumas pessoas eu pareceria estranho por colecionar funko pops de personagens de filmes e
séries ou por saber de cor e na sequência correta os nomes dos primeiros 150
pokémon já criados, porém existe uma coisinha chamada limite, não é mesmo?
Se Anna e eu ainda estivéssemos
juntos, certamente eu dirigiria até seu apartamento e lá a gente comeria algo
gostoso, conversaria e terminaríamos debaixo das cobertas. Mesmo soando
repetitivo, as variáveis durante esses encontros sempre faziam uma grande
diferença. Não que eu esteja me lamentando pelo rompimento, pois no fundo eu já
vinha querendo isso. Mas também não vou mentir que não curtia essa rotina.
Estou bem sem esse
relacionamento. Não voltaria para a Anna só porque tô sentindo falta de alguma
coisa. Até porque, como eu disse, tô ansiando por novidades. Talvez a
expectativa por uma novidade te roube um pouco a surpresa do que pode
acontecer, já que de certa maneira você já está no aguardo por algo. A graça
das surpresas está no fato de você não esperar por elas.
E quanto a Mile?
Depois de ter ido confrontar o
Ivan, como me disse que faria, nos falamos pouquíssimo (três vezes, pra ser
exato... e sim, eu contei, e numa delas foi só um “oi” no whatsapp, ao que ela respondeu com um emoji de carinha sorrindo). E
isso já tem uns bons quinze dias. Tô preocupado com ela. Mas depois que
passamos por aquele furacão em nossa amizade, e depois de vê-la colocando
abaixo a sala dos desafios no prédio da Aurora, passei a compreender que
preciso deixar Milena ter seu tempo pra cuidar da própria vida; dar a ela uma
solidão necessária pra se reconstruir.
Ou pode ser que eu esteja errado
e minha amiga esteja precisando de companhia, vai saber... Homens nunca sabem
direito dessas coisas. Bom, Ivan saberia, porque ele é expert em estar disponível quando uma mulher precisa dele. Pena que
usasse essas habilidades a serviço do diabo.
Para ser bem honesto, eu gostaria
que a Milena voltasse pra ANNA. Algo aqui dentro me diz pra esperar até poder
fazer esse convite a ela. A tal história
de dar um tempo a ela para lidar com os últimos acontecimentos.
É tanto devaneio nessa cabeça
que, quando mal me dou conta, já chego em casa.
Abro a porta e, para meu espanto,
tem um loiro sem camisa deitadão de boa no sofá. Mas quem é esse folgado?
“Ah! E aí, Sávio?”, o loiro se vira e me cumprimenta, e eu congelo
olhando pra ele por uns longos cinco segundos, até meu cérebro me fazer entender
que esse é o Dominique!!
“Que negócio é esse? Cadê os seus cabelos?”
“Gostou? Novo visual!”, ele se ajeita no sofá, passando a mão na
cabeça, que agora está com uma merda de um corte normal de homem.
“Não, não gostei nada disso”, sou categórico, e falo sério. “Você é idiota ou o quê? Cortou o cabelo?!
Mas por quê? Ah, não acredito nisso. É coisa da mamãe, né? Oh, mãe!”
Dessa vez dona Lola foi longe
demais na implicância com as madeixas do garoto. Não se faz uma maldade dessas.
Mamãe surge de algum lugar da casa, só de camisola, aturdida com meus gritos.
“Por que a senhora fez isso?”, questiono, apontando para Dominique
como se ele fosse uma falha grave no sistema da realidade.
“Eu não fiz nada”, defende-se ela, limpando os óculos no pano da
camisola. “Mas Deus ouviu minhas orações.
Já nem tô mais sentindo vergonha dele. Inclusive, Dominique, pode voltar a me
marcar nas suas postagens do Face,
meu filho”.
“Não foi a mamãe que obrigou nada”, explica ele, com um sorriso
cínico. “Foi a Bianca que pediu, como uma
prova de amor, sabe? Cada um pediu uma coisa pro outro”.
“Mas, cara”, teimo, “os seus
cabelos são a sua marca. Ou melhor, eram, né? Você era tipo Sansão ou algo
assim. Eram cabelos tão bonitos. Pra mim, perdeu totalmente a identidade. Eu ia
sugerir comprar uma peruca, mas ia ficar pior que amador tentando fazer cosplay”.
“Ah, tá, muito engraçado”, retruca Dominique. “Você só tá assim porque não vai mais poder me encher o saco me
chamando de ‘Rapunzel’ e outras besteiras”.
“Mas é claro! Por que mais eu estaria assim? Olha, eu espero que você
tenha pedido algo de valor equivalente pra essa Bianca, hein! Tem que ser no
mínimo pra ela cortar um dedo fora ou ficar cega de um olho”.
“Hum”, resmunga ele, “dá pra
notar que você é mesmo o irmão mais velho. Teve mais tempo nesse mundo pra
desenvolver a sua estupidez, né? Não foi só um pedido de namorados. E a prova
de amor que eu falei não é o meu amor por ela ou o dela por mim. A gente
resolveu ajudar outras pessoas. Eu cortei o cabelo pra doar pra uma garota da
igreja que tá com câncer, vão fazer uma peruca pra ela. E a Bianca vai doar um
monte de roupas pra uma outra moça que perdeu tudo num incêndio, incluindo
muitas roupas novas. Entendeu? Prova de amor. O que aconteceu é que a Bianca e
eu estávamos querendo fazer alguma coisa legal e cada um escolheu o que o outro
devia fazer. Você devia tentar fazer coisas boas pelas pessoas de vez em
quando”.
“Uau!”, sinto o impacto. Não estava esperando por nada disso. E eu
apenas fico parado aqui, encarando minha mãe e meu irmão, me sentindo um otário.
Um pouquinho ofendido pelo que ele falou, não vou negar; afinal, se um trabalho
como o meu não for considerado um ato de amor ao próximo, então não sei mais o
que é.
Me aproximo de Dominique e o
envolvo com um abraço, que ele permite com certa relutância.
“Cara, isso é muito bonito da sua parte”, admito. “Eu já tava até pensando em violar uma das
regras da ANNA e fazer um serviço de desapaixonamento pra você. Tô até me
sentindo mal agora. Mas, olha, parabéns pelo gesto!”
“Valeu! E, na verdade, eu gostei do corte. Vou até deixar a barba
crescer pra ver se fica uma combinação legal”.
“Só não deixa ficar ridícula igual a barba do Sávio”, mamãe
comenta.
“Mãe, não quebra o clima de broderagem aqui, por favor”, repreendo.
E todos rimos. Essa é a minha
família. Uma das únicas coisas repetidas e manjadas que ainda me fazem sentir
bem nesse mundo. Dona Lola é o meu maior orgulho, a mãe mais corajosa e
dedicada que eu poderia querer. Às vezes paro pra pensar no fato de que nosso
pai não fez tanta falta, na prática. Apesar das vezes em que eu me senti
excluído de grupos de amigos por não ter tido a oportunidade de vivenciar
coisas de pai e filho ou de até hoje ter referências falhas de relacionamentos
parentais.
Por fim, olho meu irmão bem
dentro dos olhos e declaro, do fundo do meu ser emocionado:
“Fique sabendo, mano, que aqui no meu coração, não importa se você
corta o cabelo ou deixa a barba crescer. Aqui, aqui nesse coração duro e cheio de
falhas, você sempre será a minha Rapunzel das trancinhas de mel”.
E o bom e velho Dominique irritadinho
ressurge, me fazendo ganhar a noite.
Acordo às sete e meia pronto para
um dia novinho em folha. “Novinho” é só maneira de dizer, porque já sou capaz
de prever todos os pontos básicos. Chego à agência, encho uma caneca de café e
vou para minha sala esperar pela cliente nova, Aretha Marques. Num contato
preliminar, ela me adiantou que quer os serviços da ANNA porque “precisa se
livrar dessa paixão absurda e inegavelmente sem futuro”, segundo suas palavras.
Aretha alimenta uma paixão pelo ex-chefe há cerca de um ano. O mais “engraçado”,
se é que posso chamar assim, é que nem o fato de ele tê-la mandado embora do
emprego serviu como motivo para ela se desapaixonar.
E, como eu estou topando
desafios, vamos nessa.
Aretha entra, após ser anunciada
por Madonna, com seu corpo enfiado num moletom azul desses que têm estampado o
nome de alguma universidade americana. Sorrindo como se estivesse entrando no
camarim de seu ídolo musical, ela é um pouco rechonchuda, altura média, cabelos
marrons em cachos que caem até um pouco abaixo dos ombros.
“Bom dia, srta. Marques! Pode ficar à vontade, sente-se, por favor!”,
eu não largo as formalidades.
“Bom dia nada! O dia está excelente, está lindo, está formidável, meu
querido!”, ela esbanja alegria e por um segundo parece que rasgaram a
parede e toneladas de raios de sol penetraram o ambiente. E eu tô falando
daquele solzinho com óculos escuros e bochechas rosadas. Pois é, tive de
recorrer a essa metáfora exagerada para dar uma ideia mínima da sensação.
Seu aperto de mão é tão firme e
confiante que me dá até constrangimento não estar na mesma vibe que ela. Você já se sentiu assim, tão inconveniente perto de
pessoas que estão num humor bem distinto ao seu?
E, quando percebo, estou sorrindo
não apenas por cortesia de prestador de serviço, mas porque eu quero sorrir.
“Que bom que a senhorita está tão... animada, tendo em vista que
estamos aqui para tratar de assuntos complicados”.
“Ah, tudo bem! Essas coisas não me abalam. Complicações são parte da
vida e a gente tem que saber tirar proveito delas”.
“Certo...”
Gostaria de saber explicar por
que esse tipo de gente tão otimista parece tão irritante... Não que seja ruim,
não é isso. Esse desconforto deve ser algum resquício da minha fase gótica.
Odiava quando alguém tentava cortar minha bad
e, pior, quando conseguia. Tudo que eu queria era curtir minha trevosidade e
emanar tristeza por onde quer que passasse, então pessoas com esse espírito de
“vai-dar-tudo-certo” geralmente eram as primeiras com quem eu evitava contato.
“E então, o que você achou do meu caso?”
“Achei interessante. E intrigante, é claro. Não consigo entender como a
senhorita continua apaixonada pela mesma pessoa que lhe tirou o emprego”.
Aretha dá de ombros, mas sustentando
o sorrisão.
“Eu exagerei, pra ser sincera. Depois de ter aguentado um ano de paixão
secreta e proibida, eu tive a coragem de me declarar pra ele no escritório do
parque e tasquei um beijão nele. Foi por isso que ele me despediu. Justa
causa.”
Abro a boca, surpreso. Essa parte
não tava no formulário, mas tudo bem. Pelo menos agora a situação está mais
clara. Se a Madonna resolvesse me roubar um beijo, eu definitivamente teria de
mandá-la embora pela audácia. Mas será que isso não tem mais a ver com o fato
de eu não achar Madonna atraente? E se ela fosse atraente? Hum, isso soa bem
machista... Começo a refletir que eu nunca ouvi falar de Madonna ter um
namorado ou namorada ou sequer um crush.
Meu Deus, tô concluindo aqui o quanto a vida da minha secretária não me causa o
menor interesse... E pior: mesmo depois de ponderar a respeito, sei que ainda
vou continuar desinteressado.
“A senhorita achou que ele fosse corresponder e por isso arriscou?”
“Digamos que sim. Mas é que desde que eu adotei uma postura de
positividade pra minha vida, eu tenho tido mais coragem e determinação nas
minhas decisões. Eu sabia que podia dar errado, mas fui lá e fiz. Perdi o
emprego, mas valeu a pena. Pelo menos esse arrependimento eu não vou carregar”.
“Se a senhorita é tão... positiva, por que se desapaixonar? Quero
dizer, por que contratar a nossa empresa pra isso, em vez de esperar o tempo
passar e a paixão acabar sozinha?”
“Ah, mas é justamente por ser positiva que eu preciso seguir em frente.
Eu não posso contar que o tempo vá fazer alguma coisa por mim. Se eu puder
fazer antes, melhor ainda. Seguir em frente faz parte de ser uma pessoa como
eu. Por que eu iria querer esperar essa paixão terminar sozinha se eu posso
pagar pra vocês fazerem isso pra mim? Eu tenho uma vida pra viver, e a vida
acontece hoje, meu bem”.
“Entendi...”
Reparo numa informação no
formulário dela e ressalto:
“O que exatamente a senhorita fazia no parque Divertix?”
“Eu era a palhacinha Lulu”.
“Faz sentido...”, deixo escapar, mas emendo: “digo, não que a senhorita lembre uma palhaça, mas é que... hã... acho
que é bom pra um palhaço ter um comportamento tão empolgado assim, né? Quero
dizer, até o seu jeito de falar é meio teatral, meio performático... Tipo, não
tô dizendo que a senhora tá atuando ou exagerando no jeito de se comunicar...
ou... mentindo, sabe... é que...”
Ela dá uma risada contagiante.
Tão contagiante que me leva junto e compartilhamos uma boa gargalhada por dez
segundos. Ainda bem que ela explodiu desse jeito, porque eu já tava morrendo de
tanto querer me explicar e falhar que nem um imbecil.
“Ai, ai... Você tá todo enrolado”, diz ela. “Mas eu entendi o que você quis dizer. E, sim, eu adorava fazer a
palhacinha Lulu. Nossa, era um prazer enorme. Já imaginou? Proporcionar tanta alegria
pra criançada, carregar a molecadinha nas costas, fazer eles rirem pelo simples
fato de você saber imitar algum animal? Quer ouvir a minha imitação de porco?
Ou você prefere cachorrinhos pequineses?”
“Bem, eu... É... Melhor deixar pra uma outra hora, mas tenho certeza
que a senhorita arrasa”.
“Obrigada! Eu arraso mesmo, modéstia à parte”.
Fico assentindo com a cabeça, segurando
a agonia só de imaginar a pirralhada correndo desvairada e berrando no meu
ouvido; moleques e molecas sujos, descabelados, fedendo a suor, peido e
salgadinho de queijo, tudo misturado e com direito àquela trilha sonora chatinha
e grudenta que ressoa por esse tipo de ambiente em que Aretha trabalhava.
Imagino a gurizada me odiando porque tô fazendo eles descobrirem que palhaços
são o suprassumo da encheção de saco, e que tudo que eles mais querem é dar um
chute bem no meio das minhas bolas ou me atirar da parte mais alta da roda
gigante. Todo mundo já teve um desejo secreto envolvendo palhaços e alguma
forma de “acidente”. Com eles, claro. Certo? Não há positividade que resista a
todo esse cenário imaginado, não em mim.
“Eu nunca perdia a compostura e me mantinha profissional o tempo todo”,
continua Aretha, “mesmo na vez em que
dois garotos me deram uns chutes bem fortes nas duas pernas. Mas o sorriso e a
empolgação estavam lá, inabalados. Positividade!”
Essa mulher diante de mim é um
ser humano raro. Seu coração está realmente convencido de que a vida é bela e
que o mundo é um doce recheado de hakuna matata. Se eu fosse sacana, meteria a
faca e cobraria um preço abusivo, pois esta senhorita claramente é do tipo
fácil de enganar. Mas sacana eu não sou, pois pra isso eu teria de me chamar
Ivan Castro.
“A senhorita nunca presenciou ou soube de algo que pudesse comprometer
seus sentimentos pelo seu ex-patrão? Como é mesmo o nome dele?”
“O nome dele é Bento Mathias. Ele começou a trabalhar com crianças em
1998, quando tinha os seus 20 anos, alegrando as criancinhas da comunidade onde
morava. Ele se vestia de palhaço, de Mickey, de Donald, de homem-aranha, de
Batman... E com o tempo descobriu que tinha veia de empreendedor e...”
Ótimo. Perguntei um nome e ganhei
a biografia do cara que fundou a Carreta Furacão.
“O Divertix é um park buffet,
com um espaço amplo e com várias atrações e brinquedos pra toda a família. Por
apenas 35 reais a hora, você tem direito a um saquinho médio de pipoca e um
copo de refrigerante de 300 ml de sua livre escolha, além de poder aproveitar
qualquer brinquedo do parque. E tem wi-fi grátis pros pais usarem enquanto os
filhos têm diversão garantida. Sem falar na equipe de funcionários prontos para
melhor atendê-lo”.
“Fascinante!”, respondo com meu melhor sorriso, mas um pouco
incomodado com essa linguagem decorada de propaganda. “Dá pra notar que a senhorita ainda tem uma verdadeira paixão por esse
lugar, hein! Tem certeza que não tá precisando se desapaixonar do Divertix em
vez do Bento?”
Aretha dá uma risadinha tímida,
encolhendo os ombros como se quisesse dizer “o que se pode fazer?”.
“Mas a senhorita não me respondeu uma coisa que eu perguntei”,
digo. “A senhorita nunca presenciou ou
soube de algo que pudesse comprometer os seus sentimentos pelo Sr. Mathias? A
meu ver, o fato dele ter lhe despedido já seria suficiente, mesmo que tenha
sido por conta da sua atitude ousada, mas eu não quero lhe influenciar na sua
resposta”.
“Entendo”, diz ela, colocando o indicador e o polegar no queixo e
olhando para cima, tentando se recordar de algo. “Sinceramente, não me lembro de nada assim. O Seu Mathias sempre foi um
homem generoso e muito correto. Ao fim de cada dia de trabalho, ele sempre
reunia os funcionários e nos parabenizava pelas nossas performances. Sempre
contava a sua linda história de vida, de como um dia teve de voltar pra casa no
último ônibus da noite, ainda fantasiado de Pica-pau, e que naquela ocasião
teve vontade de desistir, mas não desistiu. E que bastava olharmos ao nosso
redor e ver a que ponto o seu sonho havia chegado”.
“Ele literalmente contava essa história ao fim de cada dia de
trabalho?”, pergunto, disfarçando meu horror.
“Sim. E a cada vez era mais emocionante e mais inspirador”.
“Imagino. Deve ter sido uma barra tentar ganhar a vida com
entretenimento infantil”.
“O Pica-Pau é o único personagem que o Sr. Mathias não permite no
parque. Ele pegou trauma dessa noite no ônibus, porque foi assaltado e os
bandidos bateram nele com a cabeça da própria fantasia, enquanto imitavam
aquela gargalhada famosa, sabe? Se ele sequer ouvir o barulho daquela
gargalhada do Pica-pau, é capaz de surtar. Mas, mesmo assim, não é o bastante
pra me desapaixonar. Tá vendo só? Vai ser um grande desafio!”
“Olha, srta. Marques, não vou mentir”, solto um suspiro. “Vou precisar pensar bastante antes de tomar
qualquer atitude pra cuidar do seu caso”.
“Mas eu sei que o senhor vai conseguir”, vibra ela. “Sabe por quê?”
Eu a encaro, esperando a
resposta, embora eu tenha uma vaga ideia do que ela vai dizer. E então ela diz:
“Positividade!”
Sabia.
Passei a noite anterior inteira
buscando uma estratégia de como cuidar do caso de Aretha. E tive de me
contentar com a única opção que pareceu a mais razoável (apesar de ser a que eu
mais temia).
Estaciono numa avenida próximo ao
Divertix e, a poucos metros, já dá pra escutar a musiquinha xarope do Patati e
Patatá, ecoando de uma caixa de som cuidadosamente posta do lado de fora. Não
deu para estacionar mais perto porque parece que hoje o lugar está lotado e
muitos pais decidiram trazer suas crianças no mesmo dia em que eu vim tentar
fazer algo pela minha missão. Esse mar de gente já tá me dando coceira...
“Senhor, livrai-me de tropeçar numa criança e que eu não sinta vontade
de beliscar nenhuma delas, amém!”, sussurro, indo em direção à entrada.
Existe uma longa fila de adultos
e crianças, ambas as gerações parecendo aborrecidas com alguma coisa. Pelas
caras, a maior parte dos fedelhos tem no máximo uns oito anos. É assim mesmo:
quando vai se aproximando dos 10, ninguém mais quer ser criança. Ou, pelo
menos, parecer criança. Me lembro da
minha mãe querendo me obrigar a usar cuecas do Cebolinha nessa idade, e eu
morto de medo que algum dos meus amiguinhos descobrisse aquilo. Mas consegui,
com uma boa birra e batendo os pés solenemente, fazê-la comprar cuecas normais,
isto é, com estampas do Dragon Ball
ou dos heróis da Marvel. Afinal, eu
tava virando um homenzinho e queria ser respeitado... Ok, a minha birra foi
muito bem recompensada com uma surra inesquecível antes de obter o que eu
queria, e mamãe repetindo por mais de um mês que tinha gastado dinheiro com as
cuecas do Cebolinha e tal― falatório que, na verdade, doeu mais do que a surra―,
mas o que importou foi que eu me impus.
“Seja bem-vindo ao parque Divertix, lugar de criança feliz!”, uma
voz vinda de trás me assusta, cuspindo esse textinho decorado com precisão
automática.
É só alguém fantasiado de Peppa
Pig (o que não deixa de ser meio medonho), com a voz abafada pelo traje. Um dos
olhos está mal costurado, deixando a coisa ainda mais grotesca.
Apenas assinto com a cabeça, e a
Peppa agora se põe na minha frente, me encarando. Quero dizer, a cara da
personagem tá olhando pra mim, então não dá pra dizer se o pobre infeliz dentro
da fantasia tá ciente de que tá atrapalhando meu caminho.
“Sávio! O que tá fazendo aqui?”
Caraca, a pessoa me conhece?
“Sou eu, a Rita Lina!”, explica a pessoa. Por que estou surpreso? “Vem cá, me dá um abraço, meu amigo!”
O abraço sai todo desajeitado,
por causa do focinho da porquinha.
“Quer dizer que agora você tá trabalhando aqui, hein...”
“Sim, sim. Depois daquele período vendendo algodão doce, descobri que
amo crianças”.
“Sério?”
“No começo foi meio estranho”, descreve ela, abrindo os braços da
Peppa, “porque éramos duas pessoas dentro
de uma fantasia de My Little Pony, e
eu ficava com a parte traseira, sabe... Mas depois fui promovida a usar uma
fantasia solo e agora tá tudo belezinha”.
“Uau!”, finjo interesse, mas me dou conta de que Rita pode ser
muito útil no caso. “Rita, será que você
pode tirar pelo menos a parte da cabeça da fantasia, pra gente conversar?”
“Sinto muito, Sávio”, sua voz sai como se viesse das profundezas de
um sonho longínquo. “Quando vestimos as
fantasias, não podemos tirá-las, a menos que seja caso de vida ou morte. Se não
for nada disso, nossa comunicação vai ter que ser assim como estamos falando
agora”.
“Você não se sente agoniada? Não tá, tipo, morrendo de calor aí dentro?
“Ah, eu tô suando que nem uma porca aqui dentro, é verdade e... Peraí!
Você ouviu o que eu disse?”
Rita para subitamente de falar pra
ficar rindo de si mesma, por notar que acabou de fazer um trocadilho sem
querer. Suando que nem uma porca.
Parabéns, que brilhante!
“É o seguinte”, eu começo, depois que ela finalmente se recupera, “eu estou num caso pra agência e minha
cliente está apaixonada pelo dono desse lugar. Você acha que eu poderia falar
com ele agora?”
“Com o Sr. Mathias? Pode ser, ele deve estar no escritório dele. Mas
deve estar bem ocupado. Hoje é dia de autógrafos no parque”, explica Rita.
Olho em volta, finalmente compreendendo
o porquê de estar tão apinhado. Quem será que está aqui? Minha pergunta é
respondida ao bater os olhos numa garotinha loirinha e vesguinha de olhos
azuis, abraçada a uma das pernas de sua provável mãe; a garota está usando uma
camiseta gigante estampada com a foto de um garoto de aproximadamente doze
anos, cujo nome escrito numa imitação da caligrafia original diz “Lucas
Corrêa”.
“Esse Lucas Corrêa não é o irmão caçula do Denner? O que é estrela
mirim?”, indago.
“Ele mesmo. Todas essas crianças são inscritas no canal que ele tem no Youtube, e vieram aqui pra pegar autógrafo e tirar
foto. ‘Uma tarde no parque com Lucas Corrêa’, é o nome do evento”.
“Pelo visto hoje não é um bom dia pra ter vindo aqui”, comento,
tentado pela ideia de dar no pé e voltar num dia menos movimentado. Ou, quem
sabe, nem voltar. Agora que sei que Rita trabalha aqui, posso tentar marcar de
encontrá-la em algum local e sondar informações sobre o Bento Mathias.
“PEPPA PIG!!!!”, um berro estridente de um garotinho de uns cinco
anos ecoa ao redor, fazendo todo mundo se voltar para nossa direção. “MANHÊÊÊÊ!!! EU QUERO TIRAR FOTO COM A
PEPPAAAAA!!! MANHÊÊÊÊÊ!!!!!”
“O dever me chama, Sávio”, conforma-se Rita, ao perceber que a mãe
vai atender o moleque prontamente. “Boa
sorte!”
Sozinho e sem direção, decido que
vou dar um jeito de resolver essa situação hoje mesmo.
O Divertix é bem a cara do século
XXI e sua parafernália é toda pensada na infância atual. Logo que entro no
parque propriamente dito, avisto um painel desses onde as pessoas tiram foto, repleto
de símbolos que remetem à era digital e às redes sociais, cheias de plaquinhas
com frases da moda, tipo “eu curti isso”, “deixei meu like pra esse parque” ou “pisa menos, Divertix!”. Essa última me
pareceu meio fora de contexto para o segmento infantil, mas eu não sei direito
que tipo de vocabulário a criançada anda usando, então me mantenho em frente.
Há umas três piscinas de bolinhas
de tamanhos diferentes, parede de escalada, máquinas de videogame, carrossel, roda gigante, carrinhos bate-bate, karaokê,
plataforma para Just Dance, uma área
de lanches, e outros brinquedos que eu não tenho a menor ideia de como
funcionam e como se chamam. E tem pessoas fantasiadas de tudo quanto é
personagem, além de muitos, uma quantidade infindável de palhaços passeando ao
longo do lugar. Dá pra ver o quanto essa galera tá realmente precisando desse
trampo, porque se portam com a mesma positividade peculiar que Aretha
demonstrou ontem. Eles pulam, riem, falam alto... Enfim, ignoram com maestria o
fato de que aqui é uma zona incontestável de estresse. Como será a vida de um
palhaço ao chegar em casa após “um dia divertido e cheio de muitas brincadeiras
eletrizantes?”
Lucas, o irmão mais novo de
Denner, está sentado atrás de uma mesa próximo a uma das piscinas de bolinhas.
Sobre a mesa, várias bugigangas estampadas com a imagem do garoto. Tem canecas,
estojos, cadernos... Estranho é não ter um livro, mas isso provavelmente é
questão de tempo. Não deixo de me impressionar, de fato criaram uma marca
evidentemente vendável com ele. A mulher de pé ao seu lado faz as vezes de
“secretária”, agindo como uma espécie de intermediadora entre ele e seus fãs.
Pelos relatos de Denner, essa deve ser a irmã mais velha, Glenda, a quem meu
funcionário acusa de se dar bem às custas do menino-celebridade da família.
“Minha senhora, não podemos fazer desconto”, Glenda explica
pacientemente a uma mãe cujo filho está tendo dificuldade em segurar o algodão
doce e um sacão de pipoca. Reparando melhor, o filho da mulher está parecendo
uma cópia de Lucas. “Para aparecerem três
pessoas na foto com o Lucas, é um preço diferente. Vai ter de deixar apenas o
seu filho com ele, se quiser pagar apenas os 50 reais”.
“Ah, é uma pena, uma pena mesmo”, lamenta a mãe, fazendo bico,
porque claramente ela também queria sair na foto. “Mas tudo bem. O Pietro ganhou o concurso de melhor imitação do Lucas
na escola. Agora ele só quer andar por aí igual ao ídolo. Pietro tá realizando
um sonho”.
Basta uma rápida analisada no look do pequeno Pietro para notar que
sua mãe o veste e penteia semelhantemente a Lucas, como se projetasse no
próprio filho uma imagem de criança ideal. A julgar pela concentração de Pietro
com suas guloseimas, eu diria que ele tá pouco se lixando pro Lucas, mas mãe é
mãe, né? Em toda época das nossas vidas elas têm um plano ideal pra gente
seguir, de pequenos Lucas na infância a futuros médicos na juventude. Se bem
que a minha mãe nunca abriu a boca para dizer que sonhava em me ver nessa ou
naquela profissão. Ela era categórica ao afirmar que eu só tinha que dar um
jeito de não virar um vagabundo que só dorme e come. Uma vez eu brinquei com
ela e disse “ah, é? E se eu virasse um garoto de programa?”, ao que ela
respondeu, sem pestanejar: “cuide bem do corpo e não cobre muito barato”.
“Será que dá pra andar logo com isso?”, berra um pai nervosinho de
algum lugar da fila, ganhando o apoio de outros pais igualmente impacientes.
Lucas se levanta de sua cadeira e
se posiciona ao lado de Pietro, que ameaça abrir um berreiro se tomarem seu
saco de pipocas e seu algodão doce por causa da maldita foto. O resultado é
risível: Lucas sorrindo para a lente como um verdadeiro profissional, enquanto
Pietro franze a testa e não move um músculo da face para sorrir, com os ombros
caídos, totalmente indiferente. Os punhos fechados segurando firmemente o saco
de pipoca e o algodão doce. É, já posso dizer que atingi um grau de diversão que
eu nem sonhei que fosse ter hoje.
Avançando um pouco mais no
ambiente, noto que há também um pequeno palco onde cinco pessoas fantasiadas de
Mônica estão se preparando para tocar. Isso mesmo, a famosíssima dentuça,
baixinha e gorducha dos quadrinhos. Só que o que temos aqui é uma banda musical
e, a julgar pelos instrumentos e a postura dos integrantes, estranhamente
acredito se tratar de uma banda de rock especialmente
para crianças. Curioso e interessante.
“Boa tarde, criançada!”, uma das Mônicas se adianta ao microfone, a
voz rouca e grave denunciando se tratar de um homem por baixo da fantasia,
muito provavelmente um fumante habitual. “E
pra animar mais um dia maravilhoso no Divertix, nós vamos cantar pra vocês. Nós
somos os The Mônicas”.
Crianças e pais começam a curtir
quando a bandinha entoa os primeiros versos de “Uni-duni-tê”. Alguém precisa
avisar esses caras sobre essa cacofonia horrível que o nome “The Mônicas”
causa. Não gostaria de acreditar que essa sacada “infernal” foi de propósito. O
que é que estão fazendo com as nossas crianças, hein?
Mas vamos lá, preciso continuar
me ambientando. Onde será que fica o escritório de Bento Mathias?
Vai nos levar pra um mundo de magia
Onde a fantasia vai entrar na dança
E quando o brilho do amor chegar
Quero é mais brincar, melhor é ser criança
Uni, duni, duni, tê, oooh ooohh
Salamê minguê, oooh oooh
Sorvete colorê, sonho encantado
Onde está você?
Eu disse que essas músicas
infantis são grudentas. Mas eu não esperava ser fisgado na armadilha da
nostalgia tão sorrateiramente. Fazer cover
de Trem da Alegria é muita sacanagem pro meu coração.
Esbarro num dos 300 palhaços que
zanzam pra lá e pra cá. Mas não é qualquer esbarrão. O camarada, além de
estabanado, acaba por me derramar uma bebida verde na camisa limpíssima.
“Car...amba, bicho!!”, evito um palavrão mais feio, olhando pra enorme
mancha que vai se alastrando no meu peito, enquanto o palhaço fica boquiaberto
me olhando. “Por que você não olha por
onde anda?”
Eu sabia dos riscos desse tipo de
acidente, mas tava esperando que uma criança catarrenta acabasse me causando
transtornos, não um adulto que ganha a vida usando roupa colorida e um nariz
vermelho. Tudo que ele sabe fazer é ficar me olhando com essa cara de tonto, a
bocarra aberta como se estivesse articulando um inaudível “ó”. Que ódio!! É por
isso que tem muita gente desenvolvendo coulrofobia por aí, de tanto que essas
criaturas acabam nos irritando.
“Você pode pelo menos me dizer onde tem um banheiro pra eu poder tentar
secar isso?”, eu pergunto meio alto, por causa da música das The Mônicas.
E o palhaço apenas me fita, com
os olhos arregalados.
“Você ouviu o que eu disse, cara?”, insisto, começando a sair do
sério. Contudo, começo a perceber algo familiar por baixo de toda essa
maquiagem. Tem algo nos olhos desse palhaço, algo que começa a despertar meu
entendimento para o porquê de ele estar tão surpreso por me ver.
Aos poucos, a cara de abismado
dele vai dando lugar à outra emoção. Vejo o semblante dele se transformar e, de
repente, não há mais um palhaço, um personagem diante de mim. Há um ser humano
cujos olhos estão ficando marejados e a imagem de um homem assustadoramente
melancólico se torna nítida pra mim. Essa não!
Minha pressão parece cair quando
a verdade me vem como uma marretada na cabeça. Mas pode ser o calor também.
“Sávio!”, ele consegue pronunciar, com aquela voz de que eu quase
não me lembro, mas que eu sei reconhecer quando e onde quer que eu escute,
mesmo após tantos anos. Sinto como se meu coração estivesse sendo espremido.
“Pai?!”, a voz quase não sai.
E, sob a cantoria contagiante das
The Mônicas e o agito de crianças dançando ao som da música, ele e eu
permanecemos imóveis, nenhum acreditando que esse reencontro realmente está
acontecendo.
Uni, duni, duni, tê, oooh ooohh
Salamê minguê, ooooh ooohh
Sorvete Colorê, sonho encantado
Onde está você?
Uni, duni, duni, tê, ooohh ooohhh...
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