Depois que Milena descobriu toda a verdade a respeito de seu relacionamento com Ivan, ela teve ajuda de Sávio para localizar as outras mulheres com quem o empresário se relaciona. Milena levou Ivan até um local ermo, onde o deixa algemado a uma cadeira e começa a confrontá-lo. Quando ele pensa que pode convencê-la com suas palavras, eis que Milena lhe surpreende ao chamar as cinco moças, deixando, assim, o grupo das seis namoradas formado e pronto para um confronto ainda maior. O que será que vai sair desse encontro?
Confira agora os desdobramentos disso.
(Milena)
Vendo aonde minha vida chegou com
os últimos acontecimentos, me deparo com o fato de que eu nunca senti tanto
nojo de alguém como sinto agora pelo Ivan. Diversas vezes afirmei por aí que
senti nojo por uma ou outra pessoa, mas o sentimento é diferente agora. Me faz
entender que o máximo que senti por essas outras pessoas foi só uma chateação,
um aborrecimento que, a bem da verdade, não me atingiu tanto assim. A diferença
é bem mais latente e disso não me resta a menor dúvida.
Algemado à cadeira com cara de cachorro
abandonado, ele mal consegue nos encarar, estampando uma seriedade inquietante.
Preocupado, talvez? Diante dele, nós, os seis prêmios, os seis troféus que ele
conquistou com bons truques e lábia de malandro sedutor. Dos bons, vamos
admitir. Mas tudo ruiu, meu querido Ivan.
Ele baixa o rosto para evitar
nossos olhos.
“Olha pra nós, seu bosta!”, avança uma das namoradas, de nome
Rosane. Uma japa de uns 32 anos com cabelos médios pintados de loiro e, assim
como eu, de corpo rechonchudo.
Rosane levanta o queixo de Ivan,
a contragosto dele. Ainda assim, ele mira o olhar em outra direção.
“Eu ainda tô com esperança de que isso tudo seja uma grande pegadinha,
sabia?”, Rosane começa a se prantear, ainda buscando a atenção dele. Sua
voz sai meio gaguejada.
“Infelizmente não é”, suspiro. “Ele
tinha acabado de assistir ao vídeo de vocês quando eu as chamei. Em nenhum
momento ele negou que tava se relacionando com todas nós. Ele só disse que...”
Detenho minha fala. A próxima
coisa que eu ia dizer pode machucar essas mulheres mais ainda. Eu as trouxe
aqui, mas desconheço meus próprios limites em ter de lidar com elas, se ficarem
extremamente alteradas ao saber que o namorado dissera que elas não significam
nada perto de mim. Até eu esclarecer que ele só estava tentando me ludibriar
com esse papinho, quem me garante que não seria danoso para elas ter de ouvir
isso?
“O que foi que ele disse?”, Ágata, a veterinária alta, de pele
negra e corpo aparentemente bem trabalhado em academia, percebe que eu me
interrompi.
“Nada”, desconverso. “Agora,
nada do que ele diz tem qualquer significado decente”.
“Fala comigo, negão!”, pede Valéria, aproximando-se de Ivan. Ela é uma
moça branca de cabelos curtos com uma franja enorme que praticamente oculta os
olhos verdes como azeitonas. “Me explica
essa história, porque eu não tô acreditando que você fez isso com a sua Val”.
“Por que você fala assim com ele?”, irrita-se Ágata. “Não tá vendo que ele é só mais um homem
lixo, igual a muitos outros? Parece que tá com pena”.
“Anda, negão, por favor...”, mas Valéria ignora. Analisando bem,
ela de fato demonstra estar com mais pena do safado do que de nós, do que de si mesma.
Uma das mulheres, a universitária
Cyntia, se mantém imóvel, chorando copiosamente e em silêncio, com uma das mãos
sobre o rosto. Morena, cabelos ondulados até o meio das costas, não deve ter
mais de 1,60. Outra que só observa, com uma expressão dura feito pedra é
Juliana Maia, que a propósito é minha prima por parte de mãe. Esguia, cabelos
longos e cacheados presos num rabo-de-cavalo, olhos muito arredondados atrás de
um par de óculos de grau. Uma pessoa com quem eu tive pouco contato na vida,
mas nunca tivemos uma relação ruim. No entanto, a vida acha engraçado nos juntar
para descobrir que estávamos nos relacionando com o mesmo homem.
Um churrasco de domingo teria
sido uma ideia melhor, viu, vida? Até um chá de panela, que eu geralmente acho
entediante, seria muito mais aceitável. Fica a dica pra próxima...
“Moças”, eu me pronuncio, “eu
não tive a intenção de chamar vocês aqui pra humilhá-las e constrangê-las.
Mesmo porque, se fosse por isso, eu também seria uma das humilhadas e
constrangidas. E é claro que o fato de vocês estarem aqui não vai desfazer o
fato de que fomos humilhadas e constrangidas, mas...”
“Por que é que você tá falando como se fosse uma espécie de líder
nossa?”, Valéria me interrompe em um tom que mistura desprezo e protesto.
“Deixa ela falar”, repreende Rosane, um pouco mais refeita do
choro, dando lugar a uma aparência de “revolta moderada” agora.
Antes de prosseguir, lanço um olhar
severo para Valéria, mas tento incrementá-lo com um pouco de solidariedade e
empatia, afinal ela também é uma vítima do vampirismo emocional empregado por
Ivan. Algumas mulheres vítimas de vampiros emocionais simplesmente levam mais
tempo do que as outras para sentirem que foram sugadas, então já vi que preciso
ser paciente com Valéria. Desde aquele vídeo-documentário eu notei que ela não
é uma pessoa muito fácil.
“Bom, como eu ia dizendo”, continuo, “eu quis trazê-las aqui pra juntas mostrarmos a este respeitável
senhor... Peraí, peraí, ‘respeitável senhor’ não se enquadra bem, então...
crápula mesmo. Meu objetivo é mostrar pra ele que ele está perdendo tudo numa
só tacada. Todo o engano que ele nos fez passar está se acabando agora, mais
rápido que poeira ao vento. E se alguma vez ele achou que tinha seis mulheres
nas mãos, é necessário que ele testemunhe de perto cada uma pulando fora desse
barco, que somos mulheres fortes e não importa a relação que cada uma teve com
ele ou o tempo que durou, o que ele nos fez foi imperdoável”.
“Eu dediquei três anos da minha vida. Três anos servindo de trouxa
enquanto ele comia vocês a torto e a direito, e depois voltava pra mim como se
eu fosse a única e mais especial do mundo”, resmunga Ágata, ao que ganha um
olhar ligeiramente chocado das outras. “Desculpa
o linguajar, mas o que é que eu posso dizer? É verdade, ué. E o pior é que ele
conseguiu me convencer, isso que é o mais revoltante”.
“Fala comigo, desgraçado!!”, Rosane pega Ivan pelo colarinho da
camisa. Claramente, ela é a mais destemperada. Ou então as outras ainda estão
acanhadas em descer o cacete no mentiroso.
“Esse cara não merece o nosso estresse, Rosane”, tento confortá-la.
Ela baixa um pouco a guarda, soltando-o, mas segue com alguns xingamentos.
“Vocês me desculpem, mas eu vou pra casa e depois marco um encontro com
o Ivan pra conversar”, diz Valéria, a difícil. “Não faz sentido discutir com o meu namorado na frente das amantes”.
“Amantes?!”, Ágata se afeta. “Pois
fique sabendo que eu sou muito mais namorada dele do que você, queridinha. Já
são três anos juntos, completamos no dia 10 de abril. Mas não que eu queira me
vangloriar dessa merda agora”.
“O que foi que você disse?”, rebate Valéria, começando a se
encolerizar. Dirige-se até Ivan. “Negão, é
verdade isso? O aniversário de namoro de vocês é no dia 10 de abril? A mesma
data que o nosso, negão? É sério isso?”
O clima só vai ficando mais tenso
e cada vez mais a gente vai ampliando a consciência de que a cafajestice de
Ivan já beirava algum tipo de psicose. Dois aniversários de namoro no mesmo dia
podem parecer coisas pequenas, mas se pararmos para avaliar que outros fatos
ainda estão encobertos e o quão pouco conhecemos da real personalidade de Ivan,
torna-se assustador. O cara não tem um pingo de decência, minha gente.
Mas eu tô bem confiante. E eu sei
que essas mulheres são fortes e, juntas, vamos cravar hoje aqui a bandeira da
nossa independência emocional.
“Gente, não é hora desse tipo de discussão”, intervenho. “Se duvidar, ele tá até se segurando pra não
rir da nossa cara. Não tem essa de quem é a ‘mais namorada’ ou ‘menos
namorada’. Vamos nos lembrar que ele teve com cada uma de nós uma história, uma
relação independente. Ele nos usou de maneira igual. Todas fomos igualmente
sacaneadas”.
“Eu vou pedir um Uber e ir embora”, finalmente Cyntia, que estava
se debulhando em lágrimas, se manifesta. Seus lábios estão contraídos e ela
revela no rosto o tanto que está machucada.
“Mas já?”, não quero acreditar. Não posso deixar isso acontecer. “Acho difícil ter um carro disponível pra
essas bandas. Deixa que eu te levo, não tem problema”.
Ela volta ao silêncio, me
deixando incerta se vai aceitar minha carona, mas pelo menos parece que vai dar
um tempo dessa ideia.
Ivan continua impassível, espero que
remoendo sua vergonha.
Viro-me para falar com as cinco
mulheres e, embora Valéria tenha usado o termo “líder” de forma pejorativa, é
assim que eu estou me portando no momento. É como se, mesmo compartilhando da
mesma tapeação, eu estivesse com os olhos um pouco mais abertos e até um pouco
mais sóbria. Os poucos anos atuando como agente da ANNA devem ter me treinado
para esse tipo de situação e poder recorrer a uma frieza conveniente. Tá
difícil, mas tô conseguindo.
“Eu quero que vocês venham comigo, por favor”, anuncio.
Elas se entreolham. Está claro
que estou querendo fazer uma pausa no nosso confronto direto ao Ivan, então
pressupõe-se que a coisa por aqui ainda vai demorar um pouco, e elas não
parecem nada animadas com a proposta. Todas devem estar morrendo de vontade de
correr para suas casas e, sei lá, quebrar alguma coisa (tipo eu na sala dos
desafios da Aurora) ou até mesmo buscar um abraço amigo e se afundar de chorar
nos ombros de uma pessoa confiável.
Elas precisam do tempo delas. E
eu lhes darei isso, é óbvio. Entretanto, preciso ensiná-las a ter um pouco mais
de força, sobretudo a demonstrar essa força na frente desse canalha e deixá-lo
ciente de que as coisas vão mudar drasticamente. Tudo bem, ensinar soa prepotente da minha parte, então que eu pelo menos
consiga inspirá-las, trazer um pouco de luz às suas mentes, me fazer ouvida.
Ivan não pode, em hipótese alguma, sequer sentir o cheiro de fragilidade e
vulnerabilidade saindo de alguma delas. Ivan é perigoso e só Deus sabe o que
ele pode fazer com uma mulher sugestionável e disponível às suas artimanhas.
“Muito bem”, digo.
Agora estamos todas sentadas ao
redor de uma mesa de madeira bem grande, dessas onde se fazem grandes almoços
de família. Para ser mais precisa, aqui é um sítio que pertence à família
Kerber, então pedi emprestado aos meus avós paternos dizendo que ia receber
alguns convidados e precisava de um lugar afastado da cidade. Logo, essa mesa
é, de fato, onde sempre rolaram muitos almoços de família, dos mais memoráveis
aos mais enfadonhos. Mas não é hora de nostalgia, então...
O objetivo alcançado envolveu
drogar Ivan e trazê-lo em meu carro (dentro do porta-malas, um pouco exagerado,
eu sei), desencorajando-o a fugir, portanto a distância e o fato de ele estar
sem um veículo próprio. É o que explica todo esse espetáculo.
“Em primeiro lugar”, continuo, “Cyntia,
por que você quer ir embora?”
“O quê?”, ela se surpreende. “Ora,
isso é problema meu!”
Seguro a vontade de bufar de
aborrecimento. Outra Valéria não, né? Paciência, Milena, paciência!
“É, você tá completamente certa. Tem todo o direito de ir embora e
realmente não é problema meu. Mas e como vai ficar essa situação aqui? Vai
esperar o Ivan ir atrás de você pra conversar? Você sabe o que ele vai fazer,
não sabe? Vai tentar te manipular e fazer você esquecer o que ele fez”.
“Eu sei”, ela baixa um pouco a bola. Aleluia! Após um longo
suspiro, continua: “Eu só tô me sentindo
muito desagradável aqui. Vocês não têm ideia do choque que ainda tá na minha
cabeça”.
“É mesmo, é?”, ironiza Ágata, ao que Cyntia olha em volta e percebe
que essa é a realidade de todas nós. Afunda na cadeira de vergonha.
“Eu sei que ele traiu todas nós, mas cada uma sente de um jeito
diferente. E falando por mim, eu simplesmente não quero mais ficar aqui. Agora
que eu sei que é tudo verdade, não quero lidar com isso agora”, explica
Cyntia. “Eu nunca... eu nunca tinha
namorado um homem como ele. Sempre tão gentil, tão atencioso... Achei que era
um presente de Deus e... Nossa! Até falei isso naquele vídeo... Como eu posso
ter sido tão tonta? Se eu pudesse me enterrar, sabe...”
E Cyntia volta a chorar.
“Ele se mostrou o mesmo homem irresistível pra todas nós, Cyntia”,
comenta Ágata, amigavelmente. “Não sei
onde ele aprendeu isso, mas ele pegou todas as características de um bom homem
e manipulou tudo pra fazer a gente de besta, porque nós mulheres temos a
tendência a ser românticas, umas mais e outras menos, mas sempre em algum grau.
E ele soube ser romântico na medida certa, assumindo o papel de um príncipe. O máximo que ele fez foi alterar
algumas coisas no comportamento pra ir se adaptando a cada uma de nós. Ele se
vendeu conforme o gosto do freguês. Ou melhor, das freguesas. E nós gostamos
tanto do... ahn... produto, que nos lambuzamos inteiras e lambemos os dedos e
ficamos de barriga cheia. E eu sinceramente espero que principalmente essa
última parte seja só linguagem figurada”.
“Aprendi com isso que não se deve confiar nas pessoas”, ressalta
Rosane, encarando o nada.
“Não se trata de não confiar nas pessoas”, refuto. “Na verdade, tem mais a ver com o cuidado
que devemos ter na hora de confiar em alguém. O que a gente tá aprendendo aqui
é que esse é um lance delicado pra caramba, e que tá longe de ser uma coisa
fácil. Nem todas as pessoas são indignas de confiança, nem todos os homens são indignos de confiança. Mas estamos
aprendendo aqui a ter mais cautela”.
“Às vezes a vida dá umas lições muito duras, e nem quer saber se você
tá preparado ou não. Ela simplesmente joga a bomba no teu colo e Deus que te
proteja!”, endossa Ágata.
Isso, garotas!! Que bom que a
gente está se entendendo.
“E nós seis precisamos nos unir. Nenhuma é a amante que tem de ser
odiada pela oficial, porque não existe oficial e não existe amante, entendem?”,
discurso. “Trouxe vocês aqui pra gente
combinar de ficar unida contra ele, não ficar de picuinhas umas contra as
outras enquanto o cara tá lá olhando”.
“Já combinamos isso antes de virmos pra esse sítio, lembra?”,
retruca Rosane.
“Lembro, claro, mas você viu muito bem o que tava acontecendo lá no
galpão. Estavam jogando fora todo o combinado”.
“Acho que a gente tem de dar a chance dele se explicar”, alega
Valéria, mais para se opor do que para realmente contribuir.
“E nós vamos fazer isso”, enfatizo, “mas eu precisei chamar vocês aqui antes da gente continuar dando
pressão nele, porque eu vi que vocês ficaram desestabilizadas quando ficamos
todas juntas ali”.
“Uma vez ele me fez vestir uma fantasia de enfermeira antes do sexo.
Posso botar ele de enfermeira também?”, brinca Ágata, apesar de... bem...
hummm... acho que ela não tá brincando, não.
“Ai, pelo amor de Deus! Vê se poupa a gente dessas besteiras ridículas!
Não sou obrigada a aturar isso. Uma mulher nessa idade, tenha paciência!!”,
reclama Valéria, e dessa vez concordo um pouco com ela, ninguém quer ficar
imaginando as estripulias sexuais de ninguém, ainda mais nessas circunstâncias.
Ágata põe as mãos na cintura,
boquiaberta, e com o olhar eu a faço entender que é inútil discutir com
Valéria. Ágata resigna-se, então, a falar sobre outra coisa:
“Eu não vou devolver o Bombom”, determina ela, referindo-se ao
cachorro que ganhara de Ivan certa vez. “Talvez
eu mude o nome pra algo que não lembre o infeliz, mas o cachorro é honesto e
não vai me trair. E se me trair, pode jogar o mundo no lixo porque não serve
mais pra nada”.
“Como eu vou encarar os meus amigos? Todo mundo sabe que eu tava
namorando, já tinha apresentado o Ivan pras minhas melhores amigas”,
queixa-se Rosane. “Eu sei que elas vão me
apoiar e tentar me ajudar, mas eu vou ficar pra sempre com essa fama horrível.
Meu Deus, isso é tão degradante!! Depois dessa, não vou mais querer saber de
homem tão cedo”.
Olhando para ela, sinto acender
uma faísca que me traz à tona uma lembrança um tanto distante, da noite em que
Rita Lina “morreu”, durante a despedida que eu tava dando para o meu pai em
casa. Na ocasião, eu havia convidado Tatiana, uma antiga colega dos tempos do
Santo Cristo, no que era meu plano de ajudar o Sávio a se desapaixonar da Anna
pela segunda vez. Quando Tatiana finalmente chegou à minha casa, ao se deparar
com o Ivan, ela soltou uma pergunta que agora faz tanto sentido que dá vontade
de berrar pra mim mesma: “burra, burra, burra, buuuurrraaaaa!!!”. Ela lhe
perguntara se ele não era o “namorado da Rosane”, o que gerou um pequeno
constrangimento na hora, afinal quem gosta de ser confundido assim? Mas nunca
se tratou de confusão coisíssima nenhuma. A verdade já havia tentado me
estapear no meio da cara e o meu alerta não deu nem uma piscadinha. Agora
imagino que o furico do Ivan deve ter ficado de um jeito que não passava nem um
átomo quando Tati o reconhecera.
No entanto, vou guardar essa
minha “nova descoberta” só pra mim mesma, porque preciso manter minha postura
diante das moças. Deus me livre me descontrolar aqui!
Juliana, minha prima, atrai minha
atenção por estar muito quieta, praticamente não interage. Vez ou outra esboça
algumas reações. Como psicóloga, compreendo que devemos respeitar a forma como
cada pessoa reage a uma determinada circunstância, mas até onde consigo me
lembrar da personalidade da Ju, ela não é exatamente uma pessoa retraída. Até
vídeos pro Youtube ela faz
frequentemente, toda eloquente e desenvolta, apesar de alguns conteúdos
sem-noção, como quando ela participou de um tal desafio em que tinha de comer
várias coisas aleatórias depois de batidas no liquidificador. Fiquei tipo
“hã”?! Mas relevei, afinal em tempos de likes
e views, tá valendo praticamente
tudo. As mais de 20 mil visualizações foram mais do que suficientes pra mim.
“E você, Ju?”, tento um contato. Vai que ela está agindo como eu na
sala dos desafios, isto é, prestes a explodir e mandar tudo abaixo. Conhecendo
a vovó Kerber, se ela sonhar com alguém sequer arranhando algum de seus
pertences, é capaz de arrancar nosso couro com uma mão e nos estripar com a
outra, enquanto faz tricô com os pés.
“Eu tô aqui na minha”, responde ela, procurando ser o mais evasiva
possível.
“Você tá querendo dizer alguma coisa? Pode se abrir, todas nós somos
aliadas”.
“Não, não, eu... só tô processando os fatos”.
“Se for melhor pra você, a gente pode entrar e falar em particular”,
insisto.
Ela me responde com um sorriso
apenas.
“É verdade que vocês são primas?”, indaga Rosane.
Respiro fundo, porque sei como
parece. Piora o fato de que Ivan não só pegou o tanto de mulheres que pegou ao
mesmo tempo, como dá a ele o “crédito” de ter engambelado duas mulheres da
mesma família.
“É verdade sim”, confirmo.
“Isso não é nada”, resmunga Valéria. “Ele teve a cara de pau de iniciar um namoro no mesmo dia em que nós
comemoramos o nosso aniversário de
namoro. Querem mais canalhice que isso?”
“Eu achei que já tinha passado
a parte das briguinhas infantis”, irrita-se Cyntia.
Ela levanta e xinga um palavrão que faz meus pelos do braço se eriçarem.
Se o pastor dela presenciasse a exuberância com que ela se expressou agora, provavelmente
teria um ataque do coração depois de exclamar alguma frase religiosa. Contudo,
na situação em que estamos, é o mínimo que se espera.
“Vamos voltar pro galpão e aí
cada uma vai poder dizer o que quiser pra ele, dizer tudo o que está sentindo e
que decisões vai tomar. Combinado?”, digo, a fim de evitar que essas mulheres percam ainda mais as
estribeiras.
Exalo toda essa positividade, apesar de saber que o que está
acontecendo hoje não é nada perto do que há de vir. A pior parte de quando um
coração é partido não é o momento em que ele se parte, mas todos os dias que
vêm depois, em que a pessoa fica remoendo e sentindo morrer por dentro todas as
ilusões criadas entorno do amor e seus derivados. Inevitavelmente, minha mente
cruza com a ideia de suicídio. Sinto um arzinho congelante na espinha. Não que
eu me mataria, mas o quanto de fragilidade existe na alma de cada uma dessas
mulheres? O quanto elas poderão suportar? Quem me garante que Ágata, por
exemplo, que aparenta estar um pouco mais lúcida em relação às outras, não
chegará em casa e pendurará uma corda no pescoço e dará cabo de si mesma?
Aquele trauma que eu tive com um cliente sempre me assombrará toda vez que eu
duvidar que certas atitudes drásticas podem ser tomadas. Ou toda vez que eu achar
que uma pessoa está bem, quando algo me disser que não está.
Começo a reconsiderar se foi uma boa trazê-las aqui. O que eu fiz? Uma
maneira de me vingar do Ivan? Essa é tão-somente a minha maneira de fazer isso
ou de fato estou preocupada com as emoções alheias e só quero proporcionar a
essas moças um momento de dignidade ao colocá-las diante de seu defraudador de
sentimentos? O confronto é necessário?
O quanto do meu problema eu estou resolvendo me utilizando da
conveniência de que este problema é compartilhado com outros cinco seres
humanos? Estou fazendo isso por mim ou por nós?
“Concordo. Vamos!”, diz Rosane, levantando-se e encorajando as
outras a fazer o mesmo.
Não deixo de notar que Valéria ainda não foi convencida de que faz
parte do sexteto mais iludido da face da terra. Ela sustenta no olhar uma
expressão um tanto indecifrável, mas nada que me faça pensar que ela está
confortável com isso.
Quando voltamos, Ivan está mais sereno. Ainda cultiva a cara de falso
inocente, porém com mais plenitude, como se não pudesse fazer nada além de
aceitar que foi pego. É de se admirar que ele não pareça mais tão desesperado,
dado o fato de que está há pelo menos uma hora algemado a uma cadeira e, a
julgar pela maneira que se mexe de vez em quando, está desfrutando de um belo
desconforto.
“Nós seis combinamos que vamos
deixar você se explicar”,
informo.
Ele não diz palavra.
“Não que isso vá fazer alguma
diferença”, continuo, “mas é pra te mostrar que não somos tão
indecentes quanto você”.
Ele me encara. Depois volta-se para as outras, e é encarado por elas de
volta. Na certa tentando adivinhar qual é a mais vulnerável, a menos blindada,
para então fazer alguma investida para tentar desmantelar a união de nosso
grupo.
Ivan suspira, faz uma careta dando a entender que gostaria que eu o
desalgemasse.
“Não vou te soltar. Todas nós
estamos muito satisfeitas em te ver assim”.
“Milena...”, ele fala meu nome em tom de súplica, como
se quisesse me convencer de que agi com infantilidade ao prendê-lo, mas eu tô
cagando pra isso.
Vendo que não vai dar em nada, ele solta mais um suspiro e, enfim,
resolve falar mais:
“Bom, já que é assim... É pra
agradecer a chance que estão me dando de poder me explicar?”
“Debochado!”, surpreende-se Rosane, erguendo as
sobrancelhas.
“Esse safado não tá arrependido
nem um pouquinho”, acusa
Ágata.
“Gente, não!”, ele faz uma mesura com a cabeça, como se
estivesse se desculpando. “Não é por aí,
tá? Não vamos ficar nos ofendendo, por favor. Vamos nos resolver como adultos.
A verdade foi exposta mesmo, não é? Não vou ficar tentando bancar o inocente,
porque eu fui um cretino e isso já tá mais do que provado. Então vamos
conversar sem baixaria e sem violência”.
“Sem violência, com certeza,
né? Tá com medo da gente descer a porrada em você?”, zomba Ágata.
“Ágata, por favor...”, insiste Ivan.
“Ágata, por favor!!”, ela o arremeda usando uma voz aguda, como se
fosse uma criancinha choramingando, mas na verdade está com sangue nos olhos. “Por favor o que, hein? Por favor o quê? Vai
querer que a gente te perdoe pela safadeza? Vai querer que a gente volte pra
casa e simplesmente esqueça o que você fez com a gente? Aqui tem seis mulheres,
seu porra! Seis mulheres, entendeu? Você brincou com seis mulheres, não foi com
seis robôs ou seis brinquedos. Debaixo dessas carnes tem corações que batem,
que sangram e que sonham. E você, seu merda de uma figa, tripudiou em cima de
cada um desses corações, como se a gente não passasse de um grande pedaço de
nada. Usou a gente como se nós fôssemos uma das suas porcarias de coleções,
cretino miserável. Você tem noção do que você fez? Hein? Tem noção, caralho?”
Ágata se aproxima dele enquanto berra outros impropérios e, do nada,
recua. Tá aí o que eu temia: a mulher que, depois de mim, parecia a mais
determinada e ciente de que pertence ao lado das vítimas e que brigaria com
unhas e dentes até o fim, começa a desmoronar. E seu choro começa tímido, mas
logo desata num ruído esquisito, porém pueril, como se fosse uma garotinha
muito assustada. Ela vem até mim e meu primeiro impulso é apenas abraçá-la.
É lamentável ver que não começamos bem.
“Eu tenho noção, Ágata. Eu sei
o que eu fiz. Eu fiz por puro prazer, eu brinquei realmente com os corações de
todas vocês, e isso não tem perdão”, Ivan responde, sério e amargurado. “Mas você tem que entender que eu sou doente. Todas vocês precisam
entender que eu sou doente. Psicologicamente doente”.
“Tava demorando a usar uma
desculpa dessas”, comenta
Rosane.
“Se você tem consciência de que
é doente, por que não pediu ajuda?”, questiona Cyntia, outra vez me surpreendendo com sua manifestação.
“Porque faz parte da doença eu
enganar a mim mesmo de que não preciso de ajuda”.
“Ah, tá”, Ágata se solta de mim. “Você acha que a gente cai nessa?”
“Vocês precisam acreditar em
mim. Essa é a história. Essa é a verdade”.
“Verdade é uma coisinha
complicada de acordo com o seu histórico, Ivan”, rebate Cyntia.
O que é isso no rosto dele? Lágrimas?
“Era só o que me faltava, agora
ele vai chorar”, Ágata fica
ainda mais irada. “Vamos arrancar o couro
desse patife, meninas, talvez dê pra fazer umas bolsas com ele”.
Caminho para mais perto dele, no intuito de controlar melhor a pequena
balbúrdia que se formou depois que ele afirmou que é doente e começou a botar
pra fora essas lágrimas de crocodilo.
“Ivan, doente ou não, a gente
não tem culpa alguma disso. Se você é doente como tá falando, vai procurar um
tratamento, ao invés de ficar seduzindo mulheres e fazendo elas acreditarem que
você é um homem sério e de caráter. Tudo que nós queremos agora é saber o
porquê de ter feito o que fez, e se essa tal doença é o seu porquê, então o
assunto se encerra por aqui e cada um vai pro seu canto, e isso inclui você
ficar longe de nós e nunca mais nos procurar”.
“Qual é o nome da sua doença,
negão?”, indaga Valéria,
fazendo as vezes de mãezinha preocupada. Sabe aquela mãe que vive passando
desgosto com o filho, mas está sempre de braços abertos? Então. A
condescendência dessa mulher estraga tudo, além de me enojar.
“Eu... eu não sei...”, responde ele, lançando a ela um olhar
afetuoso, certo de que encontrou em uma de nós o amparo necessário para semear
mais mentiras. “Eu nunca parei pra
pesquisar sobre isso, pra me informar... Mas eu sei que é uma doença. Que tipo
de pessoa faria o que eu fiz? Que tipo de pessoa enganaria pessoas assim, a
ponto de ter seis namoradas? Vejam bem, se vocês puderem me entender, escutem
muito bem, prestem atenção, por favor! Não era uma namorada e cinco amantes.
Eram seis namoradas. Namoradas! Eu tinha todas no mesmo patamar, na mesma
estima. Eu nunca traí vocês, de fato. Eu apenas omiti que estava amando e me
relacionando com seis mulheres simultaneamente. Isso não parece uma doença pra
vocês? Dá pra acreditar que uma pessoa faria tudo isso deliberadamente em plena
sanidade? Meninas, isso aqui é um desabafo, é um puro pedido de socorro. Eu tô
admitindo que eu tenho um problema. Eu preciso de ajuda!”
“Puta que pariu!”, esbraveja Ágata, fazendo voar gotículas de
saliva. “Você ouviu o que acabou de
dizer, Ivan? Porra, dá pra acreditar num cara desses? Eu não acredito que você
tem tanta cara de pau pra dar uma justificativa dessas”.
“Mas é verdade, Ágata. É como
um vício. Posso dizer que eu sou viciado em mulheres. É isso! Eu sou viciado em
mulheres. Desde a primeira vez que me envolvi com mais de uma mulher ao mesmo
tempo, foi como se eu tivesse provado uma droga e depois não consegui me
libertar. É a única explicação”.
“Você mente e nem treme”, observa Rosane.
“O que vocês querem? Um laudo médico?
Querem que eu vá me consultar com um psiquiatra, sei lá, e prove que eu tenho
uma doença? Não seja por isso. Amanhã mesmo eu tomo todas as providências e aí
vocês vão ver que eu não estou mentindo. Mas por enquanto, meninas, eu só posso
pedir perdão e dizer que eu tô muito, muito arrependido”.
Valéria olha para ele, comovida e agora até ela está começando a
chorar.
“Valéria, você tá acreditando
nele?!”, me deixo pasmar.
“Ele... ele... tem uma doença.
Será que você não vê?”
“Valéria, não!”, reclamo e a puxo pelo braço. Segurando em
seus ombros e olhando-a no fundo dos olhos verde-escuros, digo com toda a
firmeza possível: “Você não veio aqui pra
deixar barato, Valéria. Já chega desse seu comportamento de ficar dando muito
espaço pro Ivan. Olha o que ele tá fazendo com você. Você precisa se impor,
precisa se posicionar. Não deixa ele manipular você, Valéria! Não deixa!”
Ela faz uma careta de zangada, sacode os ombros para que eu a solte, e
se afasta um pouco do grupo. Espero que isso seja apenas o sinal de que ela
aceitou minhas palavras, mesmo a contragosto.
“Apesar de tudo”, retoma Ivan, “eu tô feliz que isso aconteceu. Quero dizer, eu tô feliz que vocês
descobriram sobre isso. Sabe, eu já não aguentava mais ter de esconder que eu
amo seis mulheres incríveis. E sabendo que nunca teria a compreensão de
ninguém, tive de esconder isso todo esse tempo. Eu me senti mal pra caramba,
meninas, vocês nem fazem ideia. Agora eu me sinto liberto desse peso. Os
segredos morreram. Finalmente eu me sinto aliviado por poder ser mais
verdadeiro, apesar de vocês estarem me odiando por isso”.
Ele se mexe outra vez, tentando me sensibilizar a respeito das algemas.
Não dou a mínima.
“Sabe, se vocês topassem, nós
sete poderíamos ser felizes juntos. Sim, é verdade. Já ouviram falar de
poliamor?”
“O quê?”, surpreendo-me. “Você não pode estar falando sério!”
“Acho que ele desistiu do papo
de ser doente”, diz Ágata.
“Não é um bicho de sete
cabeças”, replica ele, e
suas lágrimas mentirosas agora dão lugar a um sorriso se formando. “Se vocês pesquisarem, vão ver que muita
gente já pratica o poliamor. A princípio, a tendência é encarar com preconceito
mesmo, mas a ideia não é ruim”.
“Poliamor? Peraí, você tá insinuando
que deveria formar, tipo assim, um harém com a gente?! E que a gente deveria
aceitar isso numa boa?”,
indaga Rosane.
“O poliamor dá certo porque os
seres humanos não nasceram pra monogamia, Rosane. Vocês me acossaram hoje aqui,
mas se tivessem de fazer isso com cada homem que trai ou pelo menos cogita
trair, não sei se iria sobrar algum homem decente aos olhos da sociedade.
Acreditem em mim! A maioria dos pais, tios, irmãos e primos de vocês são uns
safados com um monte de fantasias e desejos escondidos que vocês não conseguem
nem imaginar. Alguns são extremamente talentosos em se disfarçar de bons
sujeitos, carinhosos, acolhedores, amigos, mas dentro deles existem verdadeiras
feras famintas que não se contentam com apenas uma mulher. O problema é que
poucos são pegos, como eu fui. Mas é assim desde sempre, e sempre vai ser. A
proposta do poliamor evitaria certas dores de cabeça, vocês não acham?”
“Você é sujo, Ivan!”, acuso.
“Como você tem coragem de fazer esse showzinho com lágrimas e tudo, dizer que é
doente e depois vir com uma proposta indecorosa assim? Você é o pior exemplo de
homem lixo que eu já tive o azar e o desprazer de conhecer, e dificilmente vou
conhecer outro assim”, despejo, num misto de pena, fúria e revolta. Chego
bem pertinho dele e me agacho para dizer: “Não
adianta tentar fazer a nossa cabeça, Ivan. Não adianta tentar fazer joguinhos
com a gente. Nós viemos até aqui muito decididas a pôr um fim nessa história
tão nefasta que você criou. Hoje é o dia que Ivan Castro está sendo derrotado,
e por enquanto eu até que tô de boa em acabar com você apenas assim, mas se
você continuar tentando fazer esses jogos mentais com essas mulheres, eu vou te
expor em público de um jeito que você vai ter de mudar de planeta pra tentar
encontrar uma nova namorada de novo”.
Dessa vez ele não desvia o olhar, o que, aliás, me deixa incomodada.
Ele claramente não está mais se portando como o Ivan que deixamos aqui antes de
irmos discutir ao redor da mesa dos meus avós.
“Você tá mesmo disposta a
terminar comigo, Milena?”,
ele cochicha pra mim, enquanto as outras cinco estão comentando alguma coisa ou
simplesmente xingando ele. “Depois de
todo esse tempo juntos, aprendendo a ser amada de novo? Depois do tanto que eu
te ajudei, de todo o apoio que eu sempre te dei? Sabe, eu tenho uma
curiosidade: quem é que você vai achar pra substituir a sua mamãezinha morta
dessa vez, hein?”
“O que você tá falando, seu
escroto?”, pergunto, mas
sinto a garganta secar repentinamente.
“É isso mesmo que você ouviu,
Milena. Nossa! Você acha que eu mereço ser abandonado depois de ter que ouvir
você se lamentando tanto que perdeu a mãe quando era adolescente, que o meu
amor e o meu carinho te ajudaram a lidar com esse peso que você carrega até
hoje, com essa solidão, com esse vazio? Quantas vezes você se lembrou dela e da
falta que ela te fez e faz, mas eu estava lá pra te abraçar e te proteger? E o
seu pai, Milena? Hum? Tão distante, tão indiferente... Mas o meu beijo não. O
meu beijo, o meu toque, as minhas palavras... Ah! Eu nunca te abandonei como
seu pai fez com você, não foi? Vai negar isso agora? Vai deixar a nossa
história pra trás assim, tão fácil? Por que você não lutou por mim em vez de
fazer todo esse espetáculo aqui? Quem vai te consolar, Milena? Quem vai te
deixar pra cima e te fazer se sentir linda e maravilhosa com as palavras
certas? É isso mesmo que você quer?”
Maldito desgraçado. Maldito desgraçado!! Ai, que vontade de socar a
cara desse puto até deixá-lo desfigurado!!
“Boa tentativa, Ivan”, sussurro, com um leve tremor nos lábios, e
ele deve ter visto isso. Me bate um alívio enorme por não ter gaguejado, porque
de alguma forma ele encontrou uma passagem para me atingir bem na ferida certa.
Quanto menos ele souber que conseguiu me balançar, melhor.
Levanto-me e me afasto, fulminando-o com um ódio controlado, disfarçado,
mas muito latente no meu íntimo.
“Tem uma coisa errada no vídeo
que você mostrou, Milena”,
Ivan fala alto, propositadamente para chamar a atenção de todas.
Ele passa o olhar por cada uma de nós, mas se detém em Juliana, minha
prima.
“A história de como a Juliana
me conheceu tá errada”,
explica ele.
Juliana empalidece instantaneamente. E eu tenho a mais forte impressão
de que vai dar merda.
“Sabe por que a história tá
errada?”, Ivan continua
atiçando.
“Ivan, cala a boca!”, ordena Ju, corando de vergonha e raiva.
Mas Ivan não se importa:
“Porque essa pessoa que ela tá
descrevendo no vídeo é o verdadeiro namorado dela. O oficial, vamos dizer
assim. Não é verdade, Ju?”
É automático: todas nós compreendemos de imediato o que está
acontecendo aqui. E eu não tô querendo dar o braço a torcer e acreditar nisso.
“Juliana”, me volto pra ela, que já está com o rosto
mais vermelho e agora molhado, “isso não
é verdade, né? Pelo amor de Deus, Juliana, não me diz que você fez uma burrada
desse tamanho! Juliana do céu!”
“Que reviravolta, hein, gente!”, exclama o cínico. “No fim das contas, eu é que era amante de alguém aqui”.
“Ju...”, me ponho de frente à ela.
“Confesso que você me enganou
por mais tempo do que eu esperaria de alguém, viu, Ju? Só fui descobrir no ano
passado. Quem diria, hein! Três anos sendo usado como um escape barato. Mas nem
por isso eu te larguei, não foi? Ah, essas coisas que a gente faz por amor...”, ele conclui, dando de ombros. “Mas eu perdoo você, Ju, do fundo do meu
coração”.
“É verdade!”, ela nem hesita e confirma a história, com
ira plantada em sua cara. Mas, por alguma razão, sei que não está brava comigo.
Muito provavelmente consigo mesma, provando o sabor ácido e cruel de ter se
autossabotado.
“Caramba...”, lamento, deixando meu semblante cair.
“Mas eu terminei com meu
namorado faz cinco dias”,
argumenta ela, se atropelando nas palavras, provavelmente sentindo o mundo
girar e o chão sob seus pés sumirem. “Eu
confessei tudo pra ele e dei um fim no relacionamento. Tudo pra poder ficar com
o Ivan e me livrar da culpa pelo que eu fiz. Aí eu me deparo com isso!”,
ela estende o braço para Ivan e faz uma meia-lua abrangendo as outras e eu.
“Cacete!”, exclama Ágata, mas sem alterar a voz,
apenas se dando conta da virada que acabamos de sofrer.
“Menina, você é louca?”, Rosane se precipita contra Juliana, e eu me
ponho entre elas.
“Calma, Rosane, por favor!
Calma!”
“Louca por quê?”, responde Juliana. “Eu cometi um erro mesmo, é verdade. Por acaso você nunca cometeu algo
tão idiota? Você acha que eu me orgulho disso? Eu não sabia que ele era esse
tipo de homem! Além do mais, eu tomei a coragem de assumir pro meu ex-namorado
o que eu tava fazendo e tomei uma decisão. Tarde demais, mas tomei. Você acha
que foi fácil?”
“Quem disse que é tarde demais,
Ju?”, diz Ivan, com a voz
mansa. “A gente ainda pode ficar junto.
Eu ainda amo você”.
“Cala a boca!”, ordeno a ele.
“Eu amo todas vocês, meninas. E
eu ainda tenho tanto amor pra dar pra vocês, que é quase uma fonte inesgotável.
Todas vocês são especiais pra mim, por isso que eu nunca consegui escolher só
uma. É uma pena enorme que meus sentimentos não sejam compreendidos. Eu sinto
muito, muito mesmo”.
“CALA A SUA BOCA, IVAN! CALA A
MERDA DESSA BOCA!”,
esbravejo, retomando a firmeza de outrora que eu havia perdido quando ele
atacou meus pontos fracos.
“Olha aqui, Milena!”, é Valéria quem sai em apoio dele, apontando
um dedo contra mim. “Eu já falei antes e
vou repetir: quem te escolheu como líder? Sei que eu não escolhi. E eu posso
falar e pensar por mim mesma. E eu acredito em tudo que esse homem diz, porque
ninguém jamais me amou e me fez tão feliz do jeito que ele me fez. E por causa
disso eu sou capaz de passar por cima de qualquer coisa”.
“Essa mulher só pode estar
delirando”, fala Ágata. “Você vai perdoar toda essa humilhação? Vai
assinar em baixo que ele te usou e deixar tudo por isso mesmo? Tem mulher que
nasceu pra sofrer, viu?”
“Ele não me usou, sua
intrometida”, retruca ela,
visivelmente transtornada. “Mas o mínimo
que eu devo ao Ivan é um pouco de compreensão pelo vício que ele tem. E querem
saber de mais uma coisa? Até que essa história de poliamor não me parece tão
ruim. Desde que eu continue com o meu negão, tô pouco me lixando pras outras.
Em dois anos que ele ficou comigo e com vocês, posso afirmar com toda a certeza
que eu fui muito mais feliz do que todas as minhas amigas com seus namorados e
maridos monogâmicos, que provavelmente são apenas uns hipócritas que não podem
assumir o que realmente são pra sociedade”.
Valéria parece um papagaio perfeito, que assimila e reproduz tudo o que
seu dono ensina. Ela, então, se aproxima de Ivan, acaricia seu rosto e profere
as palavras que selam sua fragilidade e, por conseguinte, a do grupo:
“Eu quero continuar com você,
negão”.
“Obrigado, meu amor”, corresponde ele, o olhar reluzindo.
Ele sorri e ela o beija. Valéria nunca esteve do nosso lado.
Não sei se é um erro da minha parte, mas decreto desistência dessa
mulher.
“Acho que você já pode me
soltar, Milena”, diz ele,
desta vez usando um tom normal de voz, sem grandes emoções, como quem pede um
café numa padaria.
Minha face está petrificada, enquanto se processam na minha mente
diversas emoções conflitantes. Valéria vem até mim com a cara mais cínica do
que a de Ivan e, sem articular palavra, me estende a mão. Tiro a chave das
algemas do bolso e, dando uma última encarada nela com o máximo de decepção que
eu consigo, entrego-lhe. Esforço em vão, porque ela retorna a ele com a
empolgação de uma garota maníaca de cinco anos de idade que vai abrir um
presente de natal.
Livre, a primeira reação de Ivan é massagear os pulsos, enquanto Valéria
o abraça com uma paixão irracional, incontida, dedicada. Ágata, Rosane, Cyntia,
Juliana e eu estamos estáticas, provando o gosto amargo daquilo que eu
considero uma bela traição. Na certa, depois ela vai relatar a ele tudo o que
conversamos, e talvez até rirão de nós, mas nada tira da minha cabeça que
Valéria se arrependerá de maneira tão dolorosa de ter ido por esse caminho.
Minha veia feminista coça de tanta inquietação por testemunhar uma
mulher se entregando a um macho desprezível como este e ver que não tenho mais
forças para impedi-la. Não haveria caminhos tão espinhosos se não houvesse pés
dispostos a trilhá-los.
“É realmente uma pena que tenha
de terminar assim”, declara
o maldito. “Mas antes de ir embora,
gostaria de dizer pela última vez que... Bom, eu fiz o que eu pude pra dar todo
o carinho e amor que cada uma de vocês precisava. Foi tudo sincero. Sei que
ainda é confuso pra vocês, mas tudo que eu fiz pra agradar vocês sempre foi de
coração, viu? Obrigado pelos momentos maravilhosos que...”
Rosane o cala com uma bofetada que ressoa por todo o galpão. Valéria rosna
cheia de ódio, começa a se descontrolar e faz menção de revidar o tapa, mas
Ivan a impede a tempo.
“Tudo que eu quero agora”, diz Rosane, “é que você vá à merda, Ivan! Vai se foder!”
“Vai se foder você, gorda
escrota!”, grita Valéria, me
causando ainda mais nojo e agora um pouco de medo. Ela é totalmente
desequilibrada.
“Tudo bem, Val”, ele intervém. “Tá tudo bem, é natural ela agir assim. Vamos embora daqui. Você tá de
carro, né?”
“Tô sim, negão. Quer dirigir?”
“Com esses pulsos doloridos?
Acho melhor não, amor”.
“Espera!”, outra vez Cyntia se manifesta, e outra vez
numa hora em que eu não estava esperando.
Cyntia parece estar tomando coragem para dizer algo. Hesita por um
momento, passa a língua sobre os lábios ressecados, até que desembucha:
“Eu ainda tenho um semestre de
faculdade”, timidamente ela
se abre. “E eu não tenho ninguém pra me
ajudar. A situação do meu pai ainda tá péssima e... eu tô desesperada...”
Ivan anda até ela, e minha visão demora a crer, mas Cyntia não faz o
menor esforço para resistir e permite que ele a abrace e acaricie seus cabelos.
“Não precisa mais dizer nada,
Cycy! Eu não vou te abandonar agora, tá? Eu amo você!”
“Não acredito, Cyntia”, digo, estupefata.
Ivan puxa-a para mais perto, delicadamente, e Cyntia ergue o rosto para
beijá-lo. Ela solta um suspiro tão longo que fica claro que também continua
cegamente apaixonada e a saudade que estava sentindo por ele é maior do que
toda a mágoa. Por mais que tenha dado a desculpa da faculdade, dá pra ver pelo
brilho nos seus olhos que Ivan lhe lançou uma espécie tão poderosa de feitiço
que ela simplesmente não saberia como seria a vida sem esse namoro. Mesmo que
tenha de passar pela humilhação de dividir o namorado com uma maluca.
“Você é evangélica, Cyntia”, reúno o resto de forças que tenho, pois
acredito que Cyntia é mais sensata que Valéria. “O que a sua família pensaria de você se te visse se rebaixando dessa maneira?
Espiritualmente falando, você não vê o quanto essa relação é nociva?”
“Desculpa, Milena”, responde ela, “mas eu não quero que você se meta mais na minha vida”.
“Vamos embora então!”, convida Valéria, estranhamente feliz em
saber que vai partir daqui com um namorado que será compartilhado.
“Eu vou com vocês”, dispara Juliana.
“Ah, não!”, reprovo, já sem paciência. “Você não, Juliana! Eu não posso deixar a
minha prima sair daqui com essas pessoas. Se a Cyntia e a Valéria optaram por
se render a esse demônio, pra mim é uma questão de honra defender você de
embarcar nessa furada”.
Paro diante dela, agarro-a pelos braços, encarando-a.
“Juliana, você é melhor do que
isso”, argumento. “Sua vida não vai acabar só porque vai ficar
sem o Ivan. Você é uma mulher jovem, bonita, talentosa pra caramba... Ainda tem
muita coisa pra viver, muita coisa pra aprender. Logo você vai conhecer um cara
bem mais legal, que te mereça e te respeite, você vai ver... É sério, Ju! Por favor,
confia em mim!”
Uma sombra de dúvida queima em seus olhos. Não posso desistir. Ela é
minha prima!
“Por favor, Juliana! Você viu
como ele deixou todas nós. Ele é um cara manipulador, mentiroso, traidor... Não
cai na dele, Juliana, por favor! Por favor, prima! Fica com a gente!”
E então ela me direciona um olhar. Um olhar profundo, cheio de uma
mensagem que me machuca quando eu consigo captá-la. E aí eu sei o que
significa, mesmo que ela fique em silêncio enquanto gentilmente afasta minhas
mãos de seus braços, talvez para não me magoar (ainda mais). Ela está
silenciosamente me pedindo para que a deixe seguir a vida sem intervenção, sem
tentativas de ajuda da minha parte. Juliana é um ano mais nova que eu, então
tem idade mais que suficiente para fazer suas próprias escolhas. E mais uma vez
eu preciso lidar com uma decepção no grupo das seis.
“Desculpa”, Juliana murmura, com o rosto tristonho, tão
baixinho que eu na verdade estou em dúvidas se ela disse mesmo isso.
Afinal, ela deve estar imaginando que, depois de todo o trabalho para
terminar um longo namoro e confessar ao seu ex que era uma traidora, a essa
altura do jogo não importaria que ela assumisse uma relação que na verdade já
estava vivendo, mesmo que não tivesse consciência do fato antes de hoje.
Ivan recebe Juliana com um abraço apertado e um beijo na testa, que
depois migra para a boca.
A julgar pelas desagradáveis surpresas que tive com três das meninas,
lanço um olhar vagamente preocupado para Ágata e Rosane.
“Nem pensar que eu volto pra
esse traste”, determina
Ágata.
“Só se eu estivesse
desmemoriada e bêbada”,
arremata Rosane.
Abraçado às três namoradas que lhe restam, Ivan ainda tenta soar como
um homem de boa índole. Tem o porte perfeito de um político corrupto tentando
se safar de suas falcatruas de estimação.
“Hoje aprendemos uma lição. Eu,
com certeza, muito mais. A partir de hoje, serei um namorado ainda melhor para
essas mulheres maravilhosas que resolveram continuar essa caminhada comigo. Eu
prometo a cada uma de vocês, meninas, que vou fazê-las ainda mais felizes do
que já fazia. Vamos embora daqui, meus amores?”
Os quatro nos dão as costas, seguindo rumo à saída do galpão.
Observo de longe, mas é como se meus olhos estivessem apenas cumprindo
uma função automática. O que eu sinto, agora, é o meu coração rachando e
começando a se partir em mil pedaços por dentro, prestes a virar pó de puro
desgosto e frustração.
Rosane pegou uma carona com Ágata e eu resolvi ficar um pouco mais.
Bebi quase um litro de água, me sentei numa poltrona velha na sala da casa, me
coloquei a pensar por mais ou menos uns trinta minutos, mergulhada em vários “e
se”, tentando não me culpar pelas coisas terem saído como saíram.
Já anoitece quando pego o carro e dou a partida. Ligo o som e, no pendrive que já estava conectado, começa
a tocar uma música muito melancólica do Abba, The winner takes it all. Ótimo, tudo o que eu tava precisando, de
uma trilha sonora para o meu desalento. O
celular vibra: uma mensagem no Whatsapp,
recebida quinze minutos atrás.
No fim das contas, você não me
derrotou, Milena.
Mas parabéns pelo empate.
Bjs!
Então, depois de presenciar com tanta lástima aquelas mulheres caindo
em prantos e sofrendo horrores, para terminar como terminou, eu desfaleço,
largando o celular de qualquer jeito no banco do carona. As lágrimas arrebentam
as cercas dos meus olhos e desaguam em enxurradas bravas, desenfreadas. Choro
de soluçar, esmagada, arrasada. Sim, é assim que eu me sinto: o retrato fiel de
uma pessoa arrasada. Mesmo não entendendo direito porque isso está doendo
tanto, me destruindo tanto por dentro, eu choro. Não me preocupo se o lamento
vai acabar ou quando; eu aproveito a solidão e a distância que me acompanham aqui
neste lugar e deixo a alma se retorcer na forma desse líquido morno e salgado.
E não me deixo silenciar. Eu tenho esse direito! Eu tenho todo o direito de
chorar em alto volume, de deixar à vista os meus rasgos através do meu pranto.
Uma hora o meu coração iria me cobrar por isso, e enquanto a noite avança sobre
a minha cabeça e me enlaça como a única amiga que me resta depois de toda a
luta que eu travei, eu sinto como se fosse impossível sobreviver a tudo isso.
Às vezes, o preço que você paga por querer se desapaixonar por alguém é
tão brutal quanto o próprio instinto natural de permanecer viva. Quero dizer,
tem vezes que é árduo e insuportavelmente doloroso cortar ligações com uma
pessoa, e você se vê sangrando como se estivesse sendo pisoteada por um monstro
invisível, impetuoso, que sabe que, se insistir, ele pode até te levar à
implacável derrota enquanto te estrangula e te obriga a encarar seus olhos
frios e diabólicos.
Mas eu sei que eu vou sobreviver. Ah, sim, eu bem sei.
O choro é só uma passagem...
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