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24 de maio de 2017

DESAPAIXONANTE --- EPISÓDIO 4x08: A HISTÓRIA DE IVAN CASTRO



(Ivan)

Tempos atrás

Não vim até esse bar para ouvir esse camarada achar que está arrasando cantando Lady in red. O bom disso é que nesse meio-tempo posso decidir se desisto de pedir uma cerveja e me mando ou se continuo aqui, persistindo, embora saiba que pode não ser uma boa ideia. Me disseram que é aqui que ela se apresenta. E acontece que eu já não aguento de saudade e vontade de vê-la.
Uma garçonete uniformizada com uma blusa polo exibindo a logo do bar e um sorriso muito forçado anota meu pedido. Percebendo as rápidas caretas que ela faz a cada sílaba que eu pronuncio, volto a cogitar a possibilidade de voltar para casa. Detesto ser o tipo de pessoa que se atenta para gestos corporais e, por conseguinte, acaba se deixando levar pela compreensão desses gestos.
E, meu Deus, esse cara precisa chorar tanto nessa música?
Examinando atentamente, ele está chorando mesmo. Suas bochechas mostram rastros de lágrimas rolando sem a menor cerimônia. Será que a canção lhe traz memórias de um amor mal resolvido, talvez uma dama de vermelho insensata ou inalcançável tenha lhe revirado a cabeça?
Devaneios... As coisas às quais a mente se agarra para passar o tempo e tentar lidar com as complicações da realidade.
Pedi uma cerveja e um prato de tira-gosto: isca de peixe frito com molho rosé e batatas fritas. Não é o tipo de programa ao qual estou acostumado, ainda mais sozinho, mas quando se está apaixonado de um jeito tão intenso, você é capaz de sair da sua zona de conforto com mais frequência do que gostaria, sentindo-se seguro ou não. Qualquer loucura é justificável. Até o que não se justifica.
O cantor de Lady in red finaliza sua performance, saca um lenço do bolso e passa os próximos minutos enxugando as lágrimas e assoando o nariz. Tudo ao mesmo tempo.
Não conheço ninguém por perto e a cerveja já veio e já está acabando. Nada dela. Será que virá mesmo?
Uma onda de excitação me invade. Um sentimento de aventura proibida que me faz ponderar se eu realmente quero levar isso adiante.
Ouço um violão sendo afinado. Ela chegou. Ocupa a cadeira que antes fora usada pelo cantor chorão; seu violão apoiado sobre as pernas e a maneira tão graciosa como maneja o instrumento. Natasha está tão bonita que, agora, não há nada que me convença a arredar o pé desse bar.
“Boa noite! Eu sou Natasha Pellegrini e vou fazer um voz e violão pra vocês. Vamos lá?”
Os primeiros acordes soam e sou levado a contemplá-la maravilhado pela sua habilidade delicada de musicista. É como observar uma flor desabrochando, testemunhar o momento certo em que um botão de rosa se abre. Você simplesmente deixa um instante como este te preencher e sua vida gira em torno desse único evento.
Natasha tem nome forte de artista e, mais do que isso, seu talento é inegável. Desde a época da escola. Desde a época em que eu já era caído de amores por ela. É desde essa época que eu venho guardando segredo sobre isso e, mesmo sendo muito tarde para tocar nesse assunto com ela, eu estou aqui.
A última música foi “Quem de nós dois”, da Ana Carolina. A cerveja que eu havia pedido no início está choca, mas pouco me importa. Tenho a impressão de que a única pessoa atenta à apresentação de Natasha sou eu. Muito provavelmente estou certo, pois a maioria das pessoas não vêm a um bar para ficar olhando os cantores. Elas vêm para um happy hour, encher a cara, trocar uma ideia. A música é um aperitivo à parte, apenas para embalar a noite.
Natasha me vê, bem como eu planejei antes de vir pra cá. Sentado a uma mesa escolhida justamente para ser visto do ângulo de onde ela estava, aceno quando ela me sorri.
“Que surpresa, Ivan!”, ela se aproxima.
Natasha está com os cabelos pretos soltos, em ondas que emolduram seu rosto e me convidam para acariciá-los, mas a sanidade me vence e eu me porto decentemente:
“E aí, Natasha? Tudo bem?”
“Sim, e você?”
“Tô legal. Gostei da apresentação”.
“Que bom!”, ela solta o sorriso fatal, que acaba com o meu coração. Mas infelizmente ela não sabe disso.
Sorrisos irresistíveis podem levar homens apaixonados a fazer besteiras.
Se bem que... Eu ter vindo aqui já é uma besteira das grandes, sobre a qual eu ainda nem consigo crer que esteja acontecendo. Onde eu arranjei coragem?
“Senta aí”, sugiro, tentando parecer casual.
“Tá”.
Natasha sempre foi lacônica. Reservada, quieta, sempre procurou ficar na sua e, em termos de esbanjamento, sempre optou por deixar essa parte por conta de seus dotes musicais. Vai ser (ainda mais) difícil tê-la por perto e ficar quicando entre fazer alguma coisa ou não.
“Como estão as coisas?”, pergunto.
“Estão indo”, ela diz. “Tô cantando quase todas as noites por aí. Me virando. E você?”
“Entrei recentemente numa firma de advocacia, pra ir ganhando um pouco de experiência”.
“Legal!”
“É”.
Num impulso idiota, encho o copo com a cerveja choca, levo à boca e quase me engasgo de nojo por causa da temperatura. A bebida está intragável. Seria uma ótima ocasião para Natasha rir da minha cara e eu pegar carona nisso e transformar a conversa num episódio hilariante, rendendo um papo mais descontraído. Mas ela arregala os olhos e me encara preocupada.
Expectativas! Mais frágeis do que farelo de biscoito...
“Eu esqueci que a cerveja tava quente”, me explico.
“Ah...”
“Escuta, você... tem visto alguém da galera?”
“Da galera da escola?”
“É...”
Que assunto mais imbecil. Nem um pouco indicado para abordar com a garota que você gosta logo após cuspir uma boa quantidade de cerveja na frente dela.
“Quer que eu peça uma cerveja pra gente?”, mudo o assunto antes que ela se toque de que ele e eu somos muito patéticos.
Mas aí percebo onde o olhar dela foi parar. Na minha mão esquerda.
“Você se casou?”
“Eu? Ah... É... Sim, sim, eu... eu me casei”.
“Aaaahhh”, ela faz, e eu fico em dúvida se ela achou fofo ou está disfarçando algum desapontamento. Mas para isso, ela teria de estar interessada em mim. “Sua mulher não veio com você?”
“Não, não”.
Droga! Essa aliança que eu me esqueci de tirar.
“Ivan, você é muito legal, mas não pega bem ficar conversando a sós com outra mulher num bar. Não me leva a mal, tá?”
Natasha se levanta, mas ainda insisto, fingindo não ter segundas intenções:
“Que é isso, Natasha. Somos amigos. Não tem problema a gente conversar um pouco...”
“Se outras pessoas estivessem aqui, por mim tudo bem. Mas é que não me sinto à vontade sozinha com você. Desculpa. Adorei te ver, Ivan!”
Ela me dá um beijinho no rosto e se afasta, encontrando um outro conhecido pelo caminho. Olho para a garrafa vazia de cerveja e tudo em que posso pensar é no quanto de ódio eu poderia gastar estraçalhando ela contra o chão. Porém, no meu peito, sei que o que fala mais alto não é o ódio. É a frustração. A impotência que mora em meus olhos e me encara no espelho todos os dias de manhã, me fazendo enxergar que a minha vida poderia ser outra. Poderia ser boa.
Pago a conta, vou embora do bar. Toda essa expectativa por uma noite que eu nem deveria ter vivido. Pego um táxi e sigo rumo ao meu inferno particular. De volta para os braços da mulher com quem escolhi me casar, só para acabar me arrependendo amargamente.

Eva está comendo pipoca e vendo TV com seu duvidosamente seleto trio de amigos, duas meninas e um cara, que provavelmente está tentando pegar uma delas, pois gay ele não é. Estão sentados no chão, em volta da mesa de centro. O cenho franzido de Eva ao me ver é a visão mais repetida que ela tem me oferecido nos últimos dois anos, desde que se passou o frenesi inicial do casamento. O problema é que eu esperava que esse tal frenesi fosse durar mais de três meses.
“Acabou a janta”, ela me recebe. “Como foi lá com o Macedo?”
“Foi bom, amor”, minto, nutrindo uma irritação por ela me receber dando a péssima notícia de que não tem janta. “Tô morrendo de fome”.
Eva olha para a tigela de pipoca, estende-a para mim e diz:
“Ainda tem um pouco, se quiser. Mas eu não vou cozinhar nada pra você. A academia me matou hoje, tô muito quebrada. E a galera tá aqui hoje”.
“Você tem cigarro Destruction, fera?”, pergunta o cara que está querendo pegar uma das amigas da minha mulher. “Comecei a fumar ontem”.
“E você começou por um cigarro com esse nome? Bem sensato”, respondo com sarcasmo. “Não, não tenho”.
“Não liga, Cadu, ele é abusado assim mesmo”, Eva justifica.
“Será que a gente pode voltar a falar do que a gente tava falando?”, uma das amigas cujo nome eu desconheço se intromete, impaciente. “Não é todo dia que sua prima completa sete meses de gravidez falsa, né? Enquanto ela enrola pra dizer a verdade, me ajudem a escolher o presente pro chá de bebê. Ai, maldita hora em que eu topei ajudar ela com essa história”.
“Vou lá na cozinha preparar alguma coisa”, informo, louco para fugir dessa reunião idiota. Ninguém me ouviu.
Me inclino para beijar Eva, que reage fina como uma flor:
“Cacete, Ivan! Sai da frente, seu idiota. Bem na hora que a polícia descobriu o assassino no filme. Sai daqui!”
“Não consigo encontrar cigarro Destruction em lugar algum”, queixa-se o amigo recém-chegado ao mundo dos fumantes. “Preciso azucrinar a minha mãe pra ela aprender que quando eu decido alguma coisa, eu vou em frente. Mas tem que ser com Destruction, que é menos agressivo pros pulmões. Por que eu não decidi virar hippie? É mais fácil fazer artesanato e andar com roupas velhas do que encontrar esse maldito cigarro”.
Reviro os olhos de tanta vergonha alheia, peço licença e caminho até a cozinha, após ser praticamente enxotado. Nem o Alladin, nosso cachorro, recebe esse tipo de tratamento da parte da minha esposa.
Nessa mesma noite, na cama, Eva me diz coisas maravilhosas, acariciando meu rosto e encarando meus olhos à penumbra. E eu a perdoo por ser tão mesquinha e malvada. E nos amamos com uma paixão parecida com aquela que tínhamos no início do namoro, mas que nunca mais será resgatada, claro. Será que ela tem ciência disso?
“Bom dia, amor”, eu a saúdo, saindo do banheiro após um bom banho para mais um dia de trabalho.
“Mais uma palavra e eu vou perder o sono. E se eu perder o sono, eu te mato”, declara ela, enfiando a cara o mais fundo que pode no travesseiro, morta de raiva.
E o ciclo se reinicia.


Não é que eu tenha aprendido a ser contra casamentos desde que perdi o encanto com a minha própria experiência. Mas, assim, se for pra dar um conselho, aqui vai: não se case tão jovem como eu fiz. Não se enlace com a primeira pessoa que faz você achar que ela é a pessoa certa só porque vocês dois estão vivendo como num filme de amor extasiante. Ou, então, espere no mínimo uns dois anos. Eu mal tinha 24 anos quando interpretei mal minhas intenções com Eva. Três anos mais nova que eu, ela também não devia ter muita ideia de onde estava se metendo. Nem seus pais, tampouco os meus. Casamento é tão romantizado que as pessoas esquecem de que é tão importante quanto educação ou investimentos financeiros. Não é construído apenas de beijos calorosos e planos coloridos, mas de um bocado de esforço árduo e cada detalhe precisa ser previamente analisado antes de marcar a data da cerimônia.
Mencionei meus pais e, falando neles, não foram o meu melhor exemplo de casal. Sequer tinham cheiro de referência de casamento para mim. Meu pai traiu minha mãe inúmeras vezes, e de alguma forma ele conseguia ser aceito de volta, como se fosse uma criança que aprontara uma travessura na escola e que recebeu uns tapas em casa e só. No caso do meu pai, acho que ele poderia ter levado uns tapas, só por questão de honra mesmo. O fato é que minha mãe engoliu essas puladas de cerca como se sua dignidade estivesse intacta. Pode ser uma questão de geração, quero dizer, a minha mãe foi criada num ambiente mais rígido que as jovens de hoje, então ela foi mais tolerante com a infidelidade de meu pai. Ou posso estar só pensando um monte de asneiras e estar milhas longe do verdadeiro motivo. Tudo que eu sei é que isso me aborrecia tremendamente.
O caso é que, por causa disso, tive diversos embates com meu pai. Discussões feias, acaloradas, cheias de dedos acusativos e xingamentos pondo em xeque seu caráter. Definitivamente, aquele não era um modelo de homem a se seguir. Até que eu me casei com Eva e, na primeira vez em que reencontrei Natasha numa dessas circunstâncias casuais, minha mulher e eu já andávamos nos estranhando. E bastou uma troca de sorrisos saudosos com Natasha para que eu descobrisse que havia algo de errado na escolha que eu fizera naquele altar, em 2004.
E tudo que eu havia optado por me distanciar se mostrava cada vez mais próximo: desde então eu alimentava um desejo de trair a minha mulher, disfarçada de curiosidade, sob a justificativa romântica de que eu nunca esquecera Natasha, com quem, inclusive, jamais troquei um selinho. Bom, o caso aqui é que isso me coloca numa posição bem similar a de meu pai, cuja imagem de mulherengo eu aprendi a abominar. Esse não é o tipo mais legal de volta que a vida dá.
Eva invariavelmente me humilhava, fazia chacota e brigava comigo, pelos mais diversos motivos. Certa vez, em 2011, ela chegou a tocar fogo em parte das minhas roupas por achar que eu a estava traindo com Deusimar. Levei praticamente um dia todo para provar que Deusimar era o assistente de um advogado da firma, e que o problema todo fora desencadeado por Deusimar ter um nome que serve para homens e mulheres.
Vestindo uma estranha combinação de calça moletom verde com um casaco de couro marrom, ponderei que Eva tinha muita sorte por eu estar aguentando seus abusos há sete anos. E nesse dia, durante sua choradeira implorando meu perdão, enfim tive audácia suficiente para dizer que já era, que tava tudo liquidado e que eu não tinha mais a menor condição de levar essa relação adiante.
Eva quis surtar, mas eu resisti bravamente e mantive a decisão. Eu precisava me libertar!
De todo modo, eu devia ter visto desde o princípio que não havia um futuro harmonioso naquele casamento. Afinal, “Eva e Ivan” nunca foi uma combinação eufônica e, juntos, aprendemos que não restaria mais combinação alguma.
Olhando para trás, foi bom ter me livrado de suas garras pelo engano cometido no episódio do Deusimar. Imagine se ela tivesse descoberto a respeito de outros nomes realmente significativos, como Marcela, Denise e Aline.


Eu me sentia pronto para correr até Natasha e me declarar para ela. Uma paixão alimentada há mais de uma década deve dizer muita coisa sobre uma pessoa, não?
“Essa cidade tem tanta mulher, hein”, comentou o taxista, levando-me até o local onde Natasha e eu marcamos de nos ver.
Eu não queria dar o mínimo de atenção à conversa do homem, então resolvi que ia ficar só balbuciando e concordando falsamente.
“Mas pena que cada homem só pode ter uma. Eu queria ser um sheik árabe”, prossegue ele.
“Aham...”
“Eu sou casado, sabe. E muito bem casado. Mas às vezes parece tão injusto estar com aquela patroa há tantos anos e não poder variar um pouquinho. O senhor é casado?”
“Não, não. Já fui”.
“Meu casamento tá ótimo, tá excelente, nada a reclamar. Mas de vez em quando eu fico pensando nisso. O senhor acha que infidelidade é falta de amor? Porque eu amo a minha mulher, eu juro. Ainda não provei uma tapioquinha com ovo frito melhor que a dela. E quando ela me aguenta nos meus dias de porre, eita! Mas sabe como é, né? Homem é bicho curioso e a gente é atraído pelo visual e, minha nossa senhora, como tem mulher bonita, rapaz! Dá vontade de experimentar um pouquinho de cada uma”.
“Desculpe, moço, mas eu não tô muito a fim de falar sobre isso, ok?”
“Opa, tudo bem, sem problema”.
E assim seguimos. Não me dava o menor prazer tagarelar com um homem cujos pensamentos me lembravam o que poderiam ser os pensamentos do meu pai e, algum tempo atrás, os meus. Mas eu tive meus motivos para ter agido como agi: Eva quase me destruiu emocionalmente. Se existe estresse pós-traumático para casamentos, certamente sou vítima exemplar.
Ou será que eu acabei desenvolvendo uma certa tolerância à infidelidade só pra me justificar? Tratei de ocupar a mente com outros pensamentos.
Chegamos. Paguei a corrida, quase agradeci pelo taxista ter mantido a boca fechada depois que eu pedi. Desci do táxi e Natasha já me esperava em frente ao restaurante. Nesse dia eu estava louco para saborear a massa que o lugar servia, mas nada superava o desejo de ter a companhia daquela mulher, devidamente avisada da minha condição de solteiro.
“Olá!”, ela sempre muito cordial, além de estar bem vestida e deslumbrante. Essa noite precisava ser especial.
“Boa noite, tudo bem?”, retribuí, cumprimentando-a com dois beijos nas faces.
“Fiquei meio envergonhada de entrar antes”, ela se explica. “Esse lugar parece chique demais pra mim. É aqui que você traz as suas namoradas? Se eu fosse um homem, eu traria aqui com certeza”.
Ela falou isso de um jeito claramente brincalhão, então rimos enquanto entramos no lugar. A piada foi boa.


Abreviando a história, tive a melhor noite possível com Natasha. Abri meu coração, contei tudo que eu vinha guardando desde os tempos de colégio. E tal foi a minha surpresa quando ela revelou que “me achava uma gracinha” ainda naqueles tempos. Eu fiquei todo encabulado, ainda mais porque eu era bastante desfavorecido esteticamente quando nós estudávamos juntos. Ora, pra que tantas palavras bonitas? Eu era terrivelmente feio mesmo! E o fato de ser negro complicava ainda mais a situação porque, se o racismo ainda persiste hoje, nem queira saber como era em meados dos anos 90. Resumindo: era um inferno. Constantemente eu me sentia diminuído e inferiorizado pelas pessoas ao meu redor. Meus amigos do peito eram os mesmos que, dia após dia, me achincalhavam pela cor da minha pele, achando que estavam fazendo gracinhas de camaradagem, como se nenhum dos apelidinhos me constrangesse ou machucasse. Eu só relevava porque eles compensavam essa babaquice fazendo coisas legais por mim e me ajudando quando eu precisasse. No entanto, por eu ter me acostumado com isso desde a infância, acabei me focando em outro problema: meu total desastre com as garotas. Todas só queriam ser minhas amigas. Acho que por isso fui logo casando com Eva, para não perder a oportunidade de ser amado pela vida inteira.
Nessa noite no restaurante com Natasha, descobri que eu me enganei redondamente durante o ensino médio. A própria Natasha admitiu que se eu a tivesse chamado pra sair e conversar, com certeza teríamos vivido uma história pois, segundo ela, as meninas curtiam meu jeito tímido porém carismático, inclusive ela mesma. Era meu charme, ela disse. E, também de acordo com ela, eu era engraçado e fofo, e que as mulheres adoram homens que as divertem e as cativam sendo eles mesmos, sem forçar a barra e querer pagar de macho alfa. Esses ganham a admiração antes por esses fatores do que pelos atributos físicos. Uau! Como é que eu não enxerguei nada disso e deixei passarem todas essas chances?
Nos beijamos ao som de alguma música romântica de fundo, algo como Celine Dion ou Toni Braxton. São cantoras totalmente distintas, mas a verdade é que eu não consigo me recordar. E eu a pedi em namoro também, com o coração mais disposto do mundo a esquecer que um dia eu traí uma mulher com outras três. Disposto a regenerar minha percepção de amor e compromisso.
Natasha sorriu e com os olhos iluminando a minha vida como um farol numa noite densa, ela aceitou. Mas eu estraguei tudo em menos tempo do que imaginava.


Quando se prova de certas coisas, você acredita que está no controle e todo o desenrolar da situação está sob suas rédeas. Bem, não foi isso que aconteceu depois que eu provei a experiência de trair. Descobri, inclusive, que nem sempre se trai por insatisfação no relacionamento. Depois de ficar com três mulheres diferentes (não ao mesmo tempo) próximo ao fim do meu casamento com Eva, achei que o coração sossegaria ao encontrar amor, carinho e respeito nos braços de Natasha. Todavia, eu fui sendo aos poucos arrebatado pela ideia de ser um homem atraente, misterioso, charmoso. Não, não, não. Não é que eu queira me gabar, mas desde que descobri que um determinado conjunto de atitudes conquistava a atenção e admiração das mulheres com quem eu tive casos, não resisti à tentação de testá-los com outras mulheres que eu considerava atraentes e com as quais eu poderia hipoteticamente me relacionar. A maior parte dos testes me fazia perceber que, se eu fosse mais além na maneira de me comunicar com elas, obteria vantagens, algumas bem prazerosas, se é que você me entende...
E lá fui eu, cinco meses depois de iniciar o namoro com Natasha, me meter a testar as minhas “habilidades” achando que tudo seria uma brincadeira, uma aventura psicológica divertida, um jogo de sedução inofensivo. Mal tinha noção de que, assim como uma droga perigosa, eu estava sendo dominado por essa estranha forma de arte da conquista. Exagerei na dose. Exagerei e fiz exatamente o mesmo que fiz na época do casamento: traí Natasha com três mulheres: Andrea, Natalie e Arlete.
Uma bela noite, cheio de uma coragem arranjada sabe-se lá onde, eu cheguei para Natasha, que estava se preparando para tocar e cantar em algum bar qualquer, e joguei as cartas na mesa. Confessei meu erro e disse que não estava mais aguentando guardar aquilo. Ao menos um ato nobre no meio daquele disfarce de namorado perfeito.
Natasha não era muito sentimental, pelo menos exteriormente. Conversamos numa boa, ela assumiu que saber daquilo a deixava profundamente magoada e que ela jamais esperaria tal comportamento da minha parte. Em pensamento, tive de concordar que nem eu esperaria. Era à parte de mim, como se eu fosse hospedeiro para um Ivan cruel e egoísta com sede desenfreada por estar com outras mulheres.
Os poréns mais intrigantes que eu tive coragem de admitir a ela foram os seguintes: eu nutria um carinho especial pelas garotas com quem tive casos. Não as usei como objetos e sequer as destratei após terem me proporcionado momentos de paixão e desejo. Além do mais, eu simplesmente não conseguia me arrepender. De nadinha. Eu fazia era gostar dessa prática. Eu me sentia livre, envaidecido, dono do meu universo, controlador das minhas vontades, muito embora eu tenha afirmado que essas vontades eram maiores do que eu e, portanto, incontroláveis. No fundo, eu não era coagido a fazer nada, tudo era deliberado e calculado, planejado minuciosamente. Aliás, eu só ia acumulando mais conhecimento sobre como fazer aquilo. Era como um vício, só que um vício do qual eu era amigo, com o qual me identifico e aponta para um Ivan Castro que eu creio que sempre existiu.
Natasha julgou aquilo extremamente reprovável dentro das normalidades num relacionamento a dois. Falou todas essas coisas com todo o cuidado em não parecer ofensiva. Eu tentei abraçá-la e dizer que a amava, mas ela preferiu que não. Ambos sabíamos que eu acabaria repetindo o que fiz, caso permanecêssemos namorando. Para não se machucar ainda mais, ela me pediu que nem mesmo continuássemos amigos, dizendo ela que não falaria de mim por aí nem entraria em detalhes sobre o término do nosso namoro.
Natasha me deixou e eu nunca mais soube de seu paradeiro. Meu coração ficou em pedaços. Por uma semana, talvez. Logo eu estaria à caça de novo.

  
Um tempo depois, tive a ideia de criar a AMANDA. Juntei as iniciais de todas as mulheres com quem eu traí tanto Eva quanto Natasha e resolvi que aquele seria o meu segredinho cretino. É como se eu estivesse zombando do mundo ao meu redor com um nome que revelasse muito do meu verdadeiro eu, ao mesmo tempo em que eu ajudaria homens e mulheres a conquistar seus objetos de paixão, juntando tudo que aprendi com anos de prática, pesquisa e testes.
O lado ruim é que a partir de então eu comecei a colecionar segredos, por que era o mais conveniente a se fazer e me resguardava de dores de cabeça.
No fim, por mais incrível e bizarro que pareça, hoje eu compreendo melhor o lado do meu pai e até do taxista incômodo que me levou ao restaurante na noite em que beijei Natasha pela primeira vez. Não é que trair seja algo legal. Dando um conselho sobre isso, não traia. É um crime afetivo atrelado a diversas delicadezas com as quais nem todo mundo consegue lidar, como a culpa por ter traído e o peso do remorso que isso pode te trazer. Eu não encaro minha vida amorosa múltipla como traição, apenas como uma prática diferenciada.
Sabendo o quanto dá trabalho ter de me explicar sobre isso é o que me mantém atuando em sociedade como se eu fosse só mais um homem comum, um advogado que não exerce a advocacia e dono de um café-bar. Para a esmagadora maioria das pessoas, muitas delas hipócritas fantasiadas de gente decente, sou um monstro imoral e leviano. Para mim, que é o que importa, sou um ser humano falho que apenas tem preferências peculiares e facilmente incompreendidas. Ame ou odeie, este é o verdadeiro Ivan Castro.



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