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13 de abril de 2015

DESAPAIXONANTE -- EPISÓDIO 02: ANNA


(Narrado por Milena)


Quando se administra um negócio um tanto incomum como o meu, é mais uma daquelas ironias que aparecem na vida, como a nutricionista que é gorda ou o policial envolvido com traficantes. No meu caso, eu tenho um namorado. Quero dizer, como consigo tocar um negócio em que ajudo as pessoas a se desapaixonarem quando eu simplesmente me apaixonei um belo dia? Bem, pelo simples fato de que o problema não é se apaixonar, mas por quem você se apaixona. Eu sei, eu sei, pelo fato de eu ser uma “agente do desapaixonamento”, presume-se que eu seja inatingível, certo? Ah, a vida é como é. Meu relacionamento com Enzo já vem durando há dois anos... Isso já seria suficiente para pôr a credibilidade da minha empresa em xeque, mas aparentemente meu cabelo à altura dos ombros com mechas azuis contribui muito mais para isso.
Dirijo rumo a mais um caso para o qual fomos contratados. Apesar de parecer um emprego que exige certa frieza, eu adoro o que eu faço. Meu sócio, Sávio, é também meu melhor amigo. A gente se conhece do tempo do colégio, da sétima série ou algo do tipo. Resolvemos abrir a ANNA (Agência do Negócio Nada Apaixonante) simplesmente porque esse era o nosso destino. Como eu sempre sacava as enrascadas em que meu amigo se metia ao se apaixonar, eu decidi que, em nome da nossa amizade, seria justo impedir que qualquer menina sacaneasse com ele. Logo, eu sempre descobria detalhes sórdidos sobre essas garotas e o encanto se esvaía como poeira ao vento. Porque, modéstia à parte, existe algo em mim que consegue ser bem convincente.
Os anos se passaram e o meu “dom” foi apenas se aprimorando. Entrei para a faculdade de Psicologia, me formei, me iludi achando que ia ter sucesso logo em seguida e foi aí que me dei conta que as pessoas que fazem diferença no mundo tendem a ser também mais bem-sucedidas. E eu sabia que eu podia fazer alguma diferença no mundo. Chamei o Sávio e juntos fomos moldando o esqueleto do nosso negócio, que aparentemente seria apenas um quebra-galho para ajudar a pagar as contas, mas ANNA foi crescendo tão monstruosamente que hoje já não só quebra nosso galho como promove um desmatamento inteiro (não me odeiem, ecológicos!).
O nome da agência é uma espécie de homenagem à primeira garota por quem Sávio se desapaixonou graças à minha ajuda. Ela se chamava Anna, é claro. Por um tempo ela foi um trauma na vida do coitado, mas deixa essa história pra depois... Quando notamos a marcante coincidência que havia nas iniciais do nome “Agência do Negócio Nada Apaixonante” e o nome da Anna do passado, entendemos que aquilo era um bom sinal.

O caso do dia não é lá tão empolgante. Na verdade, eu preferiria estar em casa vendo minha coleção do Chaplin a estar indo espionar um cara sem-graça por quem minha cliente está apaixonada. Jéssica tá a fim do namorado de Giovana, e Giovana nada mais é que a melhor amiga de Jéssica. Tipo, BFFE, best friend forever and ever. Elas fazem noite do pijama, comem brigadeiro de colher, passam horas assistindo a tutoriais de maquiagem, tudo isso juntas. Mas, por trás da coisa toda, Jéssica só pensa no tal do Romualdo. Eu olhei o perfil e umas fotos do carinha no Facebook e, acredite, não é só o nome dele que desestimula uma atração. Acho que vi umas 40 fotos e o rapaz é completamente normal. Ele até mesmo compartilha aquelas imagens de otimismo com coraçõezinhos e mensagens parecidas com as que vem naqueles e-mails de encorajamento repletos de Power Points, que, aliás, é tudo que minha avó sabe mandar na Internet.
Não é um caso empolgante porque Jéssica não está sozinha no mundo. As estatísticas apontam que uma paixão de uma amiga pelo namorado da outra ocorre em 64,7% das amizades. Ok, mentira. Mas envolver estatísticas é muito divertido e, se eu não tivesse dito que é mentira, todo mundo teria acreditado. Entretanto, o caso de Jéssica realmente não é algo isolado. O meu problema com isso é o fato de ser o Romualdo. Embora profissional, eu sempre avalio o objeto de afeição de meus clientes de uma maneira bem limpa, inclusive enumerando os possíveis pontos de atratividade numa escala generalizada, isto é, que qualidades essa pessoa tem que poderiam ser positivas em termos de conquistar qualquer pessoa. E o Romualdo é uma surpresa e tanto pra mim, porque ele não tem uma sequer. Pra ser honesta, eu até me admiro de ele ter uma namorada. Tem algo nesse sujeito, devo reconhecer.
Se os seus olhos não enxergam a mesma beleza que os meus, não será você o cego? Mas, independentemente da minha opinião sobre ele, preciso manter o foco no trabalho que me foi confiado.

“Eu me sinto péssima de estar perto da Giovana, parece que tô traindo a minha amiga”, disse Jéssica no dia em que foi conhecer o escritório da ANNA.
“Não, Jéssica, não parece. Você está traindo ela sim, esse tipo de coisa não se faz”, respondi. Soou como um julgamento rude da minha parte, e de fato era mesmo, mas esse meu comportamento faz parte do processo de desapaixonamento. Obviamente, emendei:
“Mas você tá aqui e quer consertar isso. Olha só, que bacana! Isso quer dizer muita coisa, viu? Ainda dá pra fazer essa falsidade toda voltar a ser uma amizade”.
Jéssica me fitou com um olhar confuso. Podia sentir que ela tava repensando a ideia de contratar nossos serviços. Parecia que eu não tava ajudando, mas do ponto de vista psicológico, é necessário inserir faíscas de realidade na fantasia da paixão. Uma questão de equilíbrio. A paixão é linda, doce, mas a realidade te confronta, te puxa pra Terra e te faz pôr na balança o que vale a pena alimentar e o que é preciso admitir. Não sou amiga da Jéssica, logo não tenho porque amenizar a situação. Meu trabalho é abrir seus olhos.
“Por favor, Anna, me ajuda
“Meu amor, é claro que eu vou te ajudar. Mas primeiro cê tem que entender que meu nome não é Anna, tá? ANNA é essa empresa aqui,ok? Tá vendo o que essa paixão tá fazendo com você? Sua desatenção com as coisas é de assustar”.
“Eu sei que é o nome da empresa, mas eu pensei que era o seu nome também”.
“Eu já tinha me apresentado, meu amor. De novo, eu sou a Milena.”
“Tá, desculpa. Mas me diz: o que vocês vão fazer pra me ajudar?”
“Nossas técnicas envolvem investigação, espionagem e o levantamento de informações que podem te ajudar a esquecer o cara. O fato de ele ser namorado da sua amiga já devia ser suficiente, né? Mas enfim, foi por isso que pegamos seu caso, por você não dar conta sozinha. Ele sabe do seu interesse? Vocês já ficaram alguma vez? Já rolou algo?”
“Ainda não”, ela me contou, mas eu senti uma pontada de pena em sua voz quando ela disse “ainda”. “Mas acho que ele já sacou, Milena. Os homens percebem quando a gente gosta, né? Pelos olhares, talvez...”
“Ah, meu bem, acredite: a maioria deles é uma toupeira em se tratando de sacar os sinais de interesse de uma mulher. E esse Romualdo, então, precisaria de um manual pra entender que você tá a fim dele”.
Eu expliquei a ela que meus comentários são entremeados com pitadas de realidade porque faz parte do processo de desapaixonamento e blá, blá, blá... Mas, cá entre nós, esse último foi apenas para tirar uma onda com o Romualdo. Às vezes eu não resisto.

Fingi ser amiga de Jéssica para sairmos em quatro (ela, Giovana, Romualdo e eu). Não foi bem uma saída, na verdade. Ela me convidou para um jantar na casa da Giovana e inventou que eu era uma amiga da faculdade ou qualquer coisa assim. Dessa forma, eu poderia dar uma boa observada no ambiente em que o quase-triângulo-amoroso estava inserido. É meio bizarro estar no meio de pessoas pelas quais você não tem consideração alguma e, ainda por cima, saber que uma delas está praticamente apunhalando a outra pelas costas. E fingir ser amiga da potencial apunhaladora. Por dinheiro.
Mas a surpresa da noite foi que o até então sem-graça e desqualificado Romualdo era o cozinheiro da ocasião. Lá vem ele então segurando uma travessa de macarronada que, meu Deus, como cheirava bem! Aparentemente, ali estava uma qualidade em potencial para atrair uma pessoa. Algumas mulheres simplesmente se desmancham diante de um homem que cozinha.
As duas dão um mini-aplauso quando ele pousa a travessa sobre a mesa, avental amarrado na cintura e uma expressão tímida. Devo admitir que isso poderia ser sexy, o homem tímido com dotes culinários e tal, mas logo me recordo das imagens fofinhas de glitter no Facebook dele. Portanto, seja lá qual for o encanto de Romualdo, eu estou imune.
Maldito!! O macarrão dele está impecável. O molho picante está na medida certa e eu até peço pra repetir. Mas é assim mesmo: sempre que gordos como eu tentam iniciar uma dieta, vem o universo zombando de nós da forma mais mesquinha e nos jogando na cara o quanto somos miseravelmente fracos.
Pergunto quantas vezes eles fazem essas reuniões em que ele banca o chef  e elas dizem que rola com alguma frequência, tipo umas duas vezes por mês (nota mental: lembrar Jéssica que as palminhas que ela bateu pro Romualdo deram a maior bandeira, ainda mais que ela nem se esforçou pra esconder o olhar de gatinha hipnotizada; e que a Giovana só não sacou porque ela também tava fazendo a mesma coisa). Acho que essa dedicação em parecer útil preparando um prato delicioso é o tal do diferencial do Romualdo. Quero dizer, elas não estão caidinhas por ele pelo simples fato de ele fazer (a droga de um maravilhoso sensacional impressionante) macarrão, mas por tudo que envolve isso: a preocupação em agradar, a sensibilidade ao lidar com comida, o esmero em usar um avental. Tá tudo relacionado à forma como elas interpretam isso. Preocupação, sensibilidade, esmero, até mesmo a timidez. E um macarrão incrível!! A questão, agora, torna-se outra: como fazer Jéssica se desapaixonar por um cara desses?

A resposta veio em poucos dias. Chamei Jéssica no escritório da Agência e, mal nos cumprimentamos, estendi pra ela meu celular. A tela exibia uma conversa no WhatsApp. Conforme avançava na leitura, o semblante de Jéssica alternava entre indignada e surpresa. O Romualdo pegou meu número com a Giovana (é, nesse dia eu realmente entrei no personagem, então troquei até número de telefone, mas na maior inocência), e passou a me mandar umas mensagens no aplicativo, que eu resolvi responder só pra ver se isso me ajudaria no trabalho. Quando ele mandou uma daquelas estúpidas mensagens com corações e rosas desejando bom-dia, me bateu uma ira tão grande que prometi bloqueá-lo. Cinco vezes. E aí ele mandou “Concerteza vc pode me bloquear mas antes saiba que eu caprixei naquele macarrão só por sua causa. Eu me apachonei por vc”.
“Não dá pra acreditar nisso”, concluiu Jéssica, embasbacada.
“ É, eu sei. Como aquele macarrão seria caprichado por minha causa se ele nem me conhecia? Sabe nem mentir”.
“Ele escreve ‘concerteza’, ‘caprixei’, ‘apachonei’. Esse cara é um ridículo!!”
“Como é?”
“Eu tolero muitas coisas, mas gente que escreve ‘com certeza’ errado, aí é o fim. Ai, que ódio! Não acredito que eu quase escrevi uma carta pra me declarar pra esse cara. Quanto eu te devo, Anna?”
A revolta de Jéssica era tão latente que eu preferi não corrigi-la quando ela me chamou de Anna outra vez. Peguei meu cheque, satisfeita. O resultado não saiu como eu esperava, pois foi mais obra do acaso do que o meu trabalho propriamente dito. No entanto, eu estava muito feliz por ver em Jéssica um novo olhar, mais sóbrio e alerta.
“Sabe como você pode voltar a se sentir uma amiga bem melhor, Jéssica? Mostra essa conversa pra Giovana. Eu vou te enviar e aí você mostra pra ela. Seja uma boa amiga livrando ela desse mala”, arrematei, que era pra não deixar barato de jeito algum para o Romualdo. As meninas iam conseguir sobreviver sem aquele macarrão saboroso.

Pela noite, passei numa farmácia para comprar um analgésico, Enzo me ligou. Ele queria sair pra comer em algum lugar, mas o dispensei. A cabeça tava girando demais e eu só queria o conforto da minha caminha.

Mas a verdade? Bom, a verdade é que estava cada vez mais fácil dispensar os convites de Enzo. Nem lembro como aconteceu, mas eu já estou desapaixonada por ele há alguns meses. O único problema no meio de tudo isso é como fazer pra terminar esse namoro. Consigo ajudar tanta gente, mas... Por que não consigo ajudar a mim mesma? Sinceramente, não tenho coragem de deixá-lo. É, eu tô enrascada.

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