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17 de março de 2017

DESAPAIXONANTE ----- Estreia da 4a temporada --- EPISÓDIO 4x01: A SALA DOS DESAFIOS (parte 1)



(Sávio)


Milena abre o frigobar e se serve de um pouco de água. Após tomar, se aproxima da idosa de cabelo acaju, e se senta, balançando a cabeça negativamente.
“Como foi que você veio parar aqui?”, ela me pergunta, mas sem me olhar.
“Você tá perguntando pra mim?”, a idosa interrompe a leitura de uma edição aparentemente antiga da revista Caras.
“Ai, meu Deus!”, suspira Milena. “Sem querer ofender a senhora, mas não tô nem um pouco interessada na sua vida”, declara, sem rodeios e com uma calma muito esquisita.
“Mas que garota grossa, eita!!”, irrita-se a mulher, fazendo um bico de indignação.
Cansado de ver esse pequeno conflito entre elas, resolvo me explicar:
“Aurora contatou a ANNA e me disse que você agora trabalha pra AMANDA, e que estaria vindo conversar com ela sobre o Ricardo Beltrão, pra tentar ajudá-lo a reconquistá-la pra ele. Aí ela teve a ideia de nos colocar aqui, como uma disputa entre as duas empresas. Ela quis fazer tipo um... reality show particular, sabe?”
“E você achou interessante topar essa idiotice?”
“Idiotice?”, reajo, ofendido. “Milena, olha só pra você! Agora tá trabalhando com o Ivan, no lado exatamente oposto da empresa que você mesma criou. Sinceramente, mal consigo te reconhecer agora”.
Ela faz menção de que vai redarguir, mas a televisão liga de repente. A imagem de Aurora aparece na tela. Nossa anfitriã excêntrica exibe um sorriso moderadamente malicioso.
“Sejam todos bem-vindos à sala dos desafios!”, ela nos parabeniza, irritantemente semelhante à forma como o Pedro Bial costuma fazer no BBB.
“Que bom que apareceu”, alivia-se Milena, postando-se em frente ao monitor. “Eu espero que a sua explicação seja mais satisfatória que a do Sávio”.
“Farei algumas explicações sim, mas somente porque são necessárias para o prosseguimento da competição e tudo mais”, diz Aurora.
Milena bufa de chateação e revira os olhos.
“Devido ao atrevimento do Ricardo”, continua Aurora, “resolvi que ele precisa aprender uma lição. E já que você, Milena, resolveu bancar a intermediadora dele nesse processo, então você vai ter de passar pelas consequências. Por isso, chamei o Sávio pra... digamos, me representar. Então vocês passarão por algumas provas na sala dos desafios e, enquanto isso, um tentará superar o outro de forma que, no final, isso também vai pesar na decisão que eu tomarei a respeito do Ricardo”.
“Peraí, Aurora, você não falou nada sobre provas”, intervenho.
“Sávio, meu querido, você sabe que eu tenho um fraco por reality shows, não é? Então as provas são apenas para dar uma graça na competição. Uma movimentação”.
“Ah, que legal”, Milena fala, com sarcasmo inegável. “Só que eu não topei participar de competição alguma, então manda algum daqueles seus seguranças abrir logo a porta que eu quero me mandar. Prefiro largar o caso aqui mesmo”, e então ela se vira para mim, depois de um longo tempo sem me encarar diretamente: “Parabéns, Sávio! Você venceu!”
Eu me detenho fitando-a, então não sei ao certo como fica minha fisionomia após ela ter se dirigido a mim de modo tão desafiador. Cara, esse preto trouxe uma senhora elegância para o cabelo dela...
A risada de Aurora me traz de volta à realidade.
“Quem dera fosse tão fácil assim, Milena”, afirma Aurora.
“Aurora, melhor me deixar sair antes que eu cogite envolver a polícia nisso”, ameaça Milena.
Mas Aurora, categórica, ignora-a:
“Serão três provas: uma intelectual, uma física e a prova final, onde finalmente vocês vão tentar me convencer de por quê eu devo escolher uma agência ou outra, isto é, se me reapaixono pelo Ricardo ou se o enterro mais do que já tá enterrado. Detesto estragar tudo, mas já aponto o Sávio como o grande vencedor, porque só de me lembrar do Ricardo, já me bate um nojo que eu nem consigo descrever”.
“Aurora”, enfim me manifesto, “eu havia topado apenas fazer disso uma ‘competição simbólica’, nada de provas ou coisas do tipo. Acho que a gente não precisa disso. Nós tínhamos acertado que isso seria uma chance pra eu e Milena conversarmos”.
“Eu já dei as devidas explicações, meu caro Sávio. Não se preocupe, você já venceu. Reiterando o que eu já falei, as provas são apenas pra dar uma graça à ocasião”.
“Você é maluca!”, brada Milena.
“Nunca vi tanta insolência na vida”, fala a dona Chica, de quem havíamos nos esquecido nos últimos minutos.
“E qual é a dessa senhora?”, Milena indaga num certo tom de revolta, apontando para dona Chica com o polegar.
“Eu sou a dona Chica”, ela mesma se apresenta. “Eu trabalho numa empresa especializada em mediar conflitos entre amigos de longa data que se tornaram ex-amigos, e estou aqui pra mediar os conflitos que surgirem entre vocês. E devo dizer, senhorita, que não estou gostando nem um pouco do seu comportamento hostil, sabia?Ah, mas nós vamos dar um jeito nisso, eu sei que vamos”.
“É um emprego bastante específico!”, admiro-me, mais para mim mesmo do que para todas ouvirem.
“Aurora, isso é sério? Eu já disse que desisto do caso. Depois me explico com o Ivan, mas eu não tô com paciência pra lidar com isso”, insiste Milena.
“Excelente apresentação, dona Chica. Tenha só um pouco de paciência com a competidora Milena, ok? Enfim, aqui está o primeiro desafio, o intelectual. Prestem bem atenção porque esse é um enigma e a missão de vocês é ir fazendo perguntas até chegar à solução dele.”
Milena xinga alguns palavrões bem feios, enquanto bufa de novo, ganhando mais uma vez a carranca de reprovação de dona Chica. E, novamente, é ignorada por Aurora.
“A dona Chica ficará responsável por responder às perguntas de vocês apenas dizendo ‘sim’, ‘não’ ou ‘irrelevante’. Lá vai o enigma: um dono de uma mina de ouro, ao ir todo dia para o trabalho, encontrava o vigia noturno saindo de seu turno. Um dia o vigia disse ao patrão: ‘Patrão, não pegue hoje a estrada de sempre quando voltar para casa, pois essa noite sonhei que um deslizamento de terra cairia sobre o carro do senhor e o senhor morreria’. O patrão agradece e vai trabalhar. No dia seguinte, ao encontrar o vigia novamente, ele o despede”.
Aurora termina o enunciado e fica nos olhando, com expectativa.
“Boa sorte e... que vença o melhor!!”, finaliza ela, olhando diretamente para mim ao pronunciar a palavra “melhor”, enfatizando sua certeza na minha vitória.
A TV se desliga.
“Peraí! É só isso? O que é que eu devo fazer com essa história de vigia e patrão?”, Milena parece estar conformada de que terá de competir comigo.
“Vocês dois têm de fazer perguntas para ir entendendo o que aconteceu”, explica dona Chica. “Vamos lá, estou pronta!”
“Eu vou voltar pro sofá e ficar sentada. Mais cedo ou mais tarde a Aurora vai ter que tirar a gente daqui”, responde Milena.
“Bom, eu posso passar o resto da vida aqui”, rebate dona Chica. “Assinei um contrato com a Aurora assegurando que não tem problema algum se eu tiver de morrer aqui dentro, então eu tô de boa”.
Milena olha para ela como se estivesse encarando uma dessas obras de arte que não fazem o menor sentido.
“Eu não conhecia esse enigma”, falo, enquanto me posiciono numa cadeira próximo ao frigobar. “Só conhecia o da carne de gaivota e do Romeu e Julieta, mas o esquema é parecido. A gente tem que fazer perguntas até descobrir o que aconteceu na história”.
“Obrigado por explicar o que eu já sei”, ironiza Milena, vasculhando umas revistas sobre a mesa de centro. “Mas fique à vontade pra tentar entender essa história besta. Eu vou me divertir lendo uma... Caramba!! Uma edição da Todateen com uma entrevista com os Hanson?! Só tem revista do tempo de Aristóteles aqui? Hum, não acredito que por um segundo eu imaginei que fosse me divertir aqui dento”.
“Por que você tem que agir assim comigo?”, pergunto, tentando impostar um tom amigável.
“Só estou tentando manter o profissionalismo”.
“A dona Chica tá certa. Você tá simplesmente sendo hostil e nem tá dando chance pra gente conversar”.
“Estamos trocando palavras, isso parece uma conversa pra mim”, ela diz e assopra uma revista, o que faz levantar um pouco de pó. Ela dá uma sacudida no material e eu posso ver a Xuxa na capa de uma antiga edição da Contigo, anunciando sua gravidez, quinhentos anos atrás.
“Esse cabelo preto te deixa com um aspecto de vilã”, tento me mostrar ríspido e desagradável, para dar a ela um pouco do desconforto que está me causando.
“Essa barriga te deixa com um aspecto de alguém que poderia estar praticando mais atividade física”.
Ai!
Percebo que dona Chica segura uma risada, mas finge que só precisa tossir e “disfarça”.
“Não quis te ofender”, diz Milena. “Eu sou gorda também, né?”
Ando relutante por ter ganhado uns quilinhos, então ainda não sei direito como reagir a esse tipo de situação. E, se eu tinha algum tipo de resistência a crer no quão incômodo isso pode ser, a sinceridade de Milena é tão válida quanto o atestado de um especialista no assunto.
“Vocês me lembram muito o Bernardo e a Bianca”, dona Chica menciona, com ar ligeiramente risonho, de quem está falando dos filhos. Ou dos netos, vai saber.
“Os ratinhos do filme da Disney? Ai, me poupe!”, reclama Mile.
“Não!! Esses não!! Meus netos, Bernardo e Bianca. Eles viviam sempre às brigas, todo santo dia. Era sagrado! Mas eu dei um jeito naquilo”.
“O que a senhora fez?”, me animo, pronto a receber uma dose de sabedoria e experiência.
“Mandei Bianca largar o facão, antes que ela machucasse o Bernardo mais ainda. Falei que a família deve estar acima de discussões tolas por causa de uma asa de frango. O médico disse que por dois centímetros a Bianca não acertou uma artéria fatal do Bernardo. Hoje eles não oferecem mais perigo um pro outro, só discutem política no Facebook, graças a Deus.”
O silêncio cai obscuro diante dos nossos semblantes. Digo, do meu e de Milena. Dou uma olhada básica ao redor, para me certificar de que não há facões por perto. Eu não quero ser o Bernardo nessa história...
“Melhor a gente tentar resolver o enigma”, desvio a conversa para o que realmente importa.“Dona Chica, houve realmente deslizamento de terra?”
“Irrelevante”, ela responde, parecendo uma velha sabichona, enquanto vira a página da revista após molhar o dedo com saliva.
E o jogo já começou com “irrelevante”, mau começo.
“Hummm... Deixe eu pensar...”
Milena continua entretida com sua revista, apesar de eu desconfiar que ela não está mais do que folheando e conferindo a antiga aparência das celebridades.
“O patrão gostava do vigia?”, prossigo.
“Irrelevante”.
“O vigia havia mentido para o patrão?”
“Irrelevante”.
“O vigia teve mesmo o tal sonho?”
“Sim”.
“Humm...”
Até que enfim. Nesse tipo de jogo, você se agarra à primeira pista conquistada com uma resposta “sim” e segue no encalço dessa informação.
“No sonho, o deslizamento de terra realmente ocorreu?”
“Irrelevante”.
“Aaaah, que saco!”
Minha criatividade estagna e eu não sei como continuar. Desvio do curso relacionado ao sonho:
“O patrão pegou a estrada de sempre?”
“Irrelevante!”
“Cacete!! Só existe essa resposta??”, estresso-me. Dá para ver que eu levo esse tipo de jogo muito a sério.
“Não tenho culpa se você não faz as perguntas certas”, dona Chica provoca.
“Milena, por favor, será que você pode dar uma mãozinha aqui?”, não disfarço minha alteração ao “pedir” isso a ela.
Milena segue muda.
“O vigia que o patrão encontrou no dia seguinte, era o mesmo do dia anterior?”
“Sim”, afirma dona Chica. “Mas não consigo deixar de imaginar de onde você tirou que poderia não ser o mesmo”.
“Eu sei lá, né?”
Levanto-me da cadeira para pegar um pouco de água. Estou me irritando de forma a não querer mais dar prosseguimento a essa primeira prova, pois, além do desperdício de estar fazendo tudo sozinho, não vim preparado para lidar com enigmas tão complexos.
“Vou dar um tempo, dona Chica. Depois eu continuo”, anuncio.
“Meu sobrinho Bernardo também é muito impaciente”, comenta ela.
Enquanto bebo a água direto do gargalo da garrafa (danem-se as boas maneiras), pondero se escutei certinho o que ela acaba de dizer.
“A senhora tem um neto e um sobrinho com o mesmo nome?!”
“Neto? Não!! Na minha família o único Bernardo que existe é o meu sobrinho”.
“Ela só inventou aquela história de Bernardo e Bianca”, pronuncia-se Milena, finalmente.
Mile larga a revista por cima das outras que jazem na mesa, dá uma massageada no pescoço e continua a falar:
“Só fez isso pra criar uma falsa empatia com a gente, mas pelo visto se esqueceu dos detalhes.”
“De novo esse comportamento hostil, Milena”, observa dona Chica. “Vou ter de começar a lidar com você da mesma forma que fiz com minha enteada Bianca. O bom e velho truque da almofada”.
Dona Chica fecha sua revista, sai de seu lugar e começa a vasculhar pelos cantos da sala, provavelmente em busca de uma almofada. Para quê? Não tenho ideia e nem quero ter.
“Então a história do facão era lorota”, digo para minha ex-sócia.
“Irrelevante”, Milena dá de ombros.


A mente se torna exausta após umas 20 perguntas cujas respostas variaram entre “sim” e “irrelevante”. Curioso como nenhuma das minhas perguntas gerou uma resposta “não”. No entanto, quedo-me sem ideia do que perguntar.
“Você vai desistir?”, indaga dona Chica, maliciosa. “Essa juventude de hoje não luta mais, não ousa mais. Falta gana, coragem, bravura. Quando eu tinha sua idade, meus professores viviam me enchendo de parabéns e elogios por causa das minhas notáveis performances.”
“Na minha idade? Quantos anos a senhora acha que eu tenho?”
“E isso importa?”
“Tem razão”, replico, sem vontade para coisa alguma. “Não importa”.
Nunca imaginei que, na minha segunda visita à sala dos desafios, eu sentiria falta do seu Venâncio, do Juraci e até mesmo do exibido Howard, que no final das contas acabou levando uma cadeirada do mesmo homem que estava ajudando a enganar para criar uma surpresa coletiva de aniversário. Me lembro disso e começo a rir descontroladamente.
“Sabe do que eu me lembrei agora?”, dirijo a palavra para Milena, durante o segundo em que me esqueci de que estamos brigados, distantes, que não somos mais os velhos amigos de outrora. E a lembrança da minha primeira experiência na sala dos desafios se torna inútil. Não tem graça dividir isso com a dona Chica.
Ainda bem que Milena não moveu uma palha de reação. Deve estar muito mais bem-resolvida quanto ao nosso status de ex-amigos, o que é muito cruel e doloroso. É de uma agonia tremenda olhar nos olhos de alguém por quem você teve tanto carinho e enxergar chamas de raiva, indiferença ou qualquer outro traço negativo.
Dona Chica, que supostamente está aqui para mediar nossos conflitos, não está servindo mais do que uma planta numa casa abandonada. E eu que vibrei por dentro quando ela se apresentou como alguém especializado nisso. Mas deve ser apenas uma peça sem real importância no jogo tosco promovido por Aurora.
Falando no diabo...
A televisão outra vez se liga sozinha e podemos ver Aurora sentada numa dessas cadeiras de salão de beleza, a cabeça levemente inclinada para trás, enquanto um cara a está maquiando.
“Olá, meus queridos competidores! Como estão se sentindo?”
“Oi, Aurora!”, dona Chica a cumprimenta, muito empolgada.
“Como podem ver, eu estou numa situação um tanto inusitada aqui”, explica-se Aurora. “Mas resolvi me apresentar assim porque preciso deixar bem claro que não estou perdendo um minuto sequer da incrível aventura que vocês estão passando aí. Eu vi que o Sávio tá bem participativo e procurando ganhar a primeira prova. Isso só demonstra o quanto ele possui os verdadeiros atributos de um vencedor. Parece que a ANNA vai continuar sendo a dona do meu coração”.
E gargalha após dizer isso, ganhando uma tímida bronca de seu maquiador. Apesar da lisonja, não estou entusiasmado com isso. A verdade é que meu desejo não é competir com Milena. Muito menos nesses termos estúpidos, aos moldes de Aurora Souto e em companhia de uma senhorinha de lábia e memória duvidosas.
Incrivelmente, Milena se mantém quieta.
“Eu estou fazendo o que eu posso para evitar as tensões por aqui, Aurora”, mente dona Chica.
Eu poderia desmenti-la, mas como eu disse ainda há pouco, estou sem vontade para coisa alguma.
“Eu estou acompanhando, dona Chica. Conheço e confio no seu trabalho. Não lhe chamei à toa”.
“Suas palavras me animam, Aurora. Muito obrigada pelo incentivo”.
“Imagina, que nada! A senhora é uma gracinha. Mas vamos à segunda prova”.
“Segunda? Mas ainda nem resolvemos a primeira”, protesto.
“Não tem o menor problema, Sávio”, justifica Aurora. “Enquanto vocês se empenham em realizar a segunda prova, podem continuar a fazer as perguntas pra desvendar o enigma da primeira”.
“Desembucha logo!”
Não estou acreditando no que acabo de ouvir. Milena sai de sua zona de conforto e se posta mais em frente à TV do que dona Chica e eu. Desafiadora, mirando Aurora.
“Qual é a prova, Aurora?”
“Uaaauuu!! Ora, ora, então parece que as coisas vão esquentar enfim”, celebra Aurora, e outra vez levando bronca do maquiador.
“Se a gente realizar essas provas o mais rápido possível, a gente também vai embora o mais rápido possível?”, sonda Milena, numa aspereza cortante.
“Hummm”, Aurora exprime algo que me soa como um resmungo. “Acho que você tá precisando de mais espírito esportivo, Milena. É assim que você pretende arrancar dinheiro do Ricardo Beltrão? Porque eu tenho certeza que ele deve estar pagando muito bem pra poder me reconquistar”.
“Aham, tá, beleza. Pode dizer logo qual é a prova, por favor?”, impacienta-se Milena.
“Ok. A prova é a seguinte: vocês terão de pedalar 10 quilômetros numa bicicleta ergométrica enquanto conversam sem parar. Vocês terão de conversar sobre os assuntos que quiserem, contanto que não fiquem mais de 15 segundos calados e, se algum de vocês ficar mais de 15 segundos calado durante o tempo da prova, perde 100 metros na contagem já alcançada. Pedalar e falar, pedalar e falar. Fácil, não?”
“Dez quilômetros?? Mas isso é muito!!”, eu me queixo, escandalizado.
“Talvez nem tanto assim quando se tem companhia pra bater papo”, Aurora tenta amenizar.
“Sei...”, estou analisando as regras da prova. “Mas quando é que vão chegar essas bicicl... Caraca, velho!! Como é possível que as bicicletas já estejam aqui?”
Pela primeira vez aqui na sala dos desafios noto em Milena um olhar que não é de desdém ou desinteresse. Ela também fica impressionada com o fato de as tais bicicletas ergométricas já terem sido colocadas na sala enquanto prestávamos atenção em Aurora.
“Boa sorte aos navegantes. Ou, só pra não sair do contexto, aos ciclistas. Estou saindo daqui a pouco para um casamento de uma amiga, mas vou deixar gravando tudinho pra maratonar mais tarde. Comportem-se e, dona Chica, fique de olho nesses dois, hein!!”
“Não tenho feito mais nada desde que cheguei, Aurora. Pode deixar comigo!”
E a TV se desliga.
Aproximo-me de uma das bicicletas, que tem um visor pronto para começar a contar quando eu começar a pedalar.
“Não tô com a menor disposição pra isso”, confesso.
“Pois devia”, retruca Milena. “Dadas as atuais... circunstâncias, vai te fazer bem”.
“Ela tá certa, Sávio”, comenta dona Chica.
“Dona Chica, me admiro da senhora”, torno-me para a idosa, cismado. “A senhora não se manca em ficar mentindo pra Aurora, sabendo que aqui está cheio de câmeras?”
“Você tem que se preocupar em vencer as provas, Sávio”, ela rebate. “Agora, senta logo nessa bicicleta e cuida de pedalar”.
Milena faz uma espécie de alongamento antes. Sinto até vontade de imitá-la, mas como a ocasião entre nós não é amigável, não quero parecer que estou copiando seus gestos. Quanta infantilidade!! Vou ter de encarar essa bicicleta com muita, muita fé.


Estamos nos primeiros segundos, nenhum assunto me vem à cabeça. É engraçado como, durante a época da amizade, qualquer bobagem vira assunto sobre o qual se debruça por horas, mas quando esta amizade está afetada e destruída, qualquer campo é melindroso. Diálogos são circunstâncias inimagináveis, sofríveis.
“Como é que vai a sua mãe?”, pergunta Milena, me deixando surpreso.
“Hummm... Então você resolveu puxar conversa comigo?”
“É a regra da prova, né? Já que tô aqui...”
“É...”, concordo, porém sem demonstrar a nítida sensação de desgosto que me abate.
“Sua mãe tá bem? E o Dominique?”
“É, eles... eles estão bem... É... O Dominique continua fazendo faculdade, namorando uma garota e... É isso. Ah, a mamãe começou a vender bolos, vive cheia de encomendas, você iria adorar e...”
Pego-me indo além do que a nossa atual situação permite, tentando trazê-la de volta ao meu mundo.
“E o seu pai?”, sinto-me um estúpido por insistir no mesmo tópico pobre e desinteressante.
“Não falo com ele há algum tempo. Mas deve estar bem”.
Pelo menos ela não falou apenas “deve estar bem”. Até incluiu algo a mais. No fundo, deve achar inevitável compartilhar detalhes comigo.
“Legal...”
Ambos ficamos calados. Um, dois, três, quatro...
“Dona Chica”, apresso-me em não permitir que o silêncio tome conta, “continuando com a prova do enigma...”
“Eu já decifrei o enigma”, anuncia Milena, sua voz se sobrepondo à minha. Afinal, nenhum de nós dois pode ficar quieto por mais de quinze segundos.
“Sério?”
“Claro que é sério”.
“Então fala aí. Pôxa, é um enigma bem difícil, se você conseguiu decifrar, parabéns mesmo!”
“Na verdade”, ela limpa os primeiros pingos de suor que começam a se revelar em sua testa, “esse enigma não é tão difícil, é só uma questão de prestar atenção no enunciado da história. A resposta o tempo todo está lá”.
Eu rio, duvidando.
“Não pode ser possível. Eu analisei tanto...”
“Analisou errado”, esnoba Milena. “Bom, a solução do enigma é a seguinte: se o cara era vigia noturno, como ele poderia ter sonhado com o acidente do patrão? Quero dizer, pra sonhar, você precisa dormir, certo?”
“CARAMBA!!”, caio em mim, desfalecendo com a revelação mais óbvia das obviedades. “Claro!! E se um vigia noturno dorme, não está cumprindo seu dever. Por isso foi demitido”.
“Exatamente”.
“Como eu sou tonto!”, culpo-me.
“Vocês acertaram, é isso mesmo”, declara dona Chica.
“Negativo!”, discorda Milena veementemente. “Nada de vocês. Quem acertou fui eu!”
“Ela tem razão, dona Chica”.
“Lamento informar, mas como mediadora de conflitos, não posso e nem devo ser parcial durante o processo. Foi um trabalho em equipe. Dois cérebros coordenados em busca de uma mesma verdade. Isso é louvável, meus caros!”
“Desculpa, dona Chica, mas isso pode até colar numa turma de ensino fundamental na escola ou numa palestrinha pra colegas de trabalho, mas quem ganhou essa prova na real fui eu”, teima Milena, aplicando mais força nas pedaladas.
“Dona Chica, deixa ela. Ela tá certa. Ela ganhou. Eu nem tinha me tocado dessa solução tão evidente. Por mim, não há problema em ter perdido essa”.
“AMANDA um a zero, hahahaha!!”, Mile provoca e ri. Está curtindo o jogo agora que viu que tem potencial.
“Vocês estão tentando impor dificuldades ao meu trabalho, e isso não posso permitir”, reclama dona Chica. “E como eu tenho carta branca da Aurora, vocês terão de conversar apenas o que eu demandar  de vocês, além de continuarem pedalando”.
“Acho que não temos escolha”, respondo.
“Pode mandar ver, tia”, Milena apenas se fortalece em sua certeza de me derrotar.
Quem diria que, aos 30 anos de idade, eu fosse competir com ela e trocar farpas de um modo tão pueril. Chega a ser patético e incômodo.
“Sávio, diga para Milena duas características que você admira nela”.
“Quê?”
“Olha os quinze segundos, rapaz”.
“Mas isso não pode”, protesta Mile. “O tempo que ele leva pra responder uma besteira dessas pode me deixar calada por mais de quinze segundos e eu me ferro aqui. Não!! Encontre um outro jeito de nos azucrinar”.
Dona Chica fecha a cara e vocifera contra Milena:
“Vai ser do meu jeito, sim. Até parece que você não quer ser curada dessa sua atitude tão rude, dona Milena!! Ai, ai, ai!”
“A senhora falou ‘ai, ai, ai’ pra mim?! Putz!! O que é isso, o programa da Super Nanny?”
“Tá, tá”, adoto uma postura conciliadora. “Vou tentar ser bem sucinto, pra não prejudicar a minha... concorrente. Vamos lá. Eu admiro na Milena sua sinceridade exacerbada e o fato dela ter um humor sarcástico que eu adoro”.
Onde eu assino esse atestado de ex-amigo dependente afetivamente da ex-amiga?
“Credo, você gosta desse humor sarcástico?”, espanta-se a dona Chica, pondo a mão no coração.
“O peito do pé de Pedro é preto. Quem disser que o peito do pé de Pedro não é preto...”
Dona Chica e eu encaramos Milena com cara de “que bosta é essa que cê tá fazendo?”, e ela explica:
“Que foi? Não posso ficar calada por mais de quinze segundos, né? Tive que improvisar”.
“Uau! Eu nunca consegui dizer esse trava-línguas”, afirmo com demasiada admiração.
“Hoje você tá descobrindo que não pode muitas coisas, pelo visto”, mais uma vez ela provoca.
“Agora sua vez, Milena”, dona Chica dá continuidade à sua espécie de terapia de casal de ex-amigos. “Diga no que o Sávio faz mais falta pra você. Não pense muito, apenas articule”.
Droga, por que isso está me deixando apreensivo? Será que é o cansaço das pedaladas? Caramba, agora que pedalei meros duzentos e trinta metros. Já estou quase pondo os bofes pra fora...
“Atualmente não tá fazendo falta nenhuma. Eu tenho um namorado maravilhoso e um emprego incrível, que o que está no passado pertence ao passado”, ela leva à risca o pedido de dona Chica para não pensar muito.
E é isso que fere mais. Porque dá para notar a verdade nessas palavras impiedosas. Porque foram ditas sem pestanejar.
“Por que você precisa ser tão má comigo, hein, Milena?”, não posso aguentar.
“Sávio, ainda não é sua vez...”, dona Chica me interrompe.
“Ah, dona Chica, por que a senhora não vai procurar um gato pra admirar o berro, hein? Pois eu vou falar sim, minha vez ou não”.
Acabo de ser totalmente indelicado com a dona Chica e ela fica tão estática com a minha grosseria que, pelo visto, deu um tilt no seu processo mental e a coitada está toda perdida, apenas gaguejando coisas ininteligíveis. Todavia, isso está longe de ser o que me importa agora.
“O que te fez ficar assim, Milena?”
“Do que você tá falando?”
Agora sim. É desse jeito que eu gosto. Ela parou de fingir que sou um inseto invisível. Agora vai me ouvir e me responder.
“Você acha mesmo que tem razão pra me tratar mal desse jeito?”
Curiosamente, parece que meu cansaço passou e até me sinto com mais adrenalina para manter as pedaladas.
“Quer saber?”, dona Chica abre os braços em sinal de desistência. “Tô mais nem aí pra vocês dois. Vão se lascar, seus ingratos!”
A idosa se afasta, mostrando os dedos do meio de ambas as mãos e volta para uma das revistas.
“Eu estou te tratando como você deve ser tratado, Sávio”, justifica Mile.
“Como eu mereço?? É sério isso? E por causa de quê??”
“Nós já fomos amigos uma vez, Sávio. Mas as coisas entre nós mudaram. A nossa amizade foi ameaçada até que acabou”.
“Ameaçada? Por quê? Por causa da Anna? Por causa da minha namorada?”
“Isso não importa”.
O visor da minha bicicleta marca duzentos e oitenta metros. E eu tô com todo o gás.
“Importa sim”, replico. “Importa porque a Milena que eu conheci não fugiria de me responder, de me explicar os motivos reais de qualquer coisa”.
“Aí é que tá. Talvez eu não seja a Milena que você sempre conheceu. Aliás, talvez você nunca tenha me conhecido de verdade”.
“Eu te conheci sim, senhora. Eu convivi com você por uns quinze anos, dividi tantas coisas com você e...”
Ela se mantém pedalando e meneando a cabeça, contrariando tudo que eu digo.
“Sabe, Milena, apesar daquela briga que a gente teve lá na minha casa, no último natal, eu não deixei de sentir sua falta. Fiquei um bom tempo sem saber como tocar a empresa sem você. E mesmo eu tendo um novo parceiro, não é a mesma coisa sem você. A semente original sempre foi sua, sempre partiu de você. Eu simplesmente não consigo reconhecer uma Milena trabalhando no lado oposto, como se fosse, sei lá, um tipo de arqui-inimiga”.
“Arqui-inimiga ou não, eu me descobri na AMANDA, e se você acha que me conhece mesmo, então sabe que eu sou muito decidida quando eu acredito numa coisa. E eu acredito no meu trabalho, eu estou adorando trabalhar lá e desenvolver uma habilidade que eu desconhecia que tinha”.
“A verdade é que eu não sei viver sem você. E se eu acho isso a maior burrice em declarar, diante do seu desprezo por mim, sim, é uma grande burrice. Mas eu não posso mentir, Milena. Inclusive, meu relacionamento com a Anna está estranho justamente por isso”.
“Ih, nem me mete nisso. Não quero ter meu nome envolvido em problemas românticos de ninguém”.
“O que você queria que eu fizesse?”
Ela limpa mais suor da testa, que se avoluma sobre sua pele com mais frequência conforme ela pedala. Alguns fios de seu cabelo começam a se projetar salientemente desalinhados.
“Dá pra você entender que eu não estou em condições de querer coisa alguma, Sávio? Nossa amizade terminou, eu não tenho mais nada a ver com a sua vida. Se você resolve envolver meu nome em algo que traz complicações ao seu namoro, eu não tenho qualquer responsabilidade nisso. Será que você consegue entender?”
“O que eu não consigo entender é como você se tornou uma pessoa tão fria com alguém que esteve presente tanto tempo na sua vida. Como você pode ser tão fria e indiferente comigo? Comigo, Milena. Você consegue me entender?”
“Eu estou sendo normal na medida do possível com você”.
Dou uma risada cansada, arfando.
“Ivan Castro exerce um poder espantoso sobre você, né?”
“Deixa o Ivan fora disso. Respeite o meu namorado, ele não tá aqui pra se defender”.
Assim não consigo, realmente, me conter. Preciso apelar, e vou fazer isso sem medir as consequências.
“Se você soubesse quem o Ivan é de verdade...”
“Cara, eu já falei...”
“Ele te trai, Milena”.
Lanço a bomba, como quem joga uma granada sem dó, com alvo certo.
“Cala a boca, seu...”
Antes que ela complete, eu continuo:
“Ele é tão sujo e mau-caráter que ele te trai e não parece sentir a menor culpa por isso. Eu dei uma boa olhada na cara dele nas vezes em que o segui, e não vi um resquício de remorso ou culpa no olhar dele. Eu vi, Milena. Não foi um boato que escutei na esquina, eu mesmo vi. E eu posso provar”.
Os lábios de Milena estão trêmulos, mas as minhas brutas verdades não a impedem de continuar pedalando. Inclusive, ela segura o guidão com pura violência. De algum jeito, ela está focada nesse jogo proposto por Aurora.
“Eu filmei, eu tirei fotos. Dei uma de detetive mesmo. E não é só isso. É mais podre e mais sujo do que você imagina, Milena. Esse cara te trai com cinco mulheres diferentes”.
Cansado dessa tolice de ficar pedalando, desligo a minha bicicleta. O ar ao redor está ganhando tons tão sombrios que uma bronca histérica de Aurora será o menor de meus problemas. Alcancei trezentos e quarenta metros.
Milena também desliga sua bicicleta. Só agora se deixa notar o quanto está cansada. Tem uma expressão indistinguível nos olhos. Talvez esteja processando cada pancada contida em cada palavra que eu acabei de disparar.
“Me perdoa, Mile”, digo, desta vez sem estar sobressaltado, apenas tentando emitir com o tom da voz que eu ainda sou o Sávio que ela aprendeu a amar como amigo. “Eu não podia permitir que você fosse enganada desse jeito”.
Ela parece uma estátua.
“Milena?”
Ela continua me encarando. E a única que consigo fazer é encará-la de volta, com ternura.
Ela caminha até perto de mim, coisa de uns dois palmos de distância.
“Por que você tá mentindo pra mim?”
“Infelizmente, não é mentira”, garanto.
“Por que você tá mentindo pra mim?”
“Basta você olhar nos meus olhos. Será que nesses anos todos você não aprendeu a reconhecer quando eu estou mentindo?”
Ela me encara no fundo dos olhos, como se esquadrinhasse minha alma. Demora-se nisso uns quarenta segundos. Respira bem fundo, e posso ver seus lábios outra vez tremularem. Em respeito, dou a ela esse tempo necessário para me analisar o quanto quiser.
Seu olhar muda para algo que agora eu sou capaz de traduzir: ela se deu conta de que minhas declarações não contêm uma sombra sequer de mentira.


CONTINUA...

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