(Milena)
As pernas jazem trêmulas e posso
sentir o suor deixando o jeans
grudado a elas. Fazia um tempo considerável que eu não me sentava numa
bicicleta e pedalava com tanta ferocidade e velocidade. Ouso afirmar que jamais empreguei tanto empenho nesse
tipo de atividade.
No entanto, estou aqui, de pé e parada,
imóvel como uma árvore centenária que se recusa a ceder. Encarando Sávio nos
olhos castanho-escuros que me fitam decididos, impassíveis. Mas o pior de tudo:
duramente verdadeiros.
“Por favor, Mile, diz alguma coisa”, ele continua se esforçando em
dar um tom afável à voz. Mas ainda há resquícios da agressividade de suas
palavras flutuando ao redor.
“Minhas pernas”, abro a boca mais cedo do que imaginei. É
praticamente involuntário.
“O que é que tem as suas pernas?”
Apenas mexo a cabeça em negação,
procuro um banquinho e me sento.
Ivan Castro, meu namorado, está
me traindo.
O meu namorado está me traindo.
Com outras. Como se não bastasse o “simples” fato de estar me traindo, é
no plural. A presença de uma letra “s” que tem o poder de causar uma proporção
ainda mais avassaladora à situação.
O meu namorado está me traindo.
O que é que existe de novidade
nisso? Quero dizer, traição faz parte da história do mundo. Já cuidou de
destruir casamentos, amizades, histórias políticas. Confiança é um brinquedo
que vive se espatifando cotidianamente, e vive feito uma boneca suja e toda
remendada. Por que eu deveria estar surpresa?
Bom, eu sei o porquê. É por que
se trata do Ivan.
“Me explica melhor”, outra vez abro a boca de forma quase fugida de
meu controle.
O que está acontecendo comigo?
Essa... Essa aparente calma deveria estar tomando conta de mim?
Sávio me olha como se realmente
esperasse por outra reação. Qual mulher não surtaria ao saber que seu namorado
anda pegando outras, não é? Ainda mais uma mulher como eu, que só falta se ajoelhar
todas as noites e agradecer a Deus por ter encontrado um homem do naipe de Ivan
Castro, do tipo raro e ideal. Boba!
Boba, não. Trouxa. Da mais alta
patente dos trouxas.
Pelo menos corre sob minha pele
uma sensação de alívio por nunca ter me dado o trabalho de me ajoelhar por
causa disso.
Entretanto... Cara, que
tranquilidade bizarra é essa?
Sávio toma um pouco de fôlego e
diz:
“Na verdade, tem bastante coisa pra te contar”.
“Vai em frente”, encorajo-o.
“Certo”, concorda ele, olhando para cima e depois para os lados,
meio que tentando achar a melhor maneira de começar. “Bom, pra início de conversa, nunca fui muito com a cara do Ivan. Sabe
aquela história de bater o santo com o da pessoa? Não rolou com ele. É como se
ele fosse perfeito demais, sabe? E piorou depois de um certo convite que ele me
fez pra dar uma passada lá no bar Deleite”.
Não movo um músculo. Estou
sentada perfeitamente ereta e atenta como uma garotinha obediente, dessas que
presta máxima atenção ao que é dito pelo professor. Até os intervalos entre uma
piscada e outra parecem mais demorados.
“Milena, eu... Droga!”, Sávio se senta também, num outro banquinho
à minha frente. Deve ter se dado conta de algo ainda pior.
Meu Deus, e tem como piorar?
“Eu não sei se eu fiz a coisa certa em te contar isso”.
“Como assim?”
“É que não se trata apenas do Ivan te trair. As verdades sobre ele têm
várias camadas, e eu tenho medo do impacto que elas vão te causar a cada vez
que eu for desfazendo uma por uma”.
“Parece que você sabe coisa pra caramba”.
Ele assente. E eu percebo que eu
gostaria que ele negasse isso.
Ligeiramente inclinado, com os
cotovelos apoiados sobre as coxas, ele continua:
“Você tem certeza que quer saber de tudo?”
“Acho que não tem muita coisa pra gente fazer aqui até a louca da
Aurora voltar a botar a cara naquela TV”.
“O problema é que você tá tão... estranha. Eu acabei de te contar que o
seu namorado tem outras namoradas além de você e, sei lá, você tá aí, calma,
sentada. Você acreditou mesmo ou não?”
Relaxo os ombros durante alguns
segundos, viro a cabeça e espio dona Chica dormindo sentada e de boca aberta no
sofá, a cabeça pendendo de um jeito pra trás que me agonia. Uma edição da
revista Veja repousa sobre seu colo.
Não sei se é o abalo pelas coisas que escutei de Sávio ou se de fato acabo de
ver uma mosca saindo da boca da senhorinha. Enfim.
“Eu não quero decidir agora se acredito ou não. Mas eu tô te dando a
chance pra me contar o que tiver de me contar. Por favor, Sávio, não me poupe”.
“Muito bem”, prepara-se ele, esfregando as mãos nas calças
suavemente. “Acontece que, se eu for te
contar as coisas, digamos assim, numa ordem mais ou menos cronológica, a
história não começa com a descoberta das outras cinco namoradas”.
Não respondo. Quero que ele
encare isso mais como um monólogo do que como diálogo, porque nesse instante eu
só quero ser a ouvinte. E o silêncio é útil para isso.
“Pra início de conversa”, Sávio avança, “essa agência AMANDA já existia quando nós estávamos começando a ANNA.
Eu tinha trabalhado num caso há pouco tempo depois que a gente abriu a empresa,
mas tava tendo um trabalho enorme pra ajudar o cliente a se desapaixonar.
Então, de algum jeito, ele ficou sabendo da existência da AMANDA e resolveu
mergulhar de cabeça na paixão já que a AMANDA poderia ajudá-lo a conquistar o
objeto de paixão”.
Tenho dificuldade em processar a
informação de que AMANDA já existia. É algo que vem descendo com aspereza pela
minha mente, espremido em meio aos outros milhares de pensamentos que estou
tendo.
“Que caso foi esse?”
“Foi de um cliente muito rico chamado Nestor Perucci. Ele se apaixonou
por uma acompanhante de luxo chamada Maxine”.
“Não consigo me lembrar desse nome”.
“Não teria como você lembrar. Eu nunca fiz o relatório desse caso.
Teoricamente, ele nunca existiu”.
Existe vergonha no olhar de
Sávio. Ele certamente se culpa por nunca ter me deixado a par dessa situação.
“Você escondeu isso de mim”, concluo.
“Sim. Mas não foi por mal, não era pra te enganar. Foi porque a gente
tava muito empolgado com o negócio novo, principalmente você. E eu sabia que
você ia se desmotivar se tivesse se deparado com esse tipo de situação bem no
início”.
“E o que mais?”
Medo pelo restante. Sinto como se
a minha alma estivesse dentro de um freezer.
“Bom, pelo visto, quando eu te pedi pra me ajudar a desapaixonar de
novo pela Anna, ela também foi atrás de ajuda, só que pra me reconquistar. E
você já deve ter sacado aonde ela foi. Só que o caso é que ela já conhecia o
Ivan antes de ter ido até ele”.
“O Ivan conhece a Anna?!”, não consigo evitar um esgar de surpresa.
Me vem a lembrança da festa de
reencontro do pessoal do Santo Cristo. Anna entrando com suas amigas e fazendo
a antológica performance de Dancing Queen,
momento em que aproveitei para sair de cena e Ivan me seguiu até a calçada. Ele
fingira que nunca sequer a tinha visto na vida. Como poderia ter mentido tão
bem?
“Sim, eles se conhecem. É uma história um pouco longa, e nem é
relevante. O fato que importa é que eles se conhecem. Anna conversou com o Ivan
e depois disso ele foi atrás de mim, como eu disse ainda há pouco. Eu fui vê-lo
no Deleite, a gente conversou, ele me revelou que conhecia a Anna e insistiu
pra eu marcar um encontro com ela, um jantar, qualquer coisa. Então ele me
chantageou com a história da Maxine, já que ele era o cara por trás da AMANDA,
portanto ele sabia que a nossa agência tinha falhado. Com medo de você ficar
muito chateada comigo, eu cedi à chantagem dele. Mas eu não tava disposto a
voltar com a Anna porque, pra mim, a imagem que havia ficado dela foi a que
você me ajudou a construir. Até que ela me contou a versão dela da história”.
E, propositalmente, ele faz uma
pausa dramática. Sim, “a versão dela da história”, a “versão verdadeira”, que
eu, a bruxa má do oeste, preferi ocultar. Eu era jovem demais na época, mas
quando já tinha maturidade suficiente pra sacar que poderia ter aberto o jogo,
preferi me poupar de dar explicações. Sávio e eu, sempre tentando proteger um
ao outro às nossas maneiras. Inconsequentes, controversas, mas às nossas
maneiras. Hoje me pergunto como a vida teria sido se eu tivesse feito tudo
diferente...
“O que vem depois disso, você já sabe”, Sávio corta o silêncio. “Anna deve ter sido instruída pelo Ivan a me
contar a verdade. Ele deve ter feito ela investir nisso porque desestabilizaria
nossa amizade, me colocaria numa posição delicada com você, facilitando pra que
ela e eu reatássemos”.
“Você não perguntou se ela foi instruída por ele a fazer exatamente
isso?”
“Não”, ele abre os braços. “Depois
que ela me contou tudo que aconteceu no passado, com o tempo eu fui vendo que
não fazia sentido buscar esses detalhes, porque na verdade a Anna não fez nada
de errado. Ela não usou nenhum ardil pra me reconquistar, nenhum truque, ela
não me manipulou. Quem a direcionou para isso foi o Ivan, que sabia as
consequências emocionais que isso teria pra nós. E, sendo seu namorado, estando
com você o tempo todo, dizendo que fazia o melhor por você, ele não deixou de
agir contrariamente. Ele via você com as suas dificuldades, com as suas
fragilidades, mas tava o tempo todo jogando no outro time, porque queria. Até
que fez a sua cabeça de tal forma que te trouxe pro time dele, fazendo você
pensar que tudo era novidade, que a AMANDA era praticamente o caminho mais
natural e possível para você auxiliar as pessoas com seus relacionamentos. Milena,
o grande vilão sempre foi o Ivan”.
Cada vez mais as informações vão
se atropelando na minha cabeça, umas sobre as outras, empurrando-se e
espremendo-se, como uma multidão enfurecida num espaço ínfimo. Cada indivíduo
desta multidão está sedento para ser ouvido, para se manifestar, e vozes se
esgoelam e se confundem, bradando com a violência de quem demanda por atenção
urgente.
Foi preciso vir parar numa droga
de uma sala perdida num oculto oitavo andar e discutir o passado e o presente
com meu ex-melhor amigo, para assim ir tomando consciência das verdades que
sempre estiveram encobertas. Não é que eu nunca tenha enxergado o que estava na
minha cara o tempo inteiro, pois a questão é que não havia nada na minha cara o tempo inteiro!! Eu gostaria de
culpar uma suposta ingenuidade da minha parte, mas não. Eu fui enganada com maestria,
com um primor minucioso de alguém preocupado com todos os detalhes para que
nada deixasse qualquer fiapo de dúvida, um trabalho engenhoso que se preocupou
até mesmo com a possibilidade de eu agir precavida.
Como uma criança abobalhada
diante de um truque aplicado por um ilusionista, me pego estudando como fui
cair nessa. E, para meu desgosto, não descubro.
“É tanta coisa que eu não consigo processar”.
“Eu avisei que poderia te causar um impacto forte”.
“Sim, sim, eu sei. Mas uma coisa é ser avisada, outra é lidar com a
situação”, ajo com impaciência, a um passo da grosseria pura.
Ainda falta a parte das mil
namoradas.
“Mesmo antes de você deixar a ANNA, eu já vinha investigando o Ivan,
mas demorei um pouco pra descobrir algo relevante. Resumindo: eu descobri que
ele se encontra com outras garotas em duas cidades do interior, além de outras
garotas em bairros afastados. No total, são cinco moças. Seis, com você.”
Sávio fala como se estivesse me
dando a notícia de que eu tenho alguma doença terminal. Entendo o lado dele em
estar se comportando assim, mas não quero essa sensação de piedade. Eu já tô
sofrendo um bocado internamente, que merda!
E outras lembranças me vêm à
mente. Tantas coisas fazem o mais perfeito sentido agora. Todas as vezes em que
ele precisou fazer viagens para o interior, nas quais eu jamais pude
acompanhá-lo. O fato de ele não ter redes sociais (afinal, como ele
administraria essa vida de amores múltiplos sendo cadastrado no Facebook?). E mais uma porção de coisas
que tornam as palavras de Sàvio inquestionáveis. Sem falar que...
“Você disse que tem provas”, incito.
“Estão todas guardadas comigo”.
“Você tem que me mostrar essas provas”.
“Eu vou mostrar”.
Outra pausa na conversa. Sávio
deve estar me dando algum tempo para eu deglutir esse bolo desagradável. Mas
esse é também um bolo intragável, que entala e que dá vontade de vomitar.
E eu ainda estou surpresa com a
estranha calmaria reinando em meu coração.
Fico de pé. Indago:
“Por que você tá fazendo isso?”
“Porque é o certo”.
“Mas a gente tinha rompido a nossa amizade”.
“Pois é...”
“E mesmo assim, você se sentiu na obrigação de ficar seguindo o Ivan”.
“Eu nunca engoli como tudo terminou entre a gente. Eu fiquei muito mal.
Mal de um jeito que nunca achei que fosse ficar na minha vida. Sabe, nós éramos
uma dupla. Uma ótima dupla. E no dia do meu aniversário eu... Eu senti o
impacto disso mais fortemente”.
Estou andando pela sala. Mas
atenta a tudo que é confessado por Sávio.
“No dia do meu aniversário, a Anna ia...”, ele faz outra pausa,
desta vez ainda mais dramática do que a outra em que também estava falando da
namorada. “Acho que ela ia me pedir em
casamento. Você faz ideia? Depois de todos esses anos, Anna Munhoz, aquela por
quem eu carreguei o maior saco de mágoas que alguém poderia carregar, estava
ali, no meu aniversário de 30 anos, segurando um anel pra me pedir em
casamento. Tipo, quantas mulheres fazem isso? Mas... eu estraguei tudo. Eu não
conseguia parar de pensar em outra pessoa. Eu não conseguia parar de pensar que
quem eu queria que estivesse comemorando meu aniversário comigo não tava ali. E
que era dessa pessoa que eu realmente sentia falta. A minha melhor amiga. Você,
Milena”.
A voz dele está chorosa, assim
como seus olhos, revelando um vermelho banhado em lágrimas que começam a cair
lentamente. Meu coração se aperta, especialmente porque eu me comportei como
uma cretina no dia do aniversário dele.
“Mas por quê?”, contesto. “Se
eu te tratei mal, por que você insistiu em querer fazer isso?”
Desta vez, ele também se levanta.
“Porque eu não posso aceitar que te perdi pra aquele mentiroso
mau-caráter, Milena. E por mais que você tenha me tratado mal, você tava sendo
enganada e você não merecia passar por isso. Você é a pessoa mais maravilhosa
que eu conheço. E, se eu tinha como te ajudar a sair dessa cilada, eu não podia
hesitar”.
Sávio se aproxima de mim. Eu
ainda me sinto estranha com relação a ele. Mesmo assim, permito que ele pegue
as minhas mãos.
“Eu tô aqui pro que você precisar, Mile. Entendeu?”
A cabeça não mexe, não balbucio
uma frase ou resposta sequer. Por dentro me sinto com as emoções todas
embaralhadas, ao mesmo tempo em que também as sinto retalhadas, em pedaços. Não
consigo me orientar.
“Desculpa, Sávio, mas... pode deixar que eu vou resolver isso sozinha.
A sua ajuda foi primordial, mas eu já te carreguei por tempo demais nesse
problema”.
“Não, Milena, eu realmente quero te ajudar”.
“Você já fez até demais. A única coisa que eu vou te pedir a mais são
as provas que você falou. Eu quero ver tudo, quero conferir por mim mesma”.
“Nada disso. Você não vai lidar com esse problema sozinha. Eu me
recuso”.
“Preciso sair daqui. Por que a Aurora tinha que sumir logo agora?”
Minha respiração começa a ficar
difícil, o peito acelera.
“Eu vou pegar uma água pra você, se acalma um pouco, por favor!”
Ele se afasta para pegar a tal
água. No sofá, dona Chica se espreguiça, acordando. O cochilo dela durou pouco.
A forma como ela desperta é tão estranha quanto ela em si. Não parece
reconhecer o mundo ao redor. A sala dos desafios lhe parece um cenário
enigmático.
Quando Sávio retorna e me entrega
um copo com água, pergunta:
“Existe chance de você me perdoar por eu ter escondido o caso Maxine de
você?”
Eu bebo a água, ponderando a
pergunta e o que vou entregar em resposta. Aproveitando esta ocasião insólita
em que estamos presos, eis minha fala:
“Eu também já escondi coisas de você, então... Eu é que deveria te
pedir perdão. Além do mais, existem outras coisas sobre mim que eu nunca te
contei. Ou que eu menti”.
A serenidade de seu rosto ganha
uma certa alteração. Embora eu lhe tenha contado isso, não parece abalar esse
carinho imenso que ele tem por mim.
“Você acha que a gente poderia conversar sobre essas coisas depois? Ou
você não acha que elas sejam importantes?”, retruca Sávio.
“São importantes sim”.
Dou um último gole na água, ele
se oferece para levar o copo de volta à pequena cozinha anexa. Volto a me
sentar. De supetão, sinto uma necessidade de falar:
“E pensar que eu vim aqui determinada a ser a melhor profissional
possível na reconquista do coração de Aurora Souto. Eu mal poderia acreditar
que estava prestes a desfazer um trabalho que indiretamente eu mesma tinha
feito. Quero dizer, quem fez foi você, mas na época eu ainda fazia parte da
ANNA, né? Então, de certa forma, meu nome tava envolvido”.
“É, eu te entendo. Também achei surreal. Mas juro que eu não tenho nada
a ver com as ideias birutas da Aurora”.
“Eu sei”, reconheço. “Mas
isso é o de menos agora. Se bem que eu queria ter tido a chance de ter tentado,
só pra ver como eu me sairia”.
“Você queria mesmo me enfrentar?”
“Bom, eu não imaginei que você fosse estar aqui... Mas, indiretamente,
eu estaria te enfrentando, de fato”.
“Seria muito bizarro”.
“Você acredita que o tal do Ricardo Beltrão combinou de pagar uma nota
preta pra conseguir conquistar a Aurora de novo? O cara vendeu as ações da
empresa que ele tinha, só pra provar que a ama de verdade, ou seja, deixando de
ser concorrente direto dela. E a cada dois minutos ele só fala em reality
shows. O cara faz maratona até de Batalha
dos confeiteiros, sabia? Ele vive e
respira o mundo que conheceu pelos olhos da Aurora. E, pelo que fiquei sabendo,
ele era um cara extremamente apegado ao dinheiro e à empresa. Eu ia usar esses
trunfos a meu favor”.
“Uau! Isso poderia ter deixado ela balançada, né?”
“Talvez. Mas já não faz mais diferença. Tudo que eu quero é dar o fora
daqui”.
“Faz diferença sim”, ecoa a voz meio arranhada de dona Chica, se
intrometendo na conversa.
Sávio e eu nos viramos para
olhá-la. Ainda está no sofá, coçando os olhos. Ou devo dizer... limpando as
lágrimas?
“O que foi agora, dona Chica?”, preocupa-se Sávio.
“Eu escutei tudo”, ela responde. Só que tem algo estranho. Quero
dizer, além do normal. Não é a voz da dona Chica que está saindo da boca da
dona Chica.
“Aurora?!?!”, assusto-me.
Mas que doideira é essa???
“Ele vendeu as ações da empresa mesmo? Isso é verdade?”, continua
dona Chica, porém com a voz da Aurora.
Sávio e eu levantamos de nossos
bancos e caminhamos alguns passos. Posso jurar que ambos estamos ligeiramente
amedrontados. A julgar pela maneira que eu ando, talvez eu esteja um pouco mais
do que ligeiramente.
“Dona Chica, o que é isso?”, interroga Sávio.
“Gente, eu não sou a dona Chica. Vocês não reconhecem a minha voz? Sou
eu, Aurora. Só que eu tô no casamento de uma amiga, eu avisei vocês, não
avisei? Desculpa aparecer assim, mas quando eu ouvi o que a Milena disse, não
pude ficar calada.”
“Como é que você tá falando através da velhinha?”, questiono, ainda
muito cautelosa com essa situação.
“Eu não quis assustar vocês”, ela explica. “Acontece que a dona Chica na verdade é um protótipo de androide de
última geração que eu estou ajudando a testar. Ela imita perfeitamente os gestos
humanos e interage por horas, dias e até semanas sem que as pessoas se deem
conta de que ela é... Bem, de que ela é um robô. Por ser de última geração, ela
pode ser conectada a uma rede sem fio e ser utilizada como uma espécie de
transmissor de seu proprietário, que é o que está acontecendo agora, portanto
ela reproduz a minha voz. Já que eu vim pra um casamento, a forma que encontrei
de vigiá-los foi colocando ela como espiã. Os olhos dela têm microcâmeras
embutidas que registram imagens em alta definição, entre 1080p e 4K, dependendo
do nível de bateria acoplado na axila esquerda dela. E quando ela “dorme”, os
sons continuam sendo captados. Eu a coloquei pra descansar por causa da
bateria. Ainda não está 100% perfeita, o que explica ela ter pequenas falhas de
memória e de caráter também, mas esses detalhes serão ajustados em breve. Se
bem que, por ser uma velhinha, seria plausível ter uma memória falha, não é?
Enfim, isso será uma revolução no mercado”.
Tudo que eu queria para me sentir
mais otária nesta sala.
“Milena, tudo isso que você falou é verdade mesmo?”, prossegue
Aurora.
O mais incrível é que a droga do
robô está chorando!! Chorando!! Com muito mais realidade envolvida do que
muitos choros de gente de verdade por aí. Como é que isso é possível?
“Bom, Aurora, o que você acha? Certamente eu não desconfiei que estávamos
presos com um androide que tava captando tudo. Logo, não tem como eu estar
mentindo”.
“Mas você sabia que mais tarde eu iria checar as gravações...”
Faz sentido. Mas eu tinha me esquecido
completamente desta “informação tão relevante” ao lidar com a minha dor.
“Se você quiser, investigue por si mesma, Aurora”, declaro. E me
afasto, dando por encerrado o assunto.
“Aquele malandrinho”, o robô/Aurora começa a rir de alegria, como quem
ganha dezenas de presentes de Natal.
Sávio anda de um lado para o
outro, não sabe que atitude tomar.
“Aurora, precisamos sair daqui”, ele finalmente se posiciona. “Já completamos as provas e a Milena e eu
não estamos mais no clima de competição. Sem falar que eu tô vendo que ela já
te convenceu a considerar voltar com o Ricardo Beltrão, não é?”
“Sim, sim. Milena, querida, marque um jantar com ele, por favor. Tô
louca pra conversar sobre vários reality shows com ele. Ah, meu Deus, será que ele acompanha Largados e Pelados? Huuuummmm!!! Quem sabe isso não acabe
rendendo umas ideias pra nós?”
Trancafiada numa sala sem
janelas, tendo de gerenciar uma crise que está se alastrando em meu emocional e
psicológico, presenciando uma senhorinha toda assanhada que na verdade nem
mesmo é um ser humano, batendo de frente com meu ex-melhor amigo que se revelou
o meu único aliado na vida inteira, vendo cair drasticamente a ficha de que eu
venho vivendo um namoro regado e encharcado de mentiras e ilusão...
“AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHH!!!!!!!!!”
Grito com todo o ímpeto e
coragem. Aquela estranha calma que eu estava sentindo morreu. A fúria só estava
se preparando para se manifestar, desde que eu entendera que Sávio estava me
dizendo a verdade.
Agarro o banquinho sobre o qual
estava sentada e, sem pensar uma vez sequer, marcho com muito, muito, muito
ódio em direção à TV onde Aurora faz suas aparições. E sem pudor algum, taco o
banquinho na tela, com precisão e violência tarantinesca. É tanta cólera, tanta
veemência e tanta raiva que a tela se racha ao meio de primeira.
“Milena, não!!”, Sávio berra, vindo até mim, pronto para arrancar o
banco das minhas mãos.
“O que que deu nela?”, dona Chica/o robô/Aurora esbugalha os olhos
e se escandaliza com meu ato, embora não pareça corajosa o bastante para se
levantar do sofá.
E tudo que eu consigo fazer é
gritar e andar de uma lado pro outro. Não contente por ter rachado a tela da
TV, volto até ela e com esforço hercúleo começo a forçar para desprendê-la do
suporte fixo à parede.
“Milena, já chega! Você...”, Sávio vem para me impedir.
“NÃO SE ATREVA, SÁVIO!! NÃO SE ATREVA!!!”, faço o máximo possível
para ele enxergar toda a ira presa em meu olhar, afastando-o apenas com meu
urro de ódio e os dentes cerrados.
De algum modo, consigo. Ele está
estupefato com o meu comportamento.
Finalmente arranco a TV com todas
as forças que me restam e a arremesso contra o chão com vigor. Pego o banquinho
outra vez e começo a espancar a televisão, fazendo os cacos voarem. Não estou me
importando se algum fragmento atingir meus olhos ou coisa parecida. Só quero
colocar pra fora esse animal encolerizado e indomado, repleto de um rancor que
esteve em silêncio.
Bato com as pernas do banquinho
sobre alguns quadros que ornamentam a sala. Quebro a mesa de vidro da copa.
Abro o frigobar e lanço pra fora das prateleiras tudo que tem ali dentro,
deixando o piso molhado e imundo. Corro um pouco até uma estante contendo
alguns livros e vou derrubando-os às dúzias, usando o banquinho para dar pancadas
e mais pancadas firmes contra a estrutura.
“Milena, por favor!”, brada Sávio, em vão.
“Alguém precisa impedir essa menina. Ela tá dando o maior prejuízo na
minha sala dos desafios”, clama a voz de Aurora ecoada via transmissão
robótica, desesperada.
Reviro a mesa, quebro vasos,
arrebento as bicicletas ergométricas, destroço os livros, aniquilo as
câmeras... Tudo isso esbravejando e me esgoelando, experimentando um furor que
eu nunca pensei que fosse possível para mim, me beneficiando de uma inesperada
carga terapêutica.
E a porta se abre. Os dois
brutamontes que servem de seguranças de Aurora surgem, cada um me agarra por um
braço, arrastando-me para a saída. Sávio vem junto. E eu continuo gritando,
esperneando, sentindo um calor infernal ardendo em cada célula do meu corpo.
Não estou mais com raiva, porque acabei de extravasá-la toda, destruindo a sala
dos desafios e deixando tudo em frangalhos e desordem. Aurora nunca esquecerá
do furacão Milena Kerber.
Numa outra sala, desta vez no
térreo do prédio da TechnoCorp, aparentemente um ambiente não camuflado, estou
mais calma. Quieta, pensativa. Sávio, que estava conversando com alguém do lado
de fora, entra.
“Como você tá?”
“Hum”, dou de ombros.
Estou mais calma, é verdade, mas
me deliciando com a sensação de alívio. Apesar de eu ainda estar me sentindo
péssima por dentro, boa parte do peso me saiu das costas quando larguei pra
fora tudo que estava me transtornando.
“Eu falei com a secretária particular da Aurora, ela avisou que a chefe
dela tá a caminho”.
“Ela que não invente de me cobrar pelo prejuízo. A não ser que queira
enfrentar um processo por cárcere privado”, respondo, já me habituando à
Milena que sempre fui. “Se bem que, se eu
não tivesse vindo parar aqui e ficado presa com você lá, eu ainda estaria...”
Solto um suspiro que torna
desnecessário que eu continue o que estava dizendo.
Sávio se demora num olhar
contemplativo em mim. É como se ele tivesse acabado de me reencontrar.
“Você deve estar achando que eu sou louca”.
“Foi a primeira vez que eu te vi atacada daquele jeito”.
“Eu falei que tem coisas sobre mim que você não sabe”.
Ele sorri. Percebo que eu senti
falta do sorriso. Da companhia dele. Das nossas “aventuras”.
“Tá tudo bem entre a gente, Mile?”
Pouso nele meu melhor olhar de afeto
para o momento. Sinto vontade de chorar, mas não gostaria que isso acontecesse
agora.
“Sim!”, respondo, tentando dar o meu melhor sorriso possível.
Nós nos abraçamos.
“Volta pra agência!”, pede ele, com um sentimentalismo verdadeiro e
nobre. “Vamos voltar a ser parceiros e
trabalhar juntos ajudando as pessoas, como sempre foi”.
Porém, não é nisso que eu quero
pensar agora.
“É complicado, Sávio”, eu ainda estou abraçada a ele, com meu rosto
enterrado entre seu pescoço e o ombro esquerdo.
“Tudo bem, meu anjo”, sussurra ele. “Tudo bem”.
Nesse turbilhão de fios
emaranhados em que me sinto com as pernas e as mãos atadas, preciso de força e
sabedoria para compreender quais devem ser os próximos passos a tomar na vida.
O que aconteceu hoje na sala dos desafios vai me deixar marcas muito graves e
eu vou necessitar ser extremamente cuidadosa para lidar com elas sem
enlouquecer. Não posso me deixar
dominar pelas emoções e por atitudes irracionais. Por mais que seja tentador
ponderá-las.
Esse tempo todo eu banquei a
forte, a Milena inabalável, e só Deus sabe o quanto isso demandou de mim.
Agora, contudo, vejo a vida me cobrando para agir com mais força ainda. Força
que eu terei de suscitar de um lugar que eu ainda não conheço.
Força para enfrentar Ivan sem chegar
a fazer com ele o mesmo que eu fiz com aquela imprevista sala num imprevisto
oitavo andar. Só sei que será desgastantemente difícil.
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