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24 de março de 2017

DESAPAIXONANTE --- EPISÓDIO 4x02: A SALA DOS DESAFIOS (parte 2)



(Milena)


As pernas jazem trêmulas e posso sentir o suor deixando o jeans grudado a elas. Fazia um tempo considerável que eu não me sentava numa bicicleta e pedalava com tanta ferocidade e velocidade. Ouso afirmar que jamais empreguei tanto empenho nesse tipo de atividade.
No entanto, estou aqui, de pé e parada, imóvel como uma árvore centenária que se recusa a ceder. Encarando Sávio nos olhos castanho-escuros que me fitam decididos, impassíveis. Mas o pior de tudo: duramente verdadeiros.
“Por favor, Mile, diz alguma coisa”, ele continua se esforçando em dar um tom afável à voz. Mas ainda há resquícios da agressividade de suas palavras flutuando ao redor.
“Minhas pernas”, abro a boca mais cedo do que imaginei. É praticamente involuntário.
“O que é que tem as suas pernas?”
Apenas mexo a cabeça em negação, procuro um banquinho e me sento.
Ivan Castro, meu namorado, está me traindo.
O meu namorado está me traindo.
Com outras. Como se não bastasse o “simples” fato de estar me traindo, é no plural. A presença de uma letra “s” que tem o poder de causar uma proporção ainda mais avassaladora à situação.
O meu namorado está me traindo.
O que é que existe de novidade nisso? Quero dizer, traição faz parte da história do mundo. Já cuidou de destruir casamentos, amizades, histórias políticas. Confiança é um brinquedo que vive se espatifando cotidianamente, e vive feito uma boneca suja e toda remendada. Por que eu deveria estar surpresa?
Bom, eu sei o porquê. É por que se trata do Ivan.
“Me explica melhor”, outra vez abro a boca de forma quase fugida de meu controle.
O que está acontecendo comigo? Essa... Essa aparente calma deveria estar tomando conta de mim?
Sávio me olha como se realmente esperasse por outra reação. Qual mulher não surtaria ao saber que seu namorado anda pegando outras, não é? Ainda mais uma mulher como eu, que só falta se ajoelhar todas as noites e agradecer a Deus por ter encontrado um homem do naipe de Ivan Castro, do tipo raro e ideal. Boba!
Boba, não. Trouxa. Da mais alta patente dos trouxas.
Pelo menos corre sob minha pele uma sensação de alívio por nunca ter me dado o trabalho de me ajoelhar por causa disso.
Entretanto... Cara, que tranquilidade bizarra é essa?
Sávio toma um pouco de fôlego e diz:
“Na verdade, tem bastante coisa pra te contar”.
“Vai em frente”, encorajo-o.
“Certo”, concorda ele, olhando para cima e depois para os lados, meio que tentando achar a melhor maneira de começar. “Bom, pra início de conversa, nunca fui muito com a cara do Ivan. Sabe aquela história de bater o santo com o da pessoa? Não rolou com ele. É como se ele fosse perfeito demais, sabe? E piorou depois de um certo convite que ele me fez pra dar uma passada lá no bar Deleite”.
Não movo um músculo. Estou sentada perfeitamente ereta e atenta como uma garotinha obediente, dessas que presta máxima atenção ao que é dito pelo professor. Até os intervalos entre uma piscada e outra parecem mais demorados.
“Milena, eu... Droga!”, Sávio se senta também, num outro banquinho à minha frente. Deve ter se dado conta de algo ainda pior.
Meu Deus, e tem como piorar?
“Eu não sei se eu fiz a coisa certa em te contar isso”.
“Como assim?”
“É que não se trata apenas do Ivan te trair. As verdades sobre ele têm várias camadas, e eu tenho medo do impacto que elas vão te causar a cada vez que eu for desfazendo uma por uma”.
“Parece que você sabe coisa pra caramba”.
Ele assente. E eu percebo que eu gostaria que ele negasse isso.
Ligeiramente inclinado, com os cotovelos apoiados sobre as coxas, ele continua:
“Você tem certeza que quer saber de tudo?”
“Acho que não tem muita coisa pra gente fazer aqui até a louca da Aurora voltar a botar a cara naquela TV”.
“O problema é que você tá tão... estranha. Eu acabei de te contar que o seu namorado tem outras namoradas além de você e, sei lá, você tá aí, calma, sentada. Você acreditou mesmo ou não?”
Relaxo os ombros durante alguns segundos, viro a cabeça e espio dona Chica dormindo sentada e de boca aberta no sofá, a cabeça pendendo de um jeito pra trás que me agonia. Uma edição da revista Veja repousa sobre seu colo. Não sei se é o abalo pelas coisas que escutei de Sávio ou se de fato acabo de ver uma mosca saindo da boca da senhorinha. Enfim.
“Eu não quero decidir agora se acredito ou não. Mas eu tô te dando a chance pra me contar o que tiver de me contar. Por favor, Sávio, não me poupe”.
“Muito bem”, prepara-se ele, esfregando as mãos nas calças suavemente. “Acontece que, se eu for te contar as coisas, digamos assim, numa ordem mais ou menos cronológica, a história não começa com a descoberta das outras cinco namoradas”.
Não respondo. Quero que ele encare isso mais como um monólogo do que como diálogo, porque nesse instante eu só quero ser a ouvinte. E o silêncio é útil para isso.
“Pra início de conversa”, Sávio avança, “essa agência AMANDA já existia quando nós estávamos começando a ANNA. Eu tinha trabalhado num caso há pouco tempo depois que a gente abriu a empresa, mas tava tendo um trabalho enorme pra ajudar o cliente a se desapaixonar. Então, de algum jeito, ele ficou sabendo da existência da AMANDA e resolveu mergulhar de cabeça na paixão já que a AMANDA poderia ajudá-lo a conquistar o objeto de paixão”.
Tenho dificuldade em processar a informação de que AMANDA já existia. É algo que vem descendo com aspereza pela minha mente, espremido em meio aos outros milhares de pensamentos que estou tendo.
“Que caso foi esse?”
“Foi de um cliente muito rico chamado Nestor Perucci. Ele se apaixonou por uma acompanhante de luxo chamada Maxine”.
“Não consigo me lembrar desse nome”.
“Não teria como você lembrar. Eu nunca fiz o relatório desse caso. Teoricamente, ele nunca existiu”.
Existe vergonha no olhar de Sávio. Ele certamente se culpa por nunca ter me deixado a par dessa situação.
“Você escondeu isso de mim”, concluo.
“Sim. Mas não foi por mal, não era pra te enganar. Foi porque a gente tava muito empolgado com o negócio novo, principalmente você. E eu sabia que você ia se desmotivar se tivesse se deparado com esse tipo de situação bem no início”.
“E o que mais?”
Medo pelo restante. Sinto como se a minha alma estivesse dentro de um freezer.
“Bom, pelo visto, quando eu te pedi pra me ajudar a desapaixonar de novo pela Anna, ela também foi atrás de ajuda, só que pra me reconquistar. E você já deve ter sacado aonde ela foi. Só que o caso é que ela já conhecia o Ivan antes de ter ido até ele”.
“O Ivan conhece a Anna?!”, não consigo evitar um esgar de surpresa.
Me vem a lembrança da festa de reencontro do pessoal do Santo Cristo. Anna entrando com suas amigas e fazendo a antológica performance de Dancing Queen, momento em que aproveitei para sair de cena e Ivan me seguiu até a calçada. Ele fingira que nunca sequer a tinha visto na vida. Como poderia ter mentido tão bem?
“Sim, eles se conhecem. É uma história um pouco longa, e nem é relevante. O fato que importa é que eles se conhecem. Anna conversou com o Ivan e depois disso ele foi atrás de mim, como eu disse ainda há pouco. Eu fui vê-lo no Deleite, a gente conversou, ele me revelou que conhecia a Anna e insistiu pra eu marcar um encontro com ela, um jantar, qualquer coisa. Então ele me chantageou com a história da Maxine, já que ele era o cara por trás da AMANDA, portanto ele sabia que a nossa agência tinha falhado. Com medo de você ficar muito chateada comigo, eu cedi à chantagem dele. Mas eu não tava disposto a voltar com a Anna porque, pra mim, a imagem que havia ficado dela foi a que você me ajudou a construir. Até que ela me contou a versão dela da história”.
E, propositalmente, ele faz uma pausa dramática. Sim, “a versão dela da história”, a “versão verdadeira”, que eu, a bruxa má do oeste, preferi ocultar. Eu era jovem demais na época, mas quando já tinha maturidade suficiente pra sacar que poderia ter aberto o jogo, preferi me poupar de dar explicações. Sávio e eu, sempre tentando proteger um ao outro às nossas maneiras. Inconsequentes, controversas, mas às nossas maneiras. Hoje me pergunto como a vida teria sido se eu tivesse feito tudo diferente...
“O que vem depois disso, você já sabe”, Sávio corta o silêncio. “Anna deve ter sido instruída pelo Ivan a me contar a verdade. Ele deve ter feito ela investir nisso porque desestabilizaria nossa amizade, me colocaria numa posição delicada com você, facilitando pra que ela e eu reatássemos”.
“Você não perguntou se ela foi instruída por ele a fazer exatamente isso?”
“Não”, ele abre os braços. “Depois que ela me contou tudo que aconteceu no passado, com o tempo eu fui vendo que não fazia sentido buscar esses detalhes, porque na verdade a Anna não fez nada de errado. Ela não usou nenhum ardil pra me reconquistar, nenhum truque, ela não me manipulou. Quem a direcionou para isso foi o Ivan, que sabia as consequências emocionais que isso teria pra nós. E, sendo seu namorado, estando com você o tempo todo, dizendo que fazia o melhor por você, ele não deixou de agir contrariamente. Ele via você com as suas dificuldades, com as suas fragilidades, mas tava o tempo todo jogando no outro time, porque queria. Até que fez a sua cabeça de tal forma que te trouxe pro time dele, fazendo você pensar que tudo era novidade, que a AMANDA era praticamente o caminho mais natural e possível para você auxiliar as pessoas com seus relacionamentos. Milena, o grande vilão sempre foi o Ivan”.


Cada vez mais as informações vão se atropelando na minha cabeça, umas sobre as outras, empurrando-se e espremendo-se, como uma multidão enfurecida num espaço ínfimo. Cada indivíduo desta multidão está sedento para ser ouvido, para se manifestar, e vozes se esgoelam e se confundem, bradando com a violência de quem demanda por atenção urgente.
Foi preciso vir parar numa droga de uma sala perdida num oculto oitavo andar e discutir o passado e o presente com meu ex-melhor amigo, para assim ir tomando consciência das verdades que sempre estiveram encobertas. Não é que eu nunca tenha enxergado o que estava na minha cara o tempo inteiro, pois a questão é que não havia nada na minha cara o tempo inteiro!! Eu gostaria de culpar uma suposta ingenuidade da minha parte, mas não. Eu fui enganada com maestria, com um primor minucioso de alguém preocupado com todos os detalhes para que nada deixasse qualquer fiapo de dúvida, um trabalho engenhoso que se preocupou até mesmo com a possibilidade de eu agir precavida.
Como uma criança abobalhada diante de um truque aplicado por um ilusionista, me pego estudando como fui cair nessa. E, para meu desgosto, não descubro.
“É tanta coisa que eu não consigo processar”.
“Eu avisei que poderia te causar um impacto forte”.
“Sim, sim, eu sei. Mas uma coisa é ser avisada, outra é lidar com a situação”, ajo com impaciência, a um passo da grosseria pura.
Ainda falta a parte das mil namoradas.
“Mesmo antes de você deixar a ANNA, eu já vinha investigando o Ivan, mas demorei um pouco pra descobrir algo relevante. Resumindo: eu descobri que ele se encontra com outras garotas em duas cidades do interior, além de outras garotas em bairros afastados. No total, são cinco moças. Seis, com você.”
Sávio fala como se estivesse me dando a notícia de que eu tenho alguma doença terminal. Entendo o lado dele em estar se comportando assim, mas não quero essa sensação de piedade. Eu já tô sofrendo um bocado internamente, que merda!
E outras lembranças me vêm à mente. Tantas coisas fazem o mais perfeito sentido agora. Todas as vezes em que ele precisou fazer viagens para o interior, nas quais eu jamais pude acompanhá-lo. O fato de ele não ter redes sociais (afinal, como ele administraria essa vida de amores múltiplos sendo cadastrado no Facebook?). E mais uma porção de coisas que tornam as palavras de Sàvio inquestionáveis. Sem falar que...
“Você disse que tem provas”, incito.
“Estão todas guardadas comigo”.
“Você tem que me mostrar essas provas”.
“Eu vou mostrar”.
Outra pausa na conversa. Sávio deve estar me dando algum tempo para eu deglutir esse bolo desagradável. Mas esse é também um bolo intragável, que entala e que dá vontade de vomitar.
E eu ainda estou surpresa com a estranha calmaria reinando em meu coração.
Fico de pé. Indago:
“Por que você tá fazendo isso?”
“Porque é o certo”.
“Mas a gente tinha rompido a nossa amizade”.
“Pois é...”
“E mesmo assim, você se sentiu na obrigação de ficar seguindo o Ivan”.
“Eu nunca engoli como tudo terminou entre a gente. Eu fiquei muito mal. Mal de um jeito que nunca achei que fosse ficar na minha vida. Sabe, nós éramos uma dupla. Uma ótima dupla. E no dia do meu aniversário eu... Eu senti o impacto disso mais fortemente”.
Estou andando pela sala. Mas atenta a tudo que é confessado por Sávio.
“No dia do meu aniversário, a Anna ia...”, ele faz outra pausa, desta vez ainda mais dramática do que a outra em que também estava falando da namorada. “Acho que ela ia me pedir em casamento. Você faz ideia? Depois de todos esses anos, Anna Munhoz, aquela por quem eu carreguei o maior saco de mágoas que alguém poderia carregar, estava ali, no meu aniversário de 30 anos, segurando um anel pra me pedir em casamento. Tipo, quantas mulheres fazem isso? Mas... eu estraguei tudo. Eu não conseguia parar de pensar em outra pessoa. Eu não conseguia parar de pensar que quem eu queria que estivesse comemorando meu aniversário comigo não tava ali. E que era dessa pessoa que eu realmente sentia falta. A minha melhor amiga. Você, Milena”.
A voz dele está chorosa, assim como seus olhos, revelando um vermelho banhado em lágrimas que começam a cair lentamente. Meu coração se aperta, especialmente porque eu me comportei como uma cretina no dia do aniversário dele.
“Mas por quê?”, contesto. “Se eu te tratei mal, por que você insistiu em querer fazer isso?”
Desta vez, ele também se levanta.
“Porque eu não posso aceitar que te perdi pra aquele mentiroso mau-caráter, Milena. E por mais que você tenha me tratado mal, você tava sendo enganada e você não merecia passar por isso. Você é a pessoa mais maravilhosa que eu conheço. E, se eu tinha como te ajudar a sair dessa cilada, eu não podia hesitar”.
Sávio se aproxima de mim. Eu ainda me sinto estranha com relação a ele. Mesmo assim, permito que ele pegue as minhas mãos.
“Eu tô aqui pro que você precisar, Mile. Entendeu?”
A cabeça não mexe, não balbucio uma frase ou resposta sequer. Por dentro me sinto com as emoções todas embaralhadas, ao mesmo tempo em que também as sinto retalhadas, em pedaços. Não consigo me orientar.
“Desculpa, Sávio, mas... pode deixar que eu vou resolver isso sozinha. A sua ajuda foi primordial, mas eu já te carreguei por tempo demais nesse problema”.
“Não, Milena, eu realmente quero te ajudar”.
“Você já fez até demais. A única coisa que eu vou te pedir a mais são as provas que você falou. Eu quero ver tudo, quero conferir por mim mesma”.
“Nada disso. Você não vai lidar com esse problema sozinha. Eu me recuso”.
“Preciso sair daqui. Por que a Aurora tinha que sumir logo agora?”
Minha respiração começa a ficar difícil, o peito acelera.
“Eu vou pegar uma água pra você, se acalma um pouco, por favor!”
Ele se afasta para pegar a tal água. No sofá, dona Chica se espreguiça, acordando. O cochilo dela durou pouco. A forma como ela desperta é tão estranha quanto ela em si. Não parece reconhecer o mundo ao redor. A sala dos desafios lhe parece um cenário enigmático.
Quando Sávio retorna e me entrega um copo com água, pergunta:
“Existe chance de você me perdoar por eu ter escondido o caso Maxine de você?”
Eu bebo a água, ponderando a pergunta e o que vou entregar em resposta. Aproveitando esta ocasião insólita em que estamos presos, eis minha fala:
“Eu também já escondi coisas de você, então... Eu é que deveria te pedir perdão. Além do mais, existem outras coisas sobre mim que eu nunca te contei. Ou que eu menti”.
A serenidade de seu rosto ganha uma certa alteração. Embora eu lhe tenha contado isso, não parece abalar esse carinho imenso que ele tem por mim.
“Você acha que a gente poderia conversar sobre essas coisas depois? Ou você não acha que elas sejam importantes?”, retruca Sávio.
“São importantes sim”.
Dou um último gole na água, ele se oferece para levar o copo de volta à pequena cozinha anexa. Volto a me sentar. De supetão, sinto uma necessidade de falar:
“E pensar que eu vim aqui determinada a ser a melhor profissional possível na reconquista do coração de Aurora Souto. Eu mal poderia acreditar que estava prestes a desfazer um trabalho que indiretamente eu mesma tinha feito. Quero dizer, quem fez foi você, mas na época eu ainda fazia parte da ANNA, né? Então, de certa forma, meu nome tava envolvido”.
“É, eu te entendo. Também achei surreal. Mas juro que eu não tenho nada a ver com as ideias birutas da Aurora”.
“Eu sei”, reconheço. “Mas isso é o de menos agora. Se bem que eu queria ter tido a chance de ter tentado, só pra ver como eu me sairia”.
“Você queria mesmo me enfrentar?”
“Bom, eu não imaginei que você fosse estar aqui... Mas, indiretamente, eu estaria te enfrentando, de fato”.
“Seria muito bizarro”.
“Você acredita que o tal do Ricardo Beltrão combinou de pagar uma nota preta pra conseguir conquistar a Aurora de novo? O cara vendeu as ações da empresa que ele tinha, só pra provar que a ama de verdade, ou seja, deixando de ser concorrente direto dela. E a cada dois minutos ele só fala em reality shows. O cara faz maratona até de Batalha dos confeiteiros, sabia? Ele vive e respira o mundo que conheceu pelos olhos da Aurora. E, pelo que fiquei sabendo, ele era um cara extremamente apegado ao dinheiro e à empresa. Eu ia usar esses trunfos a meu favor”.
“Uau! Isso poderia ter deixado ela balançada, né?”
“Talvez. Mas já não faz mais diferença. Tudo que eu quero é dar o fora daqui”.
“Faz diferença sim”, ecoa a voz meio arranhada de dona Chica, se intrometendo na conversa.
Sávio e eu nos viramos para olhá-la. Ainda está no sofá, coçando os olhos. Ou devo dizer... limpando as lágrimas?
“O que foi agora, dona Chica?”, preocupa-se Sávio.
“Eu escutei tudo”, ela responde. Só que tem algo estranho. Quero dizer, além do normal. Não é a voz da dona Chica que está saindo da boca da dona Chica.
“Aurora?!?!”, assusto-me.
Mas que doideira é essa???
“Ele vendeu as ações da empresa mesmo? Isso é verdade?”, continua dona Chica, porém com a voz da Aurora.
Sávio e eu levantamos de nossos bancos e caminhamos alguns passos. Posso jurar que ambos estamos ligeiramente amedrontados. A julgar pela maneira que eu ando, talvez eu esteja um pouco mais do que ligeiramente.
“Dona Chica, o que é isso?”, interroga Sávio.
“Gente, eu não sou a dona Chica. Vocês não reconhecem a minha voz? Sou eu, Aurora. Só que eu tô no casamento de uma amiga, eu avisei vocês, não avisei? Desculpa aparecer assim, mas quando eu ouvi o que a Milena disse, não pude ficar calada.”
“Como é que você tá falando através da velhinha?”, questiono, ainda muito cautelosa com essa situação.
“Eu não quis assustar vocês”, ela explica. “Acontece que a dona Chica na verdade é um protótipo de androide de última geração que eu estou ajudando a testar. Ela imita perfeitamente os gestos humanos e interage por horas, dias e até semanas sem que as pessoas se deem conta de que ela é... Bem, de que ela é um robô. Por ser de última geração, ela pode ser conectada a uma rede sem fio e ser utilizada como uma espécie de transmissor de seu proprietário, que é o que está acontecendo agora, portanto ela reproduz a minha voz. Já que eu vim pra um casamento, a forma que encontrei de vigiá-los foi colocando ela como espiã. Os olhos dela têm microcâmeras embutidas que registram imagens em alta definição, entre 1080p e 4K, dependendo do nível de bateria acoplado na axila esquerda dela. E quando ela “dorme”, os sons continuam sendo captados. Eu a coloquei pra descansar por causa da bateria. Ainda não está 100% perfeita, o que explica ela ter pequenas falhas de memória e de caráter também, mas esses detalhes serão ajustados em breve. Se bem que, por ser uma velhinha, seria plausível ter uma memória falha, não é? Enfim, isso será uma revolução no mercado”.
Tudo que eu queria para me sentir mais otária nesta sala.
“Milena, tudo isso que você falou é verdade mesmo?”, prossegue Aurora.
O mais incrível é que a droga do robô está chorando!! Chorando!! Com muito mais realidade envolvida do que muitos choros de gente de verdade por aí. Como é que isso é possível?
“Bom, Aurora, o que você acha? Certamente eu não desconfiei que estávamos presos com um androide que tava captando tudo. Logo, não tem como eu estar mentindo”.
“Mas você sabia que mais tarde eu iria checar as gravações...”
Faz sentido. Mas eu tinha me esquecido completamente desta “informação tão relevante” ao lidar com a minha dor.
“Se você quiser, investigue por si mesma, Aurora”, declaro. E me afasto, dando por encerrado o assunto.
“Aquele malandrinho”, o robô/Aurora começa a rir de alegria, como quem ganha dezenas de presentes de Natal.
Sávio anda de um lado para o outro, não sabe que atitude tomar.
Aurora, precisamos sair daqui”, ele finalmente se posiciona. “Já completamos as provas e a Milena e eu não estamos mais no clima de competição. Sem falar que eu tô vendo que ela já te convenceu a considerar voltar com o Ricardo Beltrão, não é?”
“Sim, sim. Milena, querida, marque um jantar com ele, por favor. Tô louca pra conversar sobre vários reality shows com ele. Ah, meu Deus, será que ele acompanha Largados e Pelados? Huuuummmm!!! Quem sabe isso não acabe rendendo umas ideias pra nós?”
Trancafiada numa sala sem janelas, tendo de gerenciar uma crise que está se alastrando em meu emocional e psicológico, presenciando uma senhorinha toda assanhada que na verdade nem mesmo é um ser humano, batendo de frente com meu ex-melhor amigo que se revelou o meu único aliado na vida inteira, vendo cair drasticamente a ficha de que eu venho vivendo um namoro regado e encharcado de mentiras e ilusão...
“AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHH!!!!!!!!!”
Grito com todo o ímpeto e coragem. Aquela estranha calma que eu estava sentindo morreu. A fúria só estava se preparando para se manifestar, desde que eu entendera que Sávio estava me dizendo a verdade.
Agarro o banquinho sobre o qual estava sentada e, sem pensar uma vez sequer, marcho com muito, muito, muito ódio em direção à TV onde Aurora faz suas aparições. E sem pudor algum, taco o banquinho na tela, com precisão e violência tarantinesca. É tanta cólera, tanta veemência e tanta raiva que a tela se racha ao meio de primeira.
“Milena, não!!”, Sávio berra, vindo até mim, pronto para arrancar o banco das minhas mãos.
“O que que deu nela?”, dona Chica/o robô/Aurora esbugalha os olhos e se escandaliza com meu ato, embora não pareça corajosa o bastante para se levantar do sofá.
E tudo que eu consigo fazer é gritar e andar de uma lado pro outro. Não contente por ter rachado a tela da TV, volto até ela e com esforço hercúleo começo a forçar para desprendê-la do suporte fixo à parede.
“Milena, já chega! Você...”, Sávio vem para me impedir.
“NÃO SE ATREVA, SÁVIO!! NÃO SE ATREVA!!!”, faço o máximo possível para ele enxergar toda a ira presa em meu olhar, afastando-o apenas com meu urro de ódio e os dentes cerrados.
De algum modo, consigo. Ele está estupefato com o meu comportamento.
Finalmente arranco a TV com todas as forças que me restam e a arremesso contra o chão com vigor. Pego o banquinho outra vez e começo a espancar a televisão, fazendo os cacos voarem. Não estou me importando se algum fragmento atingir meus olhos ou coisa parecida. Só quero colocar pra fora esse animal encolerizado e indomado, repleto de um rancor que esteve em silêncio.
Bato com as pernas do banquinho sobre alguns quadros que ornamentam a sala. Quebro a mesa de vidro da copa. Abro o frigobar e lanço pra fora das prateleiras tudo que tem ali dentro, deixando o piso molhado e imundo. Corro um pouco até uma estante contendo alguns livros e vou derrubando-os às dúzias, usando o banquinho para dar pancadas e mais pancadas firmes contra a estrutura.
“Milena, por favor!”, brada Sávio, em vão.
“Alguém precisa impedir essa menina. Ela tá dando o maior prejuízo na minha sala dos desafios”, clama a voz de Aurora ecoada via transmissão robótica, desesperada.
Reviro a mesa, quebro vasos, arrebento as bicicletas ergométricas, destroço os livros, aniquilo as câmeras... Tudo isso esbravejando e me esgoelando, experimentando um furor que eu nunca pensei que fosse possível para mim, me beneficiando de uma inesperada carga terapêutica.
E a porta se abre. Os dois brutamontes que servem de seguranças de Aurora surgem, cada um me agarra por um braço, arrastando-me para a saída. Sávio vem junto. E eu continuo gritando, esperneando, sentindo um calor infernal ardendo em cada célula do meu corpo. Não estou mais com raiva, porque acabei de extravasá-la toda, destruindo a sala dos desafios e deixando tudo em frangalhos e desordem. Aurora nunca esquecerá do furacão Milena Kerber.


Numa outra sala, desta vez no térreo do prédio da TechnoCorp, aparentemente um ambiente não camuflado, estou mais calma. Quieta, pensativa. Sávio, que estava conversando com alguém do lado de fora, entra.
“Como você tá?”
“Hum”, dou de ombros.
Estou mais calma, é verdade, mas me deliciando com a sensação de alívio. Apesar de eu ainda estar me sentindo péssima por dentro, boa parte do peso me saiu das costas quando larguei pra fora tudo que estava me transtornando.
“Eu falei com a secretária particular da Aurora, ela avisou que a chefe dela tá a caminho”.
“Ela que não invente de me cobrar pelo prejuízo. A não ser que queira enfrentar um processo por cárcere privado”, respondo, já me habituando à Milena que sempre fui. “Se bem que, se eu não tivesse vindo parar aqui e ficado presa com você lá, eu ainda estaria...”
Solto um suspiro que torna desnecessário que eu continue o que estava dizendo.
Sávio se demora num olhar contemplativo em mim. É como se ele tivesse acabado de me reencontrar.
“Você deve estar achando que eu sou louca”.
“Foi a primeira vez que eu te vi atacada daquele jeito”.
“Eu falei que tem coisas sobre mim que você não sabe”.
Ele sorri. Percebo que eu senti falta do sorriso. Da companhia dele. Das nossas “aventuras”.
“Tá tudo bem entre a gente, Mile?”
Pouso nele meu melhor olhar de afeto para o momento. Sinto vontade de chorar, mas não gostaria que isso acontecesse agora.
“Sim!”, respondo, tentando dar o meu melhor sorriso possível.
Nós nos abraçamos.
“Volta pra agência!”, pede ele, com um sentimentalismo verdadeiro e nobre. “Vamos voltar a ser parceiros e trabalhar juntos ajudando as pessoas, como sempre foi”.
Porém, não é nisso que eu quero pensar agora.
“É complicado, Sávio”, eu ainda estou abraçada a ele, com meu rosto enterrado entre seu pescoço e o ombro esquerdo.
“Tudo bem, meu anjo”, sussurra ele. “Tudo bem”.
Nesse turbilhão de fios emaranhados em que me sinto com as pernas e as mãos atadas, preciso de força e sabedoria para compreender quais devem ser os próximos passos a tomar na vida. O que aconteceu hoje na sala dos desafios vai me deixar marcas muito graves e eu vou necessitar ser extremamente cuidadosa para lidar com elas sem enlouquecer. Não posso me deixar dominar pelas emoções e por atitudes irracionais. Por mais que seja tentador ponderá-las.
Esse tempo todo eu banquei a forte, a Milena inabalável, e só Deus sabe o quanto isso demandou de mim. Agora, contudo, vejo a vida me cobrando para agir com mais força ainda. Força que eu terei de suscitar de um lugar que eu ainda não conheço.
Força para enfrentar Ivan sem chegar a fazer com ele o mesmo que eu fiz com aquela imprevista sala num imprevisto oitavo andar. Só sei que será desgastantemente difícil.


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