(Denner)
Mesmo há poucos meses atuando como agente do desapaixonamento, eu até que peguei bem rápido as manhas do ofício. Vale lembrar que o próprio co-fundador da empresa identificou em mim um talento nato. Não quero me gabar, mas isso deu uma inflada enorme no meu ego. Em minha defesa, eu diria que tava necessitado de me sentir importante para a sociedade. E que forma mais deliciosa eu poderia querer? Ajudar a extirpar o câncer das paixões indesejadas é um trabalho de arte e, como tal, não é pra qualquer um. Ah, não é mesmo.
No entanto, vou ser sincero. Apesar de estar numa posição que agora me proporciona muito prazer, ainda sinto que preciso avançar e ser melhor aproveitado nesse mundo. Eu sei que posso ir além. Tenho até uns sonhos secretos, pelos quais sinto imensa surpresa de ainda não tê-los revelado para todos. Sabe, a coisa toda dos “pensamentos orais”, meio que é difícil ficar escondendo segredos e informações confidenciais.
Meu sonho mais secreto é lançar um livro de contos que eu venho escrevendo desde os quinze anos. Às vezes eu escrevo, quase sempre quando estou entediado ou triste. E nos últimos anos isso rolou com certa frequência. Eu guardo a sete chaves um pendrive com todos os 150 textos que eu já produzi. Obviamente que nunca vou colocar todos num livro, pois um autor que se preze precisa ter senso de seletividade. Graças a Deus que nem Glenda e muito menos Lucas sabem sobre isso. Glenda riria da minha cara por um dia inteiro e Lucas destruiria o pendrive a marretadas, na certa rosnando entredentes que não há espaço para mais uma estrela na família que não ele.
Aí é que está: eu não quero ser uma estrela. Eu só quero ter meu livrinho, torná-lo real e palpável. Seria como ter um filho, uma cria gerada pela minha mente e minhas mãos, lançada para o mundo poder abraçar e adotar também como seu próprio filho.
“Eu já terminei de ler tudo”, informa Rita, a única a quem tive a audácia de abrir essa porta da minha vida para alguém entrar.
Estamos sentados num banco de praça, cada um segurando um desses sacos pequenos de amendoim com caramelo e canela. É fim de tarde e dá para ver pessoas praticando jogging, levando cães pra passear e alguns grupos de piquenique espalhados pelo gramado do lugar. Nosso banco é sombreado por uma árvore cujo nome eu desconheço, mas que atira pequenas flores amarelas ao vento.
“Deu pra gostar de pelo menos uns dez?”, é a primeira coisa imbecil que me vem à cabeça, quando na verdade eu devia ter ficado surpreso por ela ter lido tudo em menos de 24 horas.
“Gostei de mais de dez, isso eu garanto”, ela diz, sorrindo. “Você tem um estilo próprio, Pokémon. Eu não conheço muito de literatura, mas o pouco que trabalhei naquela livraria me faz pensar que seu livro não faria muito sucesso com a galerinha mais descolada. Mas isso porque os seus contos realmente têm algum conteúdo, e a maioria dos leitores de hoje só querem historinhas batidas”.
“Amor, assim eu fico sem jeito”, derreto-me. “Tem algum conto que você gostou mais?”
“Ah, eu gostei daquele sobre o homem que acorda num mundo completamente diferente do seu e descobre que ele sempre foi um bug de computador que tinha raciocínio próprio, ou seja, por isso que ele era tido como estranho por todos ao seu redor, quando na verdade ele era o mais sensato”.
“Aaah, sim!! ‘A Ovelha Negra’. Esse também é o meu preferido”, respondo, muito satisfeito pela coincidência.
“Eu gostei mais desse porque me identifiquei muito com o Douglas”.
“Por quê? Você também se sente um bug de computador?”, brinco.
“Não, Denner!”, ela começa a rir um tanto espalhafatosa. “Amor, às vezes você tem umas ideias bizarras, viu? Isso nem me passou pela cabeça”, ela faz uma pausa para apanhar uns amendoins no saco, põe na boca e continua a se explicar, entre mastigadas. “Eu tô falando do fato de ele gostar de escutar música rodando os discos de trás pra frente. De onde você tirou essa ideia? Achei o máximo! Sem falar que algumas letras de música ficam mil vezes melhores ao contrário. Recomendo ouvir ‘Faroeste Caboclo’, viu? Ouvida ao contrário, ela conta uma história maravilhosa sobre golfinhos que auxiliam a polícia a desvendar um caso complexo de assassinato. Pena que os golfinhos não conseguem ingressar na polícia. Ignorância!”
“Pra falar a verdade, eu não tirei de lugar algum. Foi uma ideia meio aleatória”.
“Apesar do que eu disse sobre os leitores de hoje, te dou o maior apoio pra você tentar mandar pra alguma editora, sei lá. Ou a gente poderia tentar publicar em Valpixia. Lá seria mais fácil de conseguir visibilidade e faria muito sucesso entre os valpixianos”.
“Obrigado, amor. Acho que eu vou pensar nessa história de editoras”.
“Isso, meu Pokémon lindo!”
Enquanto ela me ataca docemente com beijinhos lambuzados de caramelo e canela, vou ponderando o quanto não é muito animador saber que minhas histórias teriam sucesso garantido num planeta desconhecido (e muuuuito provavelmente fruto da imaginação da minha namorada). E sobre editoras, não sei se tô a fim de pensar nisso. Mas não posso negar que Rita e essa nova fase da minha vida estão me ajudando a ser mais confiante. Já posso imaginar meu nome numa caprichada edição luxuosa de capa dura, noite de autógrafos lotada, minha família testemunhando minha glória e...
Ah, Denner, vai devagar nas divagações...
Humm... Esse trocadilho cairia bem num próximo conto...
“Adorei também”.
Eu olho espantado para ela, mas no segundo seguinte me toco. Pensamentos orais pairando ao redor.
Pego o telefone para rabiscar a frase magnífica que me ocorreu, para não correr o risco de esquecer, mas me distraio com a notificação recém-chegada. Sávio mandando mensagem no Whats: “Caso novo. Achei interessante você pegá-lo. Vou te mandar as instruções em alguns minutos”.
(Milena)
Ser gordinha é um mero detalhe quando você tem um gosto musical encantador, um namorado extraordinário, uma vida financeira confortável e um senso de empoderamento feminino que nunca precisou das militâncias nas redes sociais para perceber que sempre teve um lugar no mundo. Não querendo desmerecer as amigas feministas e as manas militantes, nada disso. Mas quando você se encontra imersa numa playlist regada a Travis embalando um trajeto de carro, você deixa a mente afrouxar um pouco, e nuvens de alívio e prazer caem sobre seus ombros, massageando-os, e te proporcionam o relaxamento necessário para um dia de muito trabalho.
A contramão de se trabalhar em favor da paixão tem suas complicações, e eu ainda tô pegando o embalo. Depois do meu primeiro caso, cuidei de mais três situações. Cada uma com suas esquisitices e singularidades, porém nada tão assustador. Segundo Ivan, eu estou indo bem.
O caso da vez é um tanto irônico. Como se o fato de trabalhar na AMANDA já não o fosse o suficiente, o cliente que estou atendendo atualmente é um empresário chamado Ricardo Beltrão, alguém de quem Sávio fez uma cliente da época em que eu ainda estava na ANNA se desapaixonar, a igualmente bem-sucedida empresária chamada Aurora Souto. E o cara está muito disposto a recuperar sua ex-namorada.
O problema é que Aurora tem sido negativamente incisiva quanto às minhas investidas. Já tentei fazer com que ela me recebesse, mas ela me contou que sabe que eu estou no “outro time” e não quer saber de qualquer contato a respeito de Ricardo. Devo reconhecer que Sávio deve ter feito um trabalho de excelência. Mas não posso desistir. Essa não é a Milena que eu construí.
Todavia, Aurora que me espere um outro dia. Hoje eu já encerrei as atividades. Mereço um banho de princesa e um descanso de rainha.
Chego em casa, entro cantarolando o refrão de Flowers in the window e a primeira coisa que me ocorre é escrever no diário, tão empolgada eu estou. Fabi é digna de que eu lhe compartilhe um pouco das minhas conquistas.
Entretanto, algo estranho acontece. Eu toco o diário e, pela primeira vez em anos, me bate uma melancolia. Essa companhia que sempre esteve presente em diversos momentos, bons e maus, agora me confronta de uma forma que eu jamais esperei. Mesmo tendo Ivan e sua presença que me abençoa com tanto amor, sinto-me praticamente uma fracassada por estar tão perto dos 30 e não ter o que a maioria dos mortais têm: um melhor amigo. Ou amiga, tanto faz. Não tenho alguém com quem fofocar sobre a vida, os altos, os baixos, nada. Alguém com quem se possa conversar de um jeito diferente de como se conversa com um namorado. Uma coisa tão banal, não? Pois é, e estou eu aqui, bestona, com o coração apertado sentindo falta.
E agora, olhando para Fabi e suas tantas páginas com histórias marcantes, pareço uma menina estúpida com uma amiga imaginária que, por mais bonitinho que seja fingir que ela me escuta e me entende, não passa de uma atitude infantil.
Bom, deixa pra lá. Que droga! Eu cheguei tão bem. Melhor colocar o diário no fundo de alguma gaveta, até eu recuperar um pouco a compostura. Certas coisas na vida morrem, mas você não consegue enterrar, por mais que queira. Se bem que, às vezes, não são elas que morrem, mas é a gente que mata. Porém, sinto agulhadas nos ouvidos gritando que parte da minha vida é uma grande mentira que eu venho contando a mim mesma.
Que pensamentos desordenados, que ideias confusas. Melhor procurar alguma comédia na Netflix. De preferência algo bem pastelão pra soltar o riso logo.
Estou olhando um filme há praticamente uma hora e já nem recordo mais o nome. Isso aí mesmo: olhando. Deitada sozinha, os olhos encaram a tela da TV, mas a mente, que é o que importa, vagueia. Como fui de alegre e maravilhosa com a vida à mulher adulta frustrada que finge que tudo está resolvido?
“Milena, esse tempo todo você tem mentido...”, ouço uma voz tão idêntica à minha. Deve ser assim que soa a voz da consciência, só que ela tem notas sombrias no timbre.
Os pensamentos flutuam. Estou provavelmente prestes a pegar no sono. Quando eu menos der conta, estarei dormindo e...
(Denner)
O nome do cara é Pedro Bispo e exigiu que conversássemos em seu apartamento, num prédio de classe média, no centro da cidade. Sua paixão é uma loira de olhos azuis chamada Olívia. Irresistível, segundo ele. Olhei a fotografia que o Sávio me enviou e até agora não estou tendo dificuldades para resistir a ela. Motivo do desapaixonamento: Pedro já tem esposa e não quer correr o risco de que Olívia passe de mero colírio para os olhos a aventura com graves consequências. Ei, eu disse colírio para os olhos? Uau, isso foi bem redundante. Não posso cometer esse tipo de asneira nos meus textos. Falando nisso, acabo de me tocar que alguns dos meus escritos precisam ser revisados...
O apartamento é o 815, no sétimo andar. Toco a campainha, aguardo.
Pedro atende a porta. Ele é um sujeito completamente careca, branco como leite e está bem-vestido até demais pro meu gosto.
“Bom-dia, Sr. Bispo!”, cumprimento-o, mantendo meu profissionalismo num tom formal, à moda do Sávio.
“Você é o Denner?”
“Exatamente”.
“Ah, que legal. Bom-dia, vai entrando. Não repara a bagunça”, ele demonstra genuína simpatia, enquanto repete os clichês que a maioria das pessoas diz.
Apesar de “não repare a bagunça” ser quase uma frase-feita que nem sempre condiz com uma bagunça de fato preocupante, este lugar está um caos e é impossível não notar a desordem. Preciso disfarçar o olhar de reprovação. Meu Deus, tomara que ele não esteja ouvindo isto. Caramba, Denner, cala a mente!
“Algum problema?”, ele nota que não estou confortável.
“Não, não, tá tudo bem”. Ufa, pelo visto ele não escutou nada.
“Escutar o quê?”, ele indaga, como alguém que acaba de entrar numa conversa e não tem a mínima ideia do que se trata.
“Por favor, Sr. Bispo. Você realmente não precisa se preocupar. Vamos só tratar de negócios mesmo, ok?”
“Hum!”, ele meio que resmunga, entortando ligeiramente a boca. “Bem, já que falou, então vamos direto ao ponto. Pode vir, Olívia!”
“Olívia?!”, repito, como alguém que degusta uma comida nova cujo sabor não lhe é estranho. Ué, Olívia não é a pessoa de quem ele quer se desapaixonar?
Ela aparece na sala, igualmente bem-vestida, com um terninho preto de ótimo caimento. Olhando pessoalmente, parece mais bonita: tão ou mais branca que Pedro, loira de olhos azuis vívidos, postura firme e voz bem cadenciada. No entanto, ainda é razoavelmente resistível. Só que isso está longe de ser a grande bomba deste momento. O mais esquisito nisso tudo é a arma que ela está apontando pra mim.
“Bom-dia, Denner! Não faça nenhuma bobagem, e eu não precisarei usar isto”, é assim que ela se apresenta. “Como você já sabe, meu nome é Olívia. Olívia Dantas, pra ser mais exata. E tem outra forma de me impedir de usar essa arma: você cooperar com a gente”.
De repente me deu uma vontade abrupta de dizer que meu nome é Afonsim e errei o endereço. Não sei se tô pronto para lidar com outro absurdo envolvendo meu trabalho na ANNA.
(Milena)
Estou com minha mãe no carro. Ela veio me buscar no colégio. Seu rosto denuncia uma alegria típica, o que dá pra notar mesmo com ela ocultando o olhar com os óculos de sol. Põe sua música favorita no toca-fitas, uma canção francesa chamada Tous les garçons e les filles. E vai cantando junto, enquanto dirige. Do alto dos meus dez anos de idade, finjo que odeio a música, adotando uma carinha azeda, mas só por pirraça mesmo. Ora, não quero parecer que curto essa “música de velho”. Para arrematar, silêncio é fundamental nesta receita. A melodia é uma gracinha e me lembro de já ter espiado a tradução que mamãe tinha anotado em uma agenda velha. A letra era bem depressiva, porém com um lampejo de esperança no final.
Embora eu ame muito minha mãe, eu nem sonho com as reviravoltas terríveis que virão em nossas vidas.
Tous les garçons et les filles de mon âge
se promènent dans la rue deux par deux
Tous les garçons et les filles de mon âge
savent bien ce que c'est d'être heureux
Et les yeux dans les yeux et la main dans la main
Ils s'en vont amoureux sans peur du lendemain
Oui mais moi, je vais seule par les rues, l'âme en peine
Oui mais moi, je vais seule, car personne ne m'aime
“Como foi a aula hoje, filha?”, ela dá um tempo na cantoria para interagir.
“Normal”, eu sou bem chatinha, percebe?
“Nada diferente?”
“Bom, mais ou menos. Hoje a Emiliana sentou na fileira das janelas. Ah, o Teodoro espirrou umas dezesseis vezes na aula da professora Idalina. Tá todo mundo com medo de gripar. Fora isso, tudo igual”.
“Uau!”, exclama ela. “Parece que essa escola precisa de um pouco de emoção, né?”
“É”, respondo dando de ombros. No momento, não sou exatamente uma caçadora de emoções.
“E o cursinho de inglês?”
Eu suspiro. O curso de inglês é uma tortura ainda maior, mas não por alguma provável chatice ou falta de emoção. Minha tortura tem nome: Alderico Villas-Boas. É um riquinho boa-pinta, cheiroso a colônia de marca e filho de pais ricos. Além de ter “rico” no nome, o garoto tem sobrenome de família bacana. Meu problema com Alderico é ser gamadérrima nele, pra variar. Minha mãe sabe, ela viu minha caixinha cheia de bilhetinhos trocados entre Alderico e eu. Fiquei morta de vergonha quando ela descobriu, pois era descarado, pela grafia das cartas, que eu mesma escrevia, inclusive, os bilhetes de Alderico. Com direito a bizarras declarações com apelidinhos duvidosos.
“What about Alderico, how is he?”
Reviro os olhos para minha mãe tentando falar inglês comigo. Ela fez um curso em alguma época dourada de sua vida e fica me pressionando a me comunicar com ela nessa língua, sendo que minhas notas no cursinho de inglês são uma lástima e eu ainda troco diversos pronomes e enfio o verbo to be em inúmeras situações desnecessárias e equivocadas.
“Mãe, não quero falar do Alderico, tá?”
“Milena”, ela fala meu nome sorrindo, provavelmente me achando uma coitadinha ingênua. “Você tá muito nova pra sofrer por amor, sabia? Quer dizer, amor não. Uma paixonite. Um crush, como dizem em inglês. Me diz o seguinte: o Alderico é tão gatinho assim?”
Por que as mães tentam parecer descoladas?
“Ai, mãe, por favor. Dá pra ser apenas mãe? Uma mãe normal, sem ficar me perguntando essas coisas. Não prefere saber da prova horrível de matemática que eu fiz?”
Ela ri. E retruca:
“Ué, Milena, mas eu tô sendo uma mãe normal. Ou você acha que eu preciso ser chata de galocha? Não, senhora. E pra te mostrar como sou uma mãe legal, vou te ajudar a não ficar sofrendo tanto por essa paixonite pelo Alderico. Você pensa muito nele?”
“Mãe!”, eu berro, na tentativa de censurá-la. Mas tudo que ela faz é apenas se divertir.
“É sério, filha”.
Hesito. Ela não vai desistir.
“Mãe, eu não quero falar disso, não tô a fim”.
“Pois quando você for pensar nele da próxima vez”, ela me ignora e segue, “imagine o Alderico sentado no vaso sanitário, se esforçando pra caramba pra fazer o número dois e...”
“Meu Deus, eu não acredito!”
Tudo que dá pra fazer agora é dar graças a Deus que só estamos nós duas no carro. E ela continua rindo. A música francesa continua rolando, totalmente desconexa com essa conversa estranha.
“Eu tô rindo, mas você vai ver como isso funciona. Alderico vai deixar de ser um príncipe inalcançável e vai se tornar um menino normal. Olha, te digo mais: se você se dedicar, dá até pra desgostar dele fazendo isso. Pode confiar”.
“Mãe, volte a cantar a sua música”.
Acordo. Estou me sentindo sedada na cama. Que horas são?
Quando alcanço o celular na mesinha ao lado da cama, ele acaba tocando. É Ivan.
“Bom-dia, meu amor”, ele soa radiante.
“Oi”, eu soo seca.
“Milena, você tá bem? Já são mais de onze da manhã. Você não vem trabalhar?”
“Ai, caraca!”, eu me ajeito para ficar sentada sobre o colchão, desacreditada do tanto que eu dormi. “Desculpa, Ivan, eu... Nossa! Eu dormi pesado. Mas vou me arrumar rápido e já apareço aí”.
“Aconteceu alguma coisa?”
“Não, é que eu... Sei lá... Eu acordei meio assustada”.
“Pesadelo?”
“Não. Mas eu tive um sonho muito esquisito”.
“Que sonho?”
Respiro fundo. Agora que o mundo está voltando a fazer sentido para mim, a consciência retomando o que é a vida real.
“Na verdade, eu tô assustada porque foi a primeira vez que isso me aconteceu. Ivan, você já teve um sonho que na verdade não era bem um sonho, mas sim uma memória muito vívida? Como se você estivesse assistindo a uma cena do jeitinho que ela aconteceu”.
“Eita!”, ele se impressiona. “Até onde eu me lembro, nunca passei por isso. Alguns sonhos podem reproduzir coisas muito semelhantes à vida real, mas desse jeito que você tá dizendo, nunca ouvi falar”.
“Pois é... Eu sonhei com a minha mãe... Digo, eu me lembrei dela, de um episódio que aconteceu quando eu tinha dez anos. Nossa! Tudo igualzinho, igualzinho...”
Ivan fica mudo. Certamente está esperando por mais detalhes.
“Bom, enfim, vamos deixar pra lá”, concluo. “Daqui a pouco tô chegando aí”.
“Tudo bem, meu amor. E pra te dar um gás, tenho uma ótima notícia: Aurora vai te receber lá no prédio da TechnoCorp”.
“Sério??”, fico exultante num piscar de olhos. “Nossa, até que enfim aquela mulher resolveu ceder”.
“Vem pra cá que eu te passo maiores informações. Te amo!”
“Te amo também. Me espera!”
Levanto-me motivada, abro o guarda-roupa para separar o que vestirei, acabo precisando abrir a gaveta onde o diário está guardado. E então, quando ponho os olhos nele, absorvo a mesma sensação de melancolia de ontem. Nunca cheguei a comentar com ninguém, mas o diário foi um presente de minha mãe. Ela me deu porque teve um igualzinho quando era adolescente. Com sua capa de um papel bem macio ao toque, repleto de flores e planetas desenhados (uma combinação que sempre me intrigou por aparentemente não ter nada a ver, então talvez justamente por isso sempre me atraiu). Apesar da sensação um tanto amarga que estou tendo agora, abro-o e, sorrindo, apanho uma caneta da mesma gaveta onde o deixara, e escrevo numa folha em branco:
Bom dia, Fabi.
Hoje vai ser um belo dia para arrasar, sabia? Me deseje sorte.
Deixo a anotação sem data. Fecho o diário, devolvo-o para o fundo da gaveta. Cerro meus olhos, mentalizo um dia maravilhoso e sussurro:
“Obrigada, mãe!”
(Denner)
Estamos Pedro e eu sentados, enquanto Olívia se mantém de pé, mas sua arma está abaixada.
“Tudo bem, o que é que vocês querem de mim?”, disfarço o nervosismo o máximo que eu posso, mas algumas palavras saem gaguejadas, atropeladas.
“Só precisamos que coopere conosco, Denner”, Olívia repete o que ela já havia anunciado quando me apontou o revólver minutos atrás. “Precisamos de você para cumprir uma missão”.
“Então”, volto-me para Pedro, “você não vai usar o serviço da empresa, né?”
“Não, não”, ele responde mexendo a mão em sinal que parece desprezo. “Já sou desapaixonado pela Olívia desde que nos conhecemos. Digamos que ela não faz o meu tipo.”
Tá explicado por que eu não a achei tão irresistível assim.
“A verdade é que mulher nenhuma faz o tipo do Pedro, mas enfim...”
“Então que missão seria essa?”, interesso-me, sentindo uma gota de suor brotar na minha testa.
“Pedro, pega um pouco de água pro rapaz. Ele tá claramente com muito medo da gente”.
“Isso não é de todo ruim”, comenta ele, levantando-se e se dirigindo para a cozinha. “Mas fique sabendo que eu só vou pegar água porque eu também acho que ele precisa, não porque você mandou”.
Olívia não replica. Dá pra ver que eles vivem nessa tensão.
“Tensão faz parte”, ela me faz perceber que outro pensamento oral vazou. “Somos apenas parceiros profissionais, não existe necessidade de montar um clubinho da amizade. Assim, fica tudo mais prático”.
Eu mexo a cabeça, assentindo. Pedro volta com a água, eu bebo. Só agora noto que eu estava precisando disso mais do que eu pensei.
“Obrigado”.
“É o seguinte, Denner. Precisamos de você para recuperar algo importante. Fomos contratados por uma pessoa muito rica. Só que essa pessoa não concorda muito como nossos... métodos”, ela explica, indicando a arma. “Então, precisamos que você convença sua namorada a ir embora conosco”.
“Quê?! A Rita Lina?!”
“Por acaso você tem mais de uma namorada?”, Pedro banca o babaca por causa da minha reação.
“Sim, a Rita Lina”, confirma Olívia, com uma paciência que soa falsa. “A pessoa que está nos pagando nos fez jurar em um contrato que não usaríamos de violência contra a moça. Então, a mim pareceu razoável usar outra forma de chegar até ela. E aqui está você. E no contrato não diz nada sobre usar violência com terceiros”.
“E pra onde vocês estão querendo levar a Rita embora? Quem contratou vocês?”
“Sinto muito, mas não podemos responder nada”, diz Pedro, em tom enigmático, triunfando sobre a minha ignorância.
“Vamos levá-la de volta pra casa”, Olívia contraria o colega.
“Sua vaca!”, Pedro se chateia.
“Como assim ‘de volta pra casa’? A casa dela é aqui”.
Ouve-se o som de um celular tocando.
“Essa música é da abertura de Arquivo X?”, constato, admirado do quanto isso fica cada vez mais esdrúxulo.
“É o meu celular tocando, eu gosto de Arquivo X, ué!”, Pedro se afasta um pouco para lidar com o telefone, mas faz isso tão rápido que deve ter simplesmente recusado a chamada.
“Meu Deus!”, exclamo, com os olhos esbugalhados. “Agora eu entendi tudo. Vocês são valpixianos!”
Eles se entreolham, intrigados.
“Val quê?”, Pedro me encara como se eu fosse um lelé bêbado.
“Valpixianos! Os alienígenas que abduziram a Rita uma vez. Droga, sei lá o que eu tô falando. Nem sei se essa história é verdadeira. Ah, dane-se! Vocês são ETs ou não são?”
Já que é pra perder as honras, vamos rolar ladeira abaixo sem previsão de levantar depois que chegarmos ao final.
“Que tipo de maluquice é essa, Denner?”, irrita-se Pedro, certamente ofendido por eu ter insinuado que ele é um extraterrestre.
“Percebeu o padrão?”, Olívia indaga Pedro.
“Sim”, confirma ele, meio contrafeito, mas ainda assim fomentando alguma informação que continua nebulosa pra mim.
“Dá pra vocês pararem de falar desse jeito misterioso? Eu não tô entendendo nada”.
“Infelizmente, Pedro e eu somos tão humanos quanto você, Denner. E pra cumprirmos essa missão, você não precisa entender mais do que já lhe foi explicado”.
“O problema de vocês é que tentaram me explicar, mas deixaram mais buracos na minha cabeça”.
“É a vida”, Olívia se expressa com a frieza de um psicopata. Essa mulher está me dando arrepios.
“Peraí! Eram vocês que vinham me seguindo esses tempos?”
“Você viu a gente?”, Pedro fica impressionado.
“Não, mas... Eu tive a sensação de estar sendo seguido”.
“Estávamos sondando”, esclarece ele.
O pior de tudo é que não posso sequer tentar bolar um plano para lidar com esses dois, por receio de escapulir mais um dos meus pensamentos.
“E se eu não quiser ajudar?”, desafio-os.
Olívia respira fundo, enfim resolve se sentar. Pedro analisa cada movimento dela. E observa como eu reajo a cada um deles. Ela dá o ultimato:
“Só existe um pequeno probleminha, Denner. Você não tem escolha. Ou você ajuda ou morre”.
Eu mencionei arrepios agora há pouco? Esqueça. Olívia e Pedro estão me fazendo conhecer a real sensação de pânico iminente.
(Milena)
O prédio tem cinco andares e um bonito letreiro gigante, prateado, anunciando “TechnoCorp”. Aurora Souto ganhou seu primeiro milhão ao vencer um reality show chamado “Tá pouco ou quer mais?”, onze anos atrás. Em vez de seguir uma carreira de subcelebridade e talvez virar meme na Internet, posar para uma revista masculina ou protagonizar novelas, ela preferiu meter o nariz em coisas mais “sérias”, como essa empresa que cuida da segurança de diversas outras empresas. Ainda assim, continuo vendo Aurora como uma mulher de gostos duvidosos e prestes a cuspir fogo contra qualquer pessoa. Ou até pior.
Da outra vez em que tive contato com ela, tive de passar o caso para o Sávio assumir, e ele nunca me contou muitos detalhes. Lembro-me de que deixei por isso mesmo, já que ele tinha alcançado sucesso. Mas agora seria maravilhoso ter um relato mais completo sobre Aurora e suas esquisitices. Prevenção.
Ora, Milena, será que você precisa mesmo disso? Não, não, não. Sem facilidades. Vá, encare o desafio e dê o seu próprio show. Até porque você não é mais uma amadora. Você se preparou para esse caso. Você vai conseguir.
“Boa tarde, Aurora! Como tem passado?”, exalo simpatia assim que me aconchego numa cadeira em frente à sua mesa. Simpatia é o melhor cartão de visita.
“Boa tarde, Milena! Eu estou bem. Felizmente não passo temporadas na Ilha dos traidores, sabe?”
“Uau! Você tá bem afiada, hein. Por que esse ódio todo pelo Ricardo?”
“Queridinha, eu nem comecei a me referir àquele verme. Esse negócio de ilha dos traidores é uma indireta pra você. Ou melhor, agora é uma direta mesmo. Como pôde mudar de lado?”
“Isso não vem ao caso, Aurora. E gostaria de ser respeitada como profissional”.
“Então você acha que pode ajudar o Ricardo a me reconquistar?! Que piada! O Sávio, seu ex-sócio, já fez um bom trabalho ao abrir meus olhos sobre aquele canalha”.
Fico desconfortável com essas comparações. A cusparada de fogo começou antes do que eu imaginava. Mas estou determinada a ir até o fim.
“Interessante isso, Aurora. Abrir os olhos. Tô vendo uma questão de perspectiva aqui. Talvez você vá gostar de conversar comigo, eu posso te proporcionar outra perspectiva a respeito do Ricardo”.
Ela me encara, incrédula. Abre a boca para cuspir mais palavras flamejantes, mas é interrompida por uma ligação da recepcionista.
“Sim, sim, diga pra ela entrar”, ela encerra o contato, desliga o telefone.
Eu não tenho ideia do que está acontecendo. Parece que, mesmo ocupada comigo, ela vai atender outra pessoa. Droga, que chatice! Se alguém precisar testar os limites de paciência de um monge tibetano, Aurora seria a indicação perfeita para o trabalho.
Uma senhorinha de uns 60 anos, rechonchuda, com os cabelos pintados de acaju e sardas espalhadas pelo rosto e pescoço, entra na sala de Aurora Souto.
“Milena, essa é a dona Francisca. Mas todos a chamamos de dona Chica. Boa tarde, dona Chica, como vai a senhora?”
“Um pouco cansada, Aurora”, a tal dona Chica responde, abrindo um estojo de couro e tirando dele os óculos de grau, um troço espalhafatoso gigantesco que mais parece um item de fantasia de carnaval. “Olá, minha jovem!”, ela acena para mim.
Eu sussurro um “olá” acrescido de um sorriso sem sal.
“A senhora está pronta, dona Chica?”
Ela balança a cabeça, garantindo, enquanto puxa fôlego. Diante desta cena, eu diria que ela está pronta sim. Para ir para a terra dos pés-juntos.
“Milena, acompanhe-nos!”, ordena Aurora.
“Acompanhar pra onde, Aurora? Eu vim aqui pra resolver um assunto com você. Aqui no seu escritório, lembra?”
“E é por isso mesmo que estou te chamando. Pra resolvermos esse assunto”.
“Mas...”, contraponho-me, olhando para a senhorinha, pois ela não tem a ver com meu trabalho nem com a questão a ser tratada.
“Vamos”, Aurora é taxativa.
Que raiva que eu tô dessa mulher! Tô odiando isso profundamente.
Só me resta segui-la. Quase caio pra trás quando, depois de Aurora apertar um discreto botão na parede, surge a porta do que parece um elevador particular. Como eu tô muito a fim de solucionar essa situação, não hesito em entrar, juntamente com ela e a velhinha.
O elevador sobe. Entretanto, um fato curioso me intriga. Há um oito brilhando quando o elevador para. A porta se abre, pondo diante de nossos olhos um corredor silencioso, um tanto soturno, que me fez recordar um pouco de O iluminado. Não aparecendo as irmãs Grady, pra mim, tá beleza.
“O que é isso, Aurora?”, questiono. “O seu prédio não tem apenas cinco andares?”
“Cinco andares oficiais e três camuflados. Este é o oitavo. Venham comigo, vocês duas!”
“Ainda mais essa agora”, eu me queixo.
“Minha filha, você reclama pra cacete, hein!”, a dona Chica me alfineta. Ela foi tão inesperada que eu mal consigo balbuciar algo em resposta.
Aurora abre a única porta que existe neste misterioso oitavo andar. Há dois homens muito fortes e altos à espera, mudos feito postes. De terno e gravata, supostamente são seguranças. Mas... por que eles estão aqui?
Dona Chica é a primeira a entrar. Eu sou detida pelos brutamontes.
“Que que foi, cara?”, falo diretamente a um deles. “Dá pra me dar licença, por favor?”
“Um momentinho, Milena”, Aurora se aproxima, numa doçura que me dá ainda mais raiva, porque é um fingimento além do que se pode aguentar. E ela sabe isso, então faz de propósito. “Você precisa entregar a sua bolsa pro Reginaldo e pro Pardal. Principalmente se o seu celular estiver dentro dela”.
“Eu? Mas de jeito nenhum. Não sei quem são esses caras. Por que eu tenho de entregar minhas coisas pra eles?”
“É a única forma de podermos resolver o nosso assunto”, retruca ela, com seu sorriso diabólico.
Estou ponderando firmemente largar esse caso.
“Prometa que vai ser rápido, Aurora”.
“Isso não depende de mim, meu amor. Depende de você”.
Um pequeno vão entre os dois postes de terno me deixa ver a dona Chica sentada de boa numa poltrona, com as pernas esticadas e folheando uma revista.
“Isso tá muito estranho, Aurora”, volto a reclamar, tirando minha bolsa e me livrando de meus pertences e colocando nas mãos dos seguranças. “Pronto. Dá pra sair da frente agora, coleguinha?”
Reginaldo e Pardal abrem caminho, sem dar um pio. Entro no que parece ser um pequeno apartamento misturado com escritório. E, assim que dou três passos, a porta se fecha num estrondo e tão rapidamente, que me assusto.
“Ei! Ei! Aurora!! Aurooooraaa!!”, bato insistentemente na porta, ao mesmo tempo em que aumenta a revolta por não estar entendendo do que se trata tudo isso.
“É inútil, minha filha”, manifesta-se a velha.
“Essa mulher é louca? Por que trancou a gente aqui?”, torno-me para dona Chica, pelo visto mais por dentro do que eu.
Agora que eu realmente preciso que ela dê algum pitaco, dona Chica resolve se fazer de surda.
Começo a andar pelo lugar. Está todo arrumado. Tem sofá, frigobar, uma mesa, uma televisão e outras tralhas. Porém, não há uma janela sequer. Por outro lado, está repleto de câmeras. Faço as contas e não quero aceitar a verdade tosca de que Aurora Souto quer fazer de mim e desta senhora vítimas de uma espécie de reality show.
“Meu Deus, essa mulher é doente”, declaro.
De repente, sinto a pele congelar. Totalmente do nada, começa a tocar uma música. E a melodia vai preenchendo o ambiente, mas o efeito sobre mim mais parece um golpe desferido sem piedade contra o meu coração. Tous les garçons et les filles, a música que sempre considerei a minha favorita, porque era a favorita da minha mãe. Aurora não tinha como saber disso. Ninguém sabe.
Dirijo-me a uma das câmeras, enfurecida:
“Muito bem, Aurora, agora você foi longe demais. Brincadeira tem limites. E eu não tô gostando nada disso. Como foi que você descobriu sobre essa música? Aurora!! Aurora!! Responda, Aurora!! Eu quero ir embora desse lugar. Auroooraaa!!!”
Como que para debochar de mim, a música fica mais alta. E eu mais aflita.
“Você tá tão nervosa assim por causa de uma música?”, diz uma voz vinda das sombras, que não pode ser a dona Chica, porque é uma voz de homem.
A voz vem de uma parte menos iluminada da sala. E é uma voz com a qual eu me acostumei por muitos anos.
“Esse preto caiu muito bem no seu cabelo”, Sávio revela-se.
“Sávio”, murmuro, meio desnorteada, tonta e completamente confusa de tanta surpresa por reencontrá-lo num momento tão inoportuno.
“Oi, Milena. Bem-vinda à sala dos desafios!”
“Quê?”
“Esse lugar”, ele abre os braços, “é onde ANNA e AMANDA disputarão o coração da Aurora Souto”.
E foi assim que eu vim me meter numa das maiores e mais indesejáveis encrencas de toda a minha vida.
Obrigado pela leitura e nos vemos em 2017, para a temporada final. Grande abraço do autor Marvin Cross :)
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