(Sávio)
Quando decidi que ia investigar
Ivan Castro, por pura cisma com a cara dele, havia um motivo claro: proteger
minha melhor amiga das garras de um possível mau-caráter. Depois disso, veio o
encontro que tivemos no restaurante-bar que ele tem, onde ele se mostrou um
chantagista de primeira linha, o que me acendeu o alerta vermelho. Bom, por
mais que agora as coisas entre Mile e eu estejam feito pó soprado e espalhado
pelo vento, não desisti da empreitada investigativa.
O relógio marca uma e dez da
manhã. Aluguei um carro para dar prosseguimento ao que eu acredito que será a
última aplicação do meu plano. E confesso que estou bastante confuso com tudo o
que vim descobrindo. Tive de segui-lo a duas cidades diferentes no interior,
além de também ter me embrenhado em bairros extremamente distantes da cidade em
que moramos. Agora, observando-o com meus binóculos, discretamente de um ponto
onde ninguém suspeitaria, vejo-o de mãos dadas com uma garota de longos cabelos
pretos, provavelmente escorridos à chapinha, que sorri para ele toda encantada.
Enquanto continuo no encalço de
Ivan, sinto uma alfinetada na mente: agora que minha amizade com Milena se
acabou, o que farei com essas informações coletadas ao longo de vários meses?
Seria um desperdício imperdoável
não fazer nada com isso. Mas não quero ser baixo e escandaloso. Quero fazer
algo que me pareça justo. Porém, se Milena e eu não temos mais qualquer
relacionamento, por que insisto em estar aqui? Por que não deixo Ivan Castro
simplesmente seguir a vida enganando a Milena e todo mundo? Eu deveria
realmente me importar?
Ele acaba de se despedir da moça
com um beijo na boca, bastante caloroso pelo que dá pra notar. Não estou
surpreso. Ele fez a mesma coisa com as outras quatro e, tristemente, devo
ressaltar que Milena não está incluída neste número. Como é que esse safado
consegue dormir à noite?
Ivan vai caminhando até seu
carro, enquanto apanha o celular no bolso. Provavelmente está enviando alguma
mensagem para uma de suas garotas, talvez até mesmo para Milena, alimentando
esse mundo ilusório que construiu para ela. Contudo, aqui no mundo real, onde
posso avistá-lo, ele sorri como um vitorioso, um canalha cujo pescoço pesa de
tantas medalhas ganhas nessa modalidade de sacana enganador.
Ele parte, cruza com meu carro,
mas está tão absorto em seu papel bem desempenhado que decerto não suspeitou da
presença do meu carro estacionado a alguns metros da casa. Ligo o meu automóvel
e resolvo segui-lo mais uma vez, só para me certificar se ele já completou o
itinerário de conquistador de hoje. Espero que sim, porque esse cara tá me
dando uma canseira. Mais física do que psicológica.
“E então ele ficou de boca aberta porque, aparentemente, eu sou a única
médica que tem uma letra fácil de entender”, Anna está terminando uma de
suas histórias de consultório, rindo logo em seguida.
Eu a acompanho no riso. Ou
melhor, tô forçando uma risada. No começo, as historinhas sempre tinham um ar
cômico, mas agora soam enfadonhas. Não vou negar que algumas me fizeram quase
ter um ataque do coração de tanto rir, como o caso da mulher que estava tão
aflita porque seu filho estava com anemia, sendo que na verdade o garoto andara
apenas se masturbando “além do limite”. E como descobriram isso? Simples: Anna
achou estranha a tremedeira no braço do guri durante uma das consultas e quando
o confrontou indagando-lhe se estava depenando o sabiá, a resposta do garoto
foi um par de olhos esbugalhados e a tremedeira parando na mesma hora,
seguindo-se a isso um rosto vermelho que nem tomate maduro e a expressão de
quem fora pego no flagra do ato libidinoso. Hormônios adoram torturar garotos
de quatorze anos.
“Você tá muito distraído, Sávio”, já é a terceira vez que ela
reclama. “O que é que tá acontecendo?
Aconteceu alguma coisa bizarra na ANNA? Opa, peraí! É a primeira vez que eu
noto como é estranho eu falar o nome da empresa que tem o mesmo nome que eu”.
“Pura metalinguagem”, respondo, mas sem me esforçar em parecer o
oposto de distraído.
Anna sorri, virando-se e ficando
de perfil, abrindo uma gaveta no armário de cozinha. Está vestindo uma blusinha
branca que deixa notável a falta de sutiã, sua bermuda jeans curta não é muito justa e seu coque ruivo está quase
desmoronando, charmosamente, deixando aqueles fios de cabelo sedutores atrás do
pescoço que todo homem gosta. Estamos em seu apartamento e ela está pra lá e
pra cá preparando um lanche para nós.
“Na verdade, tudo relacionado ao meu trabalho na ANNA é bizarro, então
se tivesse acontecido algo bizarro, teria sido apenas um dia normal”.
“Ah, é? Então por que você tá assim? Sabe, eu percebi que você nem deu
muita bola pro caso que eu te contei de hoje no trabalho”.
“Vocês, mulheres, têm um faro fino, hein!”
“Ou... Alguns de vocês, homens, não estão preocupados em disfarçar
tudo”.
Acho que não preciso mais adiar.
Na verdade, eu nem sei por que levara tanto tempo para eu resolver perguntar a
ela:
“Como você conheceu o Ivan?”
Ela para o que tá fazendo,
abruptamente. Percebo que ela não esperava por isso, apesar de com certeza já
ter previsto que mais cedo ou mais tarde essa indagação viria à tona.
“Muito bem, senhor Sávio Miranda”, ela retoma a preparação do
lanche. “Tem certeza que quer falar disso
agora?”
“Você teve alguma coisa com ele?”
“Quê?! Não!!”, ela meneia a cabeça e sorri, como se afastasse uma
ideia completamente insensata. Ou, pode ser que apenas esteja querendo fazer parecer isso.
“Então por que razão eu não iria querer falar disso agora?”, falo
em tom de desafio.
Anna passa requeijão light numa fatia de pão de forma,
aguardando que eu diga mais alguma coisa.
“Tá aguardando que eu diga mais alguma coisa?”
“É, mais ou menos, eu acho. Você vai dizer mais alguma coisa?”
“Anna, por acaso a gente tá começando um problema nesse exato momento
pelo fato de você não querer me contar como conheceu o Ivan? Existe algo que
você tá escondendo de mim?”
“Um cara contratou o Ivan para ajudar a me conquistar. Foi isso. Tem
muitos anos, foi antes da minha viagem pro Canadá”, ela conta, nem um pouco
abalada.
Engulo em seco por um momento.
“Nossa! É sério? Você foi uma ‘amandizada’, digamos assim?”
“É”, é tudo o que ela consegue responder porque gostou muito do meu
comentário e está rindo. Porém, acrescenta: “O
curioso é que... pelo que me lembro, fui o primeiro caso em que ele trabalhou.
Isso não te lembra alguma coisa?”, agora ela demonstra uma fina ironia, e
essa parte da narrativa não deixa de ser de fato um detalhe bastante curioso
mesmo. Usando uma analogia matemática, Anna é a constante na equação que cruza
as empresas opostas ANNA e AMANDA. Uma estranha coincidência. Chega a ser quase
poético.
Apesar de agora isso não parecer
necessariamente um problema, eu não estou achando graça. Enquanto isso, Anna
agora tira cuidadosamente duas fatias de queijo de uma bandeja de isopor.
“E como você foi de ‘amandizada’ a amiguinha do Ivan?”, pergunto
sem me importar em parecer tendencioso.
“Credo, Sávio!”, uma nuvem de irritação se forma em seu olhar. “Por que você fala desse jeito? Parece que
Ivan e eu tínhamos uma gangue e fazíamos mil maldades por aí. Não é que eu seja
amiguinha dele, eu apenas confiei que
ele me ajudasse a... bom, você sabe. Te reconquistar. Eu já conhecia o serviço
do cara, então apostei. Quando ele me ‘amandizou’, como você diz, ele usou uma
abordagem diferente do que você faz na ANNA. Ele conhece a pessoa, conversa...
É tipo aquele esquema de ensino médio, sabe? Quando a gente tem um amigo que
ajuda a gente com aquela pessoa que a gente é a fim... Só que, no caso do Ivan,
ele fazia isso profissionalmente”.
“Eu fui um ‘amandizado’ também”, concluo e suspiro, com certo
desgosto.
“Eu, hein! Foi tão ruim assim reatar o namoro comigo?”
“Desculpa, eu... Não foi o que eu quis dizer... Desculpa, amor, por
favor”.
Não estou muito no controle dos
meus pensamentos e emoções ultimamente. Isso é um forte indicador de uma
torrente de babaquices que pode acontecer nos próximos dias e semanas. Agora
minha namorada está magoada, com certeza.
“Tá aqui o seu sanduíche”.
“Anna, por favor, me desculpa”, insisto.
“Já percebeu que nós dois temos algum tipo de envolvimento com as duas
empresas? Só que, a meu ver, o seu é muito mais especial. Você é a única
criatura nesse mundo que foi ‘amandizado’ e... sei lá, ‘annazado’. Não é legal?
Quantas pessoas poderiam se vangloriar disso?”
Ela abre a geladeira, pega uma
jarra de chá gelado e me serve num copo de vidro grande. E é assim que uma
mulher te prova o quanto ela te ama pois, se sua namorada te serve uma
quantidade generosa de comida ou bebida mesmo estando zangada, case-se com ela.
Não que eu vá me casar, é apenas modo de dizer o quanto é preciso valorizar uma
criatura assim.
“Só não fala mais sobre esse negócio de ser ‘amandizado’ ou eu te taco
esse chá na cara, tá entendendo?”, e o coque enfim se desfaz quando ela
acaba de vociferar essas palavras.
Bom, o amor tem algumas
peculiaridades... Mesmo assim, fica mantido o “case-se com ela”, ok?
Seguro-me para não comentar que
ela me lembrou muito a Milena ao me ameaçar desta forma, mas se com o clima que
ficou ela já quer me atirar o chá nas fuças, imagine só o que não faria com a
jarra se eu sequer insinuasse uma comparação com minha ex-melhor amiga.
Entretanto, o assunto Ivan está
longe de acabar. Sinto muito.
“Em todo caso”, prossigo, “meu
problema com o Ivan não é como vocês se conheceram. Quer dizer, talvez fosse,
se vocês tivessem se conhecido em determinadas circunstâncias, mas eu fiquei
sabendo de umas coisas muito feias sobre esse sujeito”.
Anna ainda está irritadiça, e
abocanha o seu sanduíche de peito de peru com o olhar semicerrado, fitando-me.
Entendo que é um sinal para eu parar de enrolar.
“Acontece que o Ivan Castro, senhor namoradinho perfeito, é um grande
safado, um baita de um pilantra. Você sabia disso?”
“Ué, sei lá”, ela dá de ombros. “Por
que é que você tá dizendo isso?”
“Investiguei o cara. Achei ele muito marrento e cheio de si, metido a
dono da situação. Quando ele veio falar comigo pra marcar um encontro entre
você e eu, me chantageou primeiro. Mas ele fez isso de forma estranha, eu diria
até que foi meio maligno. Bom, um cara desse não deve ser muito confiável. E eu
tenho certa dificuldade pra confiar nas pessoas. Portanto, ele merecia ser
investigado”.
“Você investigou o Ivan, tá, e daí?”
“E daí que eu descobri que ele tá enganando a Milena. Ele roda a cidade
de ponta a ponta, inclusive vai a cidades no interior, pra se encontrar com
outras mulheres. Cinco, pra ser mais exato. A Milena seria a número seis. Isso
não é de dar nojo?”
“E você viu ele beijando essas mulheres, alguma coisa assim?”
“Sim. E, como ele entrou na casa de algumas delas, deve ter feito mais
do que beijar”.
Ela faz uma careta, como que
rejeitando a informação extra.
“Entende agora a minha preocupação em saber como você o conheceu? Anna,
o cara tem seis namoradas. Isso se não tiver mais, porque nem sempre dava pra
ficar seguindo ele. O cara é um crápula!”
“Você pretende fazer o quê com essas descobertas? Ou só tá stalkeando pra matar o tempo?”
“Amor!”, exclamo, surpreso com a certa frieza dela.
Ela me encara. E então me dou
conta, mas é ela quem fala:
“Você vai se meter no relacionamento do Ivan com a Milena? Por qual
motivo? Você e ela já nem se falam mais há meses. Ela te tratou mal pra caramba
na última vez que se viram na sede da ANNA, não foi? Não é sua culpa se ela se
meteu com o Ivan e que ele tenha mil namoradas. Ás vezes a gente tem que deixar
as pessoas quebrarem a cara sozinhas e cumprirem seu destino, amor”.
Fico pensativo.
“Vou te dar um conselho e gostaria muito que você seguisse”,
continua Anna, em leve tom de súplica. “Não
se mete nisso. Não é porque eu tenho uma certa amizade com o Ivan, mas é pro
seu próprio bem. O resultado pode não sair como você espera e o clima entre
você e a Milena já não tá legal. Melhor não arriscar. Por favor, Sávio!”
Encaro minha namorada, emudecido,
sem resposta. Algo me cutuca na mente dizendo que ela está certa e que toda
essa investigação foi um desperdício. Só me resta dar a primeira mordida no
sanduíche e um gole no chá gelado de pêssego.
“Vamos mudar de assunto?”, sugere Anna.
De boca cheia, apenas assinto.
Mas com uma pedra gigante de frustração que me sufoca o peito. Algo está
errado. Sinto marteladas me incomodando a cabeça e ressoando por toda minha
mente que algo está errado.
“Daqui a dois dias é o seu aniversário e já acertei tudo com a sua mãe
pro jantar”.
“Hummmm...”, finjo interesse.
“Trinta anos, hein!!”, um sorriso se desenha em sua boca. “E pensar que você ainda parece aquele
adolescente tão bobo que me conquistou no ensino médio”.
“O tempo não perdoa ninguém”, comento uma besteira qualquer, só
para tentar disfarçar o desconforto.
“Eu amo você”, afirma ela, com uma seriedade que estranhamente me
inquieta, acompanhado de um olhar sincero e apaixonado.
“Eu também amo você”.
Minha frase de retribuição, no
meu coração, consegue soar mais inquietante ainda. E voltam as marteladas.
16 de Julho. Trinta anos atrás,
eu nascia numa noite quente de verão e trazia lágrimas de emoção aos olhos do
meu pai e uma dor de parto excruciante para minha mãe. Essa palavra, inclusive
(excruciante), é ela quem sempre faz questão de falar, o que me faz desconfiar
que este é o único contexto em que mamãe a utiliza. Nasci em 1986 e passei a
maior parte da infância nos anos 90. Fui fã inveterado da maioria dos desenhos
animados que bombavam naquela época, além dos seriados japoneses que mesclavam
ação, aventura e um tanto de comédia. Essa época foi tão marcante que dia
desses, no supermercado, quase não resisti à vontade de tirar uma selfie com a mulher que passou minhas
compras no caixa, só porque ela se chamava Patrine. Ora, qual a probabilidade
de você se deparar com uma pessoa com um nome tão peculiar de uma heroína de
TV? Essa foto teria gerado um falatório muito legal no Facebook. Os recém-chegados aos 30, como eu, devem se lembrar da
Patrine e seu tokusatsu na TV
Manchete.
Tive poucas festas de
aniversário, embora tenha reinado por muito tempo como filho único. A
“festinha” mais memorável foi quando, ao completar 12 anos de idade, mamãe e eu
estávamos passeando pelo centro da cidade e ela havia precisado pagar uma
fortuna numa conta e praticamente não sobrara nada para comemorar minha nova
idade. Naquela época eu dava bastante importância a esse tipo de coisa. Então,
ao passarmos em frente a um salão de festas onde coincidentemente estava
rolando um aniversário de um menino, mamãe resolveu entrar mentindo que
precisava ir ao banheiro. Ela estava grávida esperando o Dominique e ninguém
negaria uma ida ao banheiro para uma distinta dama com um barrigão tão pomposo
e uma forma tão... bem... intimidadora de pedir para entrar. No fim, acabamos
nos misturando aos convidados e, apesar de descobrirmos mais tarde que se
tratava de uma festa de quatro anos de idade com o tema dos 101 dálmatas (e eu
supostamente era o “amiguinho mais velho, muito, muito mais velho”), na hora do
“Parabéns pra você” mamãe fez questão de cantar baixinho no meu ouvido, me
fazendo entender que aquela empreitada estapafúrdia havia sido um ato de amor.
E, a bem da verdade, eu me diverti demais. No final, mamãe saiu amiga de umas três
convidadas e com dois saquinhos de lembrancinhas, abarrotados de docinhos,
salgadinhos e outros mimos temáticos. Dona Lola me tomou pela mão para irmos
embora e, no fim do dia, foi como se tudo tivesse sido a coisa mais normal do
mundo.
Entretanto, nos últimos 15 anos,
nenhuma presença fora tão marcante e garantida nos meus aniversários quanto a de
Milena. Por mais que não houvesse festas, jantares ou qualquer outro tipo de
celebração, em vários dos meus aniversários a gente fez algo juntos. E, em
outros vários, mesmo não juntos no sentido presencial, ela me telefonou ou
mandou mensagem. Enfim, ela sempre esteve aqui.
De um jeito ou de outro. E agora, que chego aos 30, uma idade tão significativa
por alguma razão, ela não está. A pessoa com quem eu sempre contei que
estivesse, aquela sem a qual eu jamais imaginei minha vida, simplesmente não está.
Eu estou morrendo de saudade da
Mile...
Olho o celular pela 50ª vez,
crente de que o sentimentalismo que permeia datas especiais tenha lhe tocado a
alma e ela resolvera abrir mão, pelo menos por hoje, da mágoa que está
sentindo. Mas não há nada. Quero dizer, não dela.
Luto mentalmente contra a possibilidade de ela ter deletado meu número de seus
contatos, mas a cada segundo que eu me forço a descartar essa ideia, mais ela
cresce.
Estou novamente de olho em Ivan,
que hoje está num encontro com Rosane. Sim, eu me fissurei tanto nessa
investigação que já descobri os nomes das garotas. Imagino se alguma deles
sequer suspeita que tá sendo feita de trouxa. Sei que não sou um grande exemplo
de integridade, mas sinto que é um dever moral desmascarar esse cretino. Eu
preciso dar um basta nessa palhaçada.
O celular descarrega. Porém, sem
problema, eu já fiz um vídeo amador com imagem nítida o suficiente para
incriminar Ivan. Só arredo o pé daqui depois que ele também for.
Mas, espere, não estou esquecendo
de algo?
CACETE!!! São nove e meia da
noite e eu estou a pelo menos quinze quilômetros de casa. Anna e minha mãe vão
me matar. Hoje é o jantar em comemoração ao meu aniversário. Droga, droga,
droga, cacete!!!
Olho para Ivan agindo todo
carinhoso com uma de suas namoradas e me bate uma raiva por ter de sair daqui
antes do previsto. Droga, esse jantar de aniversário não era necessário.
E, pra ser totalmente sincero, eu
não quero ir. Eu nunca concordei com a ideia. Preferia, inclusive, que a coisa
toda fosse uma surpresa, pois, se eu não chegasse a tempo, pelo menos teria a
desculpa de que não sabia que tinham armado uma surpresa. Merda!
Dou a partida no carro, muito
contrariado. E sigo, rumo a uma reunião familiar para a qual não estou nada
animado. Enquanto dirijo e engulo a resignação, um pensamento se desenrola,
como um emaranhado de fios que começam a se soltar, um a um. Não estou gostando
muito da conclusão que vai se formando, mas já que estou com trinta anos agora,
preciso pôr a maturidade em prática e encarar o que eu não gostaria. Passei
muitos anos amargando o relacionamento malsucedido que tive com Anna Munhoz, e
hoje nós estamos juntos de novo. No entanto, o sabor não é igual ao da época em
que meu amor por ela fervilhava dentro de mim. É a mesma Anna, mas o sentimento
é diferente, discrepante, desfigurado. É quase como se eu não gostasse dela
tanto assim a ponto de sustentar um relacionamento em longo prazo. E se, no fim
das contas, o desapaixonamento aplicado por Milena não tiver falhado?
Desligo o ar-condicionado e abro
a janela do carro, para que a brisa noturna me ajude a afastar esses
pensamentos. Mas o que a brisa faz é apenas jogar mais clareza sobre eles:
então descubro que, em todos esses anos com Milena perto de mim, era a
companhia dela que eu realmente queria ter neste 16 de julho. E vou mais longe:
mesmo acreditando que meus sentimentos por Anna não tinham morrido e voltado para
os braços dela, eu me acostumei com sua ausência, tanto que aparentemente não
me empolga saber que neste exato momento ela está esperando por mim, com todo
carinho, dedicação e afeto. É sem a Milena que eu não vou conseguir viver.
Cara, dá pra entender o quanto isso é louco? E o quão tardiamente essa
revelação veio me golpear?
Paro o carro no primeiro posto de
gasolina que encontro. Estou afoito, agitado, desço do carro e vou até a loja
de conveniências que eles têm aqui.
“Por favor, eu preciso usar o telefone. Vocês têm um telefone?”,
pergunto, quase sem ar.
Um casal detrás do balcão se
entreolha, certamente assustados. A mulher assente.
“Por favor, eu preciso usar o telefone, por favor!”, imploro.
“Sávio, o que você tá fazendo aqui?”, uma voz vem de trás de mim.
Viro-me e vejo Rita Lina, com roupa de frentista. Mas não me surpreendo.
“Rita!”, abraço-a com toda a ternura possível.
“Sávio, se você veio até o meu trabalho pra se declarar pra mim, fique
sabendo de duas coisas. Primeira: você teve seu tempo e sua oportunidade.
Segunda: eu sou fiel ao Denner, e você também tem namorada, então vai cuidando
de me soltar porque apesar de seu abraço ser muito gostoso e quentinho, isso
não tá pegando bem”.
Solto-a. Estou rindo e chorando
ao mesmo tempo.
“Caramba, você tá emocionado mesmo!”, diz ela.
“Você pode me emprestar o seu celular, Rita? Eu preciso ligar pra
Milena”.
Devem ser quase onze da noite
quando eu chego em casa. Anna, mamãe, Dominique e uma garota de cabelos pretos
encaracolados e óculos que eu suponho ser a namorada dele estão sentados na
sala. Sabe quando você aparece num lugar onde todo mundo sabe que você faz
alguma idiotice? Existe aquele silêncio perturbador que diz mais do que se o
ambiente estivesse apinhado de pessoas. É como entrar numa caverna que acumulou
os ecos daqueles que gritaram por anos do lado de fora, só que você escuta os
ecos dentro de você.
“Meu amor, o que aconteceu?”, indaga Anna, preocupada, amorosamente
me dando uma chance de me explicar (ou de inventar uma desculpa qualquer).
“Que dinheiro é esse em cima da mesa de centro?”, é a primeira
coisa que me ocorre.
“A gente tá tentando te ligar desde as oito, Sávio”, Anna vai
revelando uma tensão.
“Mamãe e eu apostamos o que teria acontecido a você”, explica
Dominique. “Por acaso você foi assaltado
e levaram seu celular e por isso ficou incomunicável?”
“Não, meu celular só descarregou”, respondo, sombrio e desinteressado,
sacando o celular do bolso e exibindo a todos.
“Perdi”, diz Dominique, entortando a boca.
“Eu também”, suspira mamãe, me olhando decepcionada.
“Eu ganhei. Sabia que ele tinha ficado sem bateria”, a garota cujo
nome não me recordo dá um pequeno gritinho de comemoração, apanhando a grana de
cima da mesa.
“Vocês apostaram sobre o que tinha acontecido comigo?!”, pergunto,
incrédulo. “E quem ganhou foi uma garota
que eu nunca vi em toda a minha vida??”
“Ah”, Dominique bate na testa, recordando-se de algo. “Essa é a Bianca, a minha namorada. Eu já te
falei dela. Eu a convidei pro seu... jantar de aniversário”.
Bianca dá um tchauzinho tímido,
apresentando-se. Eu só ergo o queixo em sua direção.
“Com licença, gente!”, Anna se dirige a eles, levantando-se do
sofá. Em seguida, vem até mim e me pega pela mão. “Vamos aqui fora um instantinho? A gente precisa conversar”.
Vou com ela para o pátio, onde só
agora eu noto a faixa contendo os dizeres “Feliz AniverSávio”. Um turbilhão de
emoções me invade por conta desse trocadilho que eu aprendi a amar. Mas tô sem
cabeça pra saborear o momento.
“Quer me contar o que aconteceu?”, inquire ela.
“Eu tô com um pouco de dor de cabeça”.
“Ok, ok. Mas antes eu acho que preciso de uma explicação, certo?”
“Eu... Eu fiquei preso num caso da empresa...”
“Um caso da empresa...”
“É sério”.
“Não consigo entender. Você é seu próprio chefe. É tão simples arranjar
tempo pra comparecer ao seu próprio jantar de aniversário!!”
“Nem sempre é tão simples, Anna”.
“Mas... mas... sua mãe e eu fizemos tudo com tanto carinho. Você sabe
que eu ainda tô começando a me dar bem com ela, né?”
Passo a mão no rosto, sentindo-o
áspero e suado. O dia foi cheio. E, psicologicamente falando, foi o dobro de
cheio.
“Anna”, eu vou ter de lhe contar a verdade. “Eu tava atrás do Ivan de novo. E me esqueci do jantar. Quando me
lembrei, já eram mais de nove horas e eu tava longe. Foi isso que aconteceu. E,
sim, eu sou um otário irresponsável. Bora, pode jogar na minha cara”.
“Sávio...”, ela está com um olhar de profunda reprovação. “Mas eu te pedi pra não fazer mais isso. E
você fez. A troco de quê, hein, Sávio?”
“E não foi só isso que eu fiz”, continuo, deliberadamente desviando
do questionamento dela. “Eu também liguei
pra Milena. Emprestei o celular de uma pessoa e liguei pra ela”.
Ela prefere ficar quieta,
analisando-me com a boca aberta e o olhar entre apreensivo e furioso.
“Foi uma atitude imbecil da minha parte”, assumo. “Ela me tratou muito mal, o tempo todo foi
super seca comigo e no final ficou parecendo que eu tinha ligado pra implorar
por um ‘feliz aniversário’ dela, o que ela acabou me dando, é verdade. Só que
ela me parabenizou como se eu fosse um estranho, um cara que nunca significou
nada pra ela”.
Estou chorando. Estou derramando
lágrimas que não dão a mínima previsão de que vão cessar.
“Foi minha mãe que fez essa faixa aí, né?”, comento, limpando o
rosto com a costa da mão esquerda. Mas Anna não confirma. “Bom, eu sei que foi a minha mãe porque... esse trocadilho foi a Milena
que inventou quando eu fiz vinte anos. E a minha mãe adorou...”
“Por quê?”
“Bom, sei lá, acho que é um trocadilho legal e...”
Anna segura as minhas mãos com
veemência e eu entendo que ela não está se referindo à história da faixa. De
cabeça baixa, ela torna a perguntar:
“Por quê?”
Com as lágrimas ainda rolando,
sinto um medo me devorar a alma. Estou diante daquela que eu sempre julguei ser
o amor da minha vida, a responsável por crises e crises existenciais, a pessoa
na qual boa parte das minhas aspirações românticas foi projetada, aquela que
teve um impacto tão violento na minha existência que gerou legados incríveis
(como a empresa da qual sou dono), a mulher que praticamente definiu minha vida
em antes dela e depois dela. A minha constante.
“Apenas me diga o porquê, Sávio”, insiste Anna.
Deixando a língua livre para pronunciar
as palavras, declaro, num tom suave e mais verdadeiro possível:
“Porque a Milena é a minha verdadeira constante”.
Não sei de onde saiu isso, mas é
uma afirmação tão cristalina e iluminada.
Anna me encara nos olhos, praticamente
sem piscar. Obviamente não está entendendo o que eu quis dizer com a minha
resposta, mas ela deve ter capacidade interpretativa suficiente para ver que
isso não lhe favorece. Eu quase consigo ouvir sua alma se partir e espatifar,
porque a dor fica perturbadoramente visível em sua face. Há um manto de
escuridão caindo sobre ela e, mesmo que eu queira, não consigo removê-lo.
“Me perdoa”, balbucio, baixando a cabeça de tanta vergonha e,
secretamente, alívio.
Dez ou vinte segundos depois, ela
se move. Deve estar arrasada. Consegui estragar o único agrado que iria ter
neste aniversário de trinta anos.
“Eu tô indo embora, tô muito cansada”, ela decide, suspirando e sem
olhar para mim. “Eu só queria que você
ficasse com uma coisa. É uma surpresa que eu tinha trazido”.
Eu concordo com a cabeça, embora
ela não esteja me vendo fazer isso. Anna tira do bolso uma caixinha bem pequena
e me entrega. Dá um sorriso sem graça e me diz:
“Tô com um pouco de vergonha de entrar, sabe. Será que você poderia
pegar minhas coisas?”
“Anna, eu não tive a intenção de...”
“Será que a gente pode continuar essa conversa outro dia?”, ela
desvia novamente o olhar, provavelmente segurando o choro.
“Tá”, respondo.
Mas antes, abro a caixinha de
presente, que na verdade é uma dessas caixinhas de joias, aveludada. Dentro, um
anel.
“Meu Deus!”, exclamo, assustado e constrangido. “Anna, você ia...”
“Por favor, pegue as minhas coisas. Agora, tá?”, ela me interrompe.
Examino a joia por um longo
tempo, caindo na real de que o que eu acabei de causar à minha namorada foi
maior e mais doloroso do que eu poderia supor. Anna ia me pedir em casamento
esta noite.
Para não piorar ainda mais a
situação, vou lá dentro pego as suas coisas, entrego-lhe e, antes de partir,
tomo suas mãos e, outra vez, peço:
“Eu preciso que você me perdoe”.
“Outro dia a gente termina essa conversa”, ela resolve se libertar
e deixar o choro aparecer. Talvez esteja se permitindo deixar a emoção fluir
porque está de saída.
Eu a puxo para mais perto. Nós
nos abraçamos, mas não nos beijamos. É como um acordo silencioso de que um
beijo não caberia aqui, neste instante tão delicado. E isso é tudo para que não
restem dúvidas de que Anna Munhoz realmente me ama.
Observo-a partir. Meu coração não
parece o de um homem de trinta anos. Ele parece mais velho e cansado,
arrebentado e perdido, sem saber como se preparar para as durezas que estão por
vir. O que será que vai acontecer?
O trocadilho é excelente, mas hoje
não foi um Feliz AniverSávio.
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