(Milena)
Sempre fui muito adepta de
expressar minhas metamorfoses alterando a cor do meu cabelo. E agora, diante do
espelho, encaro com bastante satisfação a decisão que tomei de não mais ficar
fazendo apenas mechas. Taquei um preto no cabelo, tão preto que faria Iracema
vir a mim e perguntar de qual graúna eu arranquei a coloração. Aproveitei para
cortá-lo em estilo channel, mas não
tão curto.
Na verdade, hoje estou
dispensando uma simpatia especial às cores escuras. O vestido também é preto, o
batom é um violeta de dar inveja às gotiquinhas que se emperiquitam tanto e
obtém resultados risíveis, e ganhei uma clutch
bag cinza-escuro lindíssima do Ivan. Além da meia-calça preta que, modéstia
à parte, está um arraso. Olha, faz um tempo que não me arrumo tanto e, verdade
seja dita, não me via nesse nível de “gatitude” há tempos.
Por insistência de Ivan, ele
aparece para me buscar. Eu já impliquei muito com isso, mas aos poucos estou
aprendendo a aceitar.
“Uau!”, ele se confunde e, em vez de “oi”, solta uma interjeição de
admiração. Mentira, ninguém se confundiria, hoje eu tô matadora mesmo. “Ora, se não é a Dark Milena vindo aí!”
“Você não sabe ser discreto?”, brinco.
“Discreto?! Ah, tá bom. Até parece que uma mulher se arruma tanto assim
pra esperar que os outros sejam discretos”.
“Obrigada, meu amor”, entro no carro, dou-lhe um beijo sem medo de
borrar o batom, porque esse é de ótima qualidade e não larga fácil. “A ocasião merece”, completo.
Ivan e eu estamos chegando a uma
festa muito chique, dessas que se vê em filmes. Apesar de eu estar muito
nervosa, tento segurar a onda. Até que não é tão difícil fazer uma social em
festa de bacanas. Você só tem de distribuir uns sorrisos e dizer “boa-noite”
para toda criatura que cruza seu caminho, como se você se importasse.
O lugar é um salão de festas que só aluga para
eventos desse porte e o máximo de informações que eu tenho é que é um
aniversário do filho de um magnata. Eu sei que eu devia ter guardado mais
informações, mas esse universo todo é novo demais para mim.
Já dentro do salão, Ivan vai
dando seus primeiros acenos e lança sorrisos para alguns conhecidos. Um homem
bem relacionado como meu namorado me faz imaginar se ele conhece essas pessoas
porque são clientes do Deleite ou por outras razões. O ar de luxo é quase
palpável por aqui. Até indivíduos leigos em matéria de glamour, como eu, são capazes de sacar a finesse que borbulha ao
redor, provada pela presença de quadros caros ornamentando as paredes e a
elegância com que as pessoas se portam ao dialogar. É o tipo de festa em que as
pessoas é que atrapalham o som da música, e precisam falar mais baixo se
quiserem apreciar a melodia que acompanha suas conversas. As mulheres não parecem esnobes à força, como
muitas metidas a ricas fazem por aí. Elas são naturalmente esnobes e, muito provavelmente, conseguem farejar
gente comum como eu, que não nasceu em berço de ouro. Meus trajes e acessórios,
embora bonitos e de bom gosto, não custaram nem metade do que essas grã-finas
devem estar acostumadas a gastar na balada. A
alta sociedade é um planetinha peculiar.
Os homens endinheirados são
diferentes das mulheres no quesito de que, se você é uma mulher, não importa
sua origem social, esses sujeitos sempre lhe serão simpáticos, pois acreditam
que seu poder de sedução está naquele olhar que diz “oi, linda, eu tô montado
na grana e posso te dar muitas coisas, portanto nem se atreva em me dar um
fora”.
“Ali está o Doutor Canolli”, aponta Ivan, apossando-se de duas
taças de champanhe servida por um dos milhares de garçons que perambulam pelo
ambiente. Ele me passa uma das taças.
Eu dirijo meu olhar ao tal doutor
Ivo Canolli. Esse nome curioso me lembra de um episódio da infância. Minha avó
paterna tinha ascendência italiana e, certa vez, ela tentou fazer uma sobremesa
que tem o mesmo nome do neurocirurgião com quem viemos conversar. Beberiquei a
champanhe e, ao me lembrar do desastre que foi o canolli de vovó, quase me engasgo. Na ocasião, ela havia convocado
boa parte da família para saborear a iguaria, e ninguém conseguiu disfarçar a
reprovação. Acabou que todo mundo atacou um pote de cocadas que meu avô havia
trazido de algum mercadinho mais cedo. E, se bem me recordo, ela mesma devorou
umas três cocadas do pote. Minha avó nunca foi a mulher mais prendada na
cozinha. Talvez isso tenha sido determinante na escolha de papai por Dana, anos
mais tarde (pois minha mãe também não era o que se podia chamar de prodígio).
“Preparada?”, Ivan me desliga do devaneio.
“É sério que você vai me fazer ir lá sozinha?”
“Amor”, Ivan segura meu braço suavemente. “Você foi devidamente orientada. Apenas vá lá e faça o que combinamos,
conforme eu te ensinei. É a sua primeira vez, então fica tranquila. Não é como
uma prova prática de carro. Se você errar algumas coisas, isso pode ser
consertado. Vai lá, eu confio em você”.
Encaro-o por mais alguns
segundos, meio que buscando uma última ancoragem antes de abordar o cliente.
Então, viro-me para o doutor Canolli, um homem aparentemente simpático e aberto
a aproximações de estranhos, e me dou por vencida. Bem-vinda ao seu primeiro
desafio como uma agente da AMANDA, Milena!!
“Não há de ser tão assustador assim, né?”, arremato, finalizando a
champanhe da minha taça.
Quando eu vi, já tinha topado.
Como fui de agente do desapaixonamento, convicta dos meus talentos e aptidões,
a jogadora do time exatamente oposto? A verdade é que a única opção que eu
tinha era me enfurnar num consultório e sair atendendo pessoas sem estar
empolgada por isso. Nunca fui muito fã do comum, do repetitivo. Até aluguei um
lugarzinho perto de casa, mas fiquei fatigada nas duas primeiras semanas.
Atendi uma mãe que tinha problemas em educar seu filho mimado de sete anos e
que, segundo ela, provavelmente o guri tinha TDAH. Eu avaliei o menino e aquilo
só me pareceu fogo no rabo mesmo, birra de moleque acostumado a dominar os pais
com choradeiras insistentes e malcriação. Recomendei a ela que proibisse o vídeo game por uma semana e experimentasse
ser mais incisiva ao lhe dar ordens, aí ele se tornaria um anjinho de
obediência e ela notaria a melhora. Acho que deu certo, já que ela não entrou
mais em contato. Ou, no afã de querer ter um filho com um transtorno
psiquiátrico pra soar descolada para as amigas (acredite, há esse tipo de gente
perturbada), preferiu visitar algum outro psicólogo que lhe dissesse o que
gostaria de ouvir.
A dura verdade que eu não tava
querendo admitir é que a adrenalina da ANNA fazia falta. Sair em busca de dados
sobre uma pessoa que você invariavelmente não tinha contato direto, para depois
fazer um levantamento e chegar a uma conclusão de como essa mesma pessoa tinha
pontos negativos a serem levados em grande consideração, ah... Isso me moveu
durante quase três anos maravilhosos e singulares na minha vida. E eu andava
sentindo falta dessa excitação. Dos e-mails de clientes dos mais diversos tipos
e situações. Do café de Madonna. Nossa, e pensar que eu me referia a ele como
“chafé”, de tão fraquinho que costumava ser. Aquele clichê de dar valor só
quando perde vale até para café, quem diria. E... Bem, a mágoa que eu fiquei do
Sávio bloqueava qualquer sentimento próximo de saudade que eu pudesse ter dele.
Claro que eu jamais poderia ignorar o que vivemos ao longo de tantos anos de
amizade, mas acho que muita gente passa por isso. Nem todas as amizades duram
para sempre. E eu já sou bem adulta para estranhar que alguns relacionamentos
vão se desgastando até chegar a um ponto crucial, mesmo entre amigos de longa
data. A vida é estranha assim. Num dia você jura amor e lealdade eterna. Num
outro, até mesmo o motivo mais banal pode romper com tudo. E, se rompeu, é
porque já estava por um fio. Ou não? O fato é que, pelo visto, até das amizades
você pode se desapaixonar.
E foi aí que Ivan entrou em ação.
Interessado em me ajudar a dar
uma “guinada” (palavras do próprio Ivan), ele me contou que podíamos tentar
algo novo, e que ele me daria todo o apoio necessário para me habituar à ideia,
que seria exatamente o contrário do meu antigo negócio. Após ele me explicar do
que se tratava, obviamente exclamei que parecia ideia tirada do filme Hitch, aquele com Will Smith. Ivan me
disse que é até parecido, no entanto com uma abordagem mais vigorosa e realista,
trabalhando dos dois lados da história: do cliente e de seu objeto de paixão. Isso
soou novo. Contudo, meu coração não recebeu muito bem a proposta, ainda mais
quando me veio à mente a lembrança do último caso em que estive envolvida na
ANNA, que acabou resultando num suicídio e num golpe brutal à minha vida
profissional e, por conseguinte, à pessoal também.
Minha segunda reação foi hesitar
e considerar impossível me ver ajudando
pessoas a conquistarem outras, após dois anos atuando na contramão. Ivan
insistiu que poderia me orientar, me treinar e, confiante na minha (improvável)
habilidade, me tornar uma genuína “agente da paixão”. Ele até brincou criando
um nome na hora: AMANDA, que virou a sigla para “Agência Mais Adequada para os
Negócios Do Amor”.
Em algum momento da conversa eu
devo ter sido hipnotizada ou coisa similar, pois é só o que explicaria eu não
ter achado tão absurdo o fato de considerar ingressar no que parecia uma
paródia do meu ofício anterior. Com direito a nomezinho de mulher e tudo!! E,
três dias depois, lá fui eu topar a nova empreitada. O que eu tinha a perder?
Nessa nova fase da vida, um desafio cairia bem. E não consigo resistir à
sensação que tenho ao notar que Sávio e eu agora meio que somos concorrentes
num mercado tão rentável envolvendo emoções humanas. Agora, diante do meu
desafio personificado no Dr. Canolli, sinto as pernas tremerem ligeiramente.
“Dr. Canolli, boa noite!”, eu me aproximo dando o sorriso mais
cortês encontrado no estoque.
Ele me avalia por alguns segundos
e não consegue sequer ser educado para retribuir o boa-noite. Eu me enganara a
respeito dele ser simpático e aberto. Comecei malzão.
“Milena”, aponto para mim mesma, como um cara-pálida tentando
comunicação. “Da AMANDA, a agência...”,
essa parte sai mais como um sussurro, já que as circunstâncias me tornam quase
uma espiã.
“Ah, sim, claro!! Como tem passado?”
“Estou bem. Essa festa tá...”, não termino a frase porque só agora
paro pra pensar no que estou achando da festa. E como não estou dando muita
importância, fico reticente e me salvo com um gesto idiota de “ok” formado com
os dedos.
O doutor Canolli apenas assente,
provavelmente com medo da minha falta de classe ser contagiosa. Entretanto, ele
sabe que precisa interagir comigo:
“E então, conseguiu algo?”, pergunta ele.
“Vamos descobrir hoje à noite”, respondo, arrancando do fundo da
alma o ar mais confiante que eu posso transmitir. É isso aí, garota!
“Hum”, ele resmunga. “Você
não parece muito confiante”.
Tenho vontade de dizer que é a
minha primeira vez atuando para fazer uma paixão dar certo, mas esse homem
investiu uma grana considerável para ter de volta o amor de sua ex-namorada.
“Fiz tudo ao meu alcance pra conseguir que a moça pelo menos viesse à
festa do seu filho”.
“Você falou do vinho francês?”
“Como é que é?”
“O vinho francês”, insiste ele. “Eu
especifiquei o quanto ela adora vinhos franceses, tanto que reservei algumas
garrafas exclusivamente para servi-la na festa. Você mencionou isso a ela?”
Droga! Eu não tinha me lembrado
dessa parte.
“Como ela sabe diferenciar a nacionalidade do vinho?”, questiono,
considerando este um excelente argumento para justificar minha falha.
“Bom, pra ser sincero, eu não sei. Nunca tinha parado pra pensar
nisso”.
Canolli andou gastando dinheiro
com vinhos franceses sem nem saber se o paladar da moça era realmente hábil
para distinguir origens. Apesar disso, ele não parece nem um pingo abalado.
“Atenção, senhoras e senhores!!”, uma vez ecoa de cima de um
pequeno palco, onde há alguns músicos que acabaram de se apresentar.
Dr. Canolli sorri muito empolgado
e faz sinal para um jovem rapaz a alguns metros de nós. Deve ser seu filho, o
aniversariante. O cara com o microfone no palco anuncia:
“O doutor Ivo Canolli tem o orgulho de apresentar uma grande surpresa
para o seu filho, neste seu aniversário de 21 anos”.
Canolli e o filho se entreolham.
O rosto do rapaz está muito iluminado.
“Feliz aniversário, Junior!!”, parabeniza o mestre de cerimônias. “Com vocês, senhoras e senhores, a incrível
espetacular ilusionista, Angelique La Fantastique!”
“Eita, até a atração da festa é francesa?”, comento, ao que o
doutor Ivo parece não escutar.
“Paaaapiiii!!! Arrasou, amei, amei!!”, comemora Canolli Junior, com
gritinhos e palminhas. Nunca vi alguém tão entusiasmado com a iminente
apresentação de um mágico. A tal da Angelique deve ser boa.
A estranha mulher entra, com o
cabelo preso num coque, usando um vestido longo de festa e sapatos de saltos
altos, que é justamente o que lhe confere alguma altura, já que dá pra notar
que sem isso ela se perderia na multidão. Eu aplaudiria agora mesmo, só pela
habilidade de andar com esses saltos e parecer tão cheia de si. Mas... Espere!
“Caramba, mas é a Rita Lina!”, concluo, olhando com mais atenção.
Rita é a pessoa mais polivalente
que eu conheço. Esse negócio de colecionar empregos é a coisa mais maluca que
eu já vi, mas em se tratando dela, tento não me surpreender com mais nada.
Sorrio enquanto ela se apresenta pois, dos últimos tempos, ela é uma lembrança
boa. Apesar de Ivan estar por perto, a presença inesperada de Rita acaba me
dando mais confiança para realizar o que vim fazer. Se ela pode atacar de
ilusionista, que sabe lá Deus de onde ela tirou esse talento, por que eu não
posso me sair bem como agente da AMANDA?
“Preciso de um voluntário para o meu próximo número”, ela diz sem
microfone, após encerrar um número que envolvia tirar duas pombinhas de dentro
de um abacaxi.
“Eu!! Eu!! Eu!! EEEEUUU!!!!”, berra escandalosamente o Canolli
Junior, atravessando com fúria pela pequena multidão à sua frente e rapidamente
chegando ao palco.
Ele ajeita a gravata borboleta e passa
a sacudir as mãos, denotando nervosismo.
“Você gosta de viver grandes emoções, garoto?”, indaga Rita Lina,
cravando nele um olhar um tanto intimidador.
Canolli Junior troca um olhar
travesso com alguns amigos na plateia, então responde:
“Adoooorooo!!!”
E todo mundo cai na risada.
“Tá se divertindo?”, Ivan finalmente aparece.
“Até que enfim, hein! Por que você demorou?”
“Você tem que agir sozinha por um tempo. Mas como eu vi que a
apresentação interrompeu sua conversa com o Canolli, vim ficar com você”.
“Você sabia que a tal da... Meu Deus, como é mesmo o nome dela?”
“Quem, a Lara?”
“Isso. A Lara. Você sabia que a Lara gosta de vinhos franceses?”
Um barulho ensurdecedor ecoa no
salão. Um tiro. Minha reação imediata é puxar Ivan para se abaixar comigo. Até
que percebo que pareço uma imbecil me abaixando com ele, pois somos os únicos
assim. As pessoas em torno de nós estão em burburinho e fascinadas fitando o
palco. E estão lindamente de pé.
“Parece que Angelique La Fantastique segurou uma bala com os dentes”,
observa Ivan, com o cenho franzido.
“Caramba, que susto!”, respondo, tentando me recompor.
Volto a atenção para o palco e lá
está Rita com algo que parece mesmo uma bala entre os dentes, enquanto segura a
mão de Canolli Junior que, por sua vez, segura um revólver de uma maneira um
tanto desengonçada.
“Ai, gente, adorei!”, ele diz. “Foi
a primeira vez na vida que eu atirei. Papiii!!! Eu quero atirar de novo, tá?
Arranja uma arma pra mim!! Vocês viram esse lacre, não viram?”, ele
novamente interage com seus amigos da plateia, de quem recebe aprovação total.
“É muita excentricidade pra mim”, sussurro para Ivan.
“É só manter o profissionalismo”, ele devolve.
O problema de esta ser a minha
primeira vez no campo das “paixões que devem dar certo” é não saber exatamente
como ser profissional. Parece que eu estou reaprendendo a andar, embora eu
tenha uma noção da direção que eu precise seguir a partir de agora.
“Você já viu se a Lara chegou?”, pergunto.
“Ainda não vi. E confesso que tô ficando preocupado”.
“Minha primeira vez como agente da AMANDA e já vou ferrar com tudo”,
desabafo.
“Fica tranquila. Qualquer coisa eu te salvo”.
Trocamos um olhar e um sorriso. E
um beijo.
“Agora, o meu truque mais ambicioso. Foram anos de aperfeiçoamento nas
mais diversas casas de espetáculos de Paris”, avisa Rita, cênica e
dramática, e só agora percebo que ela emprega um sotaque francês à sua
performance. “Estão preparados para O
Grande Sumiço?”
Quase levanto a mão para me
voluntariar. Ninguém imagina o quanto eu tô a fim de sumir. O medo da falha é
um monstro faminto batendo na mesa do seu coração bradando por comida.
“Levante a mão quem tem o cartão verde”, Rita solicita.
Nas minhas contas rápidas, umas
cem pessoas levantam seus cartões verdes.
“Eu vou contar até três”, continua ela, “e quando eu terminar, as luzes do salão serão apagadas por dez
segundos e quando voltarem... Só quero saber se vocês, com o cartão verde,
estão prontos para O Grande Sumiço”, ela instiga, arrancando alguns olhares
de preocupação.
Rita Lina, o que é que você tá
inventando? Para onde vai mandar esse pessoal? Tô custando a acreditar que ela
está sendo paga para apresentar algo que não parece ter a mínima chance de dar
certo. Se bem que teve o lance das pombinhas e o risco que ela levou de
realmente tomar um balaço das mãos do Canolli Jr...
“Um... Dois... TRÊS!”
As luzes se apagam. Dez segundos
depois, quando tudo volta ao normal, todos continuam em seus lugares. Não
sonhava que iria testemunhar um fracasso titânico de Rita Lina esta noite. Há
alguns minutos eu havia me espelhado nela. Fica a pergunta: será que o meu fracasso
vai ser igualmente gigante?
“Cadê Angelique?”, alguém grita, apontando para o palco.
Por um momento, ficam todos com
cara de tacho tentando entender o que aconteceu. Silenciosamente, alguém surge
do meu lado e me cutuca de leve. É a danadinha da “Angelique”, só que sem o
figurino e voltando a parecer a Rita Lina com quem estou acostumada.
“O que você tá fazendo aqui?”, pergunto a ela muito baixinho, para
não entregá-la.
“Oi, Milena”, ela me saúda, dando uma piscadela. “Eu falei que era um grande sumiço. Ninguém
sabe que eu sou a Angelique”, finaliza a frase com o indicador na boca,
pedindo silêncio. Tá, “ninguém” sabe, mas o disfarce não é tão fantastique assim.
“Genial!”, ovaciona Canolli Junior, com os olhos ainda exasperados
e inquietos à procura do paradeiro da ilusionista, virando a cabeça freneticamente para todos os lados. “Geniaaaal!!! Diva!! Poderosa!! Melhor
ilusionista do planeta, do universo, das galáxias, das... das... Aaaaaahhhh!!
Divaaaa!!! Close certíssimooooo!!”
Ele contagia a todos com suas
palavras inspiradíssimas e logo suas palmas se multiplicam, fazendo com que
todos também aplaudam e assoviem.
“A parte ruim é não estar lá para receber os aplausos”, diz ela. “Mas é assim mesmo. O Grande Sumiço é um
truque que exige esse enorme sacrifício do ego”.
“Parabéns!”, digo, meio a contragosto com o que estou
testemunhando. Diante disso, sei lá... Devo voltar a ter esperanças em não
fracassar? “Mas e a história do cartão
verde?”
“Todo bom mágico precisa de uma distração, minha querida”.
“Rita Lina?! O que é que você tá fazendo aqui?”, só agora Ivan a
nota.
“Olá, senhor cérebro bonito!”, ela responde. “Agora tô com pressa, então a Milena te explica. Tenho umas dez festas
pra me apresentar ainda hoje. Se bem que uma delas é um velório. Bom, enfim,
tchauzinho!”
Torno-me para Ivan e, quando vou
explicar, ele faz sinal de que não precisa. Então aponta para trás de mim.
Quando me viro e olho em direção à entrada do salão, lá está ela.
Recém-chegada, aparentemente. E sinto se esvair o sentimento de falha que
estava me cobrindo ao longo da noite. Lara está aqui.
Pausa para o flashback: Quando me encontrei com Lara para tratar do assunto “Ivo
Canolli”, dias antes da festa, tudo que
eu sabia sobre os dois é que haviam tido um relacionamento de oito meses e que
fora suficiente para deixar o velho de quatro. Ela é uma jovem de 24 anos e
estudante universitária. Pelo pouco que conversei com ela, não parece estar
inclusa naqueles clichês da novinha que caiu na rede do coroa mas que na
verdade ela é que tinha apanhado um peixão. Não sei se Lara me enganou, mas a
relação que tivera com Canolli não tinha interesses econômicos. Deus me perdoe
pelo meu preconceito, mas eu tava apostando algo que tinha a ver sim.
“E por que vocês terminaram?”, eu lhe perguntei na ocasião da nossa
conversa.
“Porque ele me tratava como filha, várias e várias vezes. Eu vivia
tentando provar pra ele o quanto já sou mulher e ele falava comigo como se eu
fosse só uma criança em quem ele podia mandar e recompensar comprando
brinquedos”.
“Esse anel aí, por exemplo, é um dos ‘brinquedos’ que você ganhou dele?”,
apontei para a joia contendo o que parecia uma pedrinha de rubi minúscula.
“Sim, mas... Ah, é que uma vez eu fiquei com raiva dele e resolvi
aceitar o anel, só pra doer no bolso dele”.
“Claro, claro...”
“Olha, eu respeito que ele tenha chamado você pra vir aqui, mas...
Infelizmente não vai ter volta. Ele pode ter todo o dinheiro do mundo, mas eu
quero um homem que me valorize”.
“Você está certíssima, Lara. E tem mais: homens com a idade dele não
aprendem a lição tão facilmente. Porque já estão acostumados e esse tipo de
hábito é difícil de largar. Se vocês voltarem, mais cedo ou mais tarde ele vai
cometer os mesmos erros de novo.”
“Hã?”, ela me encarou com expressão de confusa. “É assim que você quer me convencer a voltar
pra ele?”
Droga!! O meu velho hábito de
agente do desapaixonamento vindo à tona no momento mais inoportuno. Como alguém
que escorrega mas escapa de uma queda feia, me saí com isso:
“Eu só fui realista. O que é o amor, senão a fusão das realidades de
duas pessoas que se amam mas que precisam se suportar porque querem ficar
juntas? Amor é isso, não é? E o Doutor Canolli também deve ter alguma queixa a
seu respeito, mas quantas vezes ele já pediu pra terminar?”
O velho não tinha queixa nenhuma
contra ela, conforme nos explicou quando procurou nossos serviços. Porém, eu é
que não ia perder a minha chance ali. Tava até falando bonito.
“Não sei...”
O Ivan me ensinou que, uma tática
a ser usada neste tipo de abordagem é você resgatar algum momento especialmente
marcante na vida do casal. Assim, o objeto de paixão fica com a impressão de
que, visto por alguém de fora, o relacionamento que ele tinha com o cliente
poderia servir de exemplo para outras pessoas e que, por conta disso, uma
reconciliação deveria ser levada em consideração.
A AMANDA nasceu para promover o
amor. Seja entre pessoas que já se relacionaram, como é o caso de Lara e
Canolli, seja para ajudar alguém a conquistar outro. Cada caso exige tarefas e
técnicas com as quais eu nunca imaginei que fosse lidar, e eu realmente queria
aprender. Eu realmente comprei a ideia de que era capaz de me transformar nessa
nova Milena.
“O que você pode me dizer sobre Maragogi?”
Os olhos dela se abriram com mais
intensidade e um brilho começou a se desenhar. A tática parecia que ia
funcionar.
“Ah, foi... Lindo! A gente ficou num resort maravilhoso”, ela respondeu, com uma lagrimazinha nascendo.
“Ele me disse que essa viagem foi especial”.
“Sim. Foi lá que tivemos a nossa primeira vez. E foi numa praia
incrível”.
“Não precisa me dar tantos detalhes”, meu saco para esse tipo de
historinha estava furado. “Sabe, acho que
o doutor Canolli merece uma outra chance. E vocês podem fazer um acordo, deixar
tudo bem claro. Diz pra ele exatamente como você quer que as coisas sejam. E
tenta de novo! Se em oito meses vocês construíram algo tão lindo como essa
lembrança de Maragogi, imagina o que mais pode estar esperando por vocês nessa
jornada, menina!”
Me empolguei na breguice. Eu
estava enganada. Eu sabia ser profissional.
“Não sei. Não sei mesmo”.
“Olha, é o seguinte. Vai ter uma festa...”
O resto você já sabe.
Olhando para o casal agora,
conversando tranquilamente e até rindo juntos, estou ruminando a ideia de ter
sido a responsável pela união de um casal. É como não reconhecer a mim mesma
num espelho.
“Você acha que eles vão voltar?”, pergunto a Ivan, parado atrás de
mim.
“Não acho. Eu sei que vão
voltar”.
“Por que tanta certeza?”
Nesse exato momento, Canolli fez
sinal para mim, para que eu fosse até lá.
“Ai, Ivan, ele tá me chamando”.
“Então vai lá”.
Olho para ele, buscando coragem.
Com aquele olhar sedutor que me ganha ainda mais a cada dia, sei que não há de
ser nada demais. Então vou.
“Doutor Canolli”, digo, ao me aproximar dele e de Lara.
“Lara e eu queremos te dizer uma coisa, Milena”.
“Gente, me desculpa. Eu não devia ter me metido na vida de vocês. Me
desculpa, eu realmente não sou boa em juntar pessoas. Qualquer um nesse salão
pode ver que vocês não tem nada a ver. Perdão, perdão. Eu não devia ter pensado
que isso ia dar certo.”
E eles ficam rindo da minha cara,
de mãos dadas como um casal adolescente. E me dou conta que perdi o controle
falando demais.
“O que a gente quer dizer é ‘muito obrigado’”, explica Lara.
“Mas... Sério?”, eu não disfarço a surpresa. E a satisfação. “Pôxa, isso é... Isso é ótimo!! Desculpa
pelo que acabei de dizer, eu... Desculpa”.
“Hoje, com certeza, é uma das grandes lembranças que vamos construir
juntos”, prossegue Lara, alisando o braço do namorado, ostentando orgulho.
“Laaaraaa!!! Sua vaca!!!”, grita Canolli Junior, praticamente do
outro lado do salão, com uma mão na boca e outra no peito, extremamente alegre
por rever a moça. “Miga, sua louca, vem
aqui! Bora fazer uns snaps”.
Com um olhar, Lara pede licença
ao namorado e vai ao encontro do pretendente a enteado.
“Já falei com o Ivan”, conta o Canolli Pai. “Já fiz o pagamento também”.
“O quê? Já?”
Outra surpresa.
“Mas como assim o senhor já fez o pagamento?”
“Ainda há pouco, quando Lara foi se servir de vinho. Eu tinha percebido
que íamos voltar, então não quis perder tempo e já entreguei o cheque a ele”.
“Legal”, comento, rindo.
“E cá entre nós”, ele se aproxima para me contar uma espécie de
segredo. “Ela tá bebendo vinho argentino.
E tá jurando que é francês. É, você tinha razão”.
O doutor Canolli se afasta,
sorridente. E eu permaneço parada, rindo. Ivan vem até mim e eu lhe inquiro:
“Por que você não me disse que já tinha sido pago?”
“Simples. Porque você tinha que sentir o gosto do sucesso por si
mesma”.
“Você é cheio das surpresas, né? O que mais você tem reservado?”
“Confessa, meu amor. Você gostou, não foi? A sensação de juntar as
pessoas, isso não te faz se sentir mais viva?”
“Não vou mentir. Eu gostei, sim. Eu não sabia que podia fazer isso”.
“Só um aviso: ajudar o amor a vencer pode viciar”.
Ainda incerta se quero ficar viciada, prefiro mudar de assunto:
“Moço, me beija!”
Ivan está certo. Ainda não sei
como descrever a sensação que estou tendo, mas de alguma forma eu estou me
sentindo com algum tipo de poder. E todo mundo sabe que o poder vicia, te deixa
propenso a querer usá-lo cada vez mais. Agora que estou do outro lado do que
sempre fiz profissionalmente, parece que a vida faz mais sentido quando você
possui a oportunidade de enxergar a coisa toda no geral, de forma mais ampla.
No entanto, ainda é cedo para definir o que vale mais: trabalhar em prol das
paixões, “ajudar o amor a vencer”, ou pelo fim delas, salvando os corações de
decepções.
Bom, independentemente disso, só
sei de uma coisa: quando eu disse que tava matadora esta noite, não sabia que o
tiro sairia tão certeiro. E ouso dizer que eu sou a mulher mais confiante desse
salão. Sou uma agente da AMANDA agora, e acho que nada pode me deter.
Passo o resto da noite
sorridente, encantadora. Entretanto, é duro ter de segurar a vontade que eu
sinto de derramar toda essa história sobre as páginas da Fabi. Só preciso
esperar um pouquinho mais, só um pouquinho. Quer saber? Vou é me apossar de
mais uma taça de champanhe.
Nenhum comentário:
Postar um comentário