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21 de março de 2016

CONTO: O VELHO SÁBIO (conto vencedor do II Concurso Literário Pena e Pergaminho)



Há um velho que vive no topo de uma colina muito, muito alta. Seu lar é uma caverna fétida que, volta e meia, está empesteada de abutres que pairam por ali.
No entanto, o povo da tribo Ashkar busca os conselhos do velho há quase um século. É uma tradição e uma honra. Há cerca de três anos, os Ashkar venceram a guerra dos setenta e nove dias contra a tribo rival, os Nazraul, que costumavam viver do outro lado do rio, e que agora estão extintos. Tudo isso graças às orientações do velho sábio, que dera as devidas coordenadas estratégicas para todos os momentos e batalhas na peleja contra os Nazraul.
Em outra ocasião, durante o último verão, quando uma grave seca parecia se alastrar pela terra sagrada dos Ashkar, o velho sábio lhes orientou que acendessem uma fogueira bem alta, desenhassem um círculo com sangue de animais em volta dela, e dançassem para a deusa Rhayan durante oito dias e oito noites, alternando-se em grupos, para que os ritos não se tornassem cansativos para uma pequena porção de pessoas. Ao fim do ritual, houve um período chuvoso como jamais existira na história daquela civilização, e a colheita fora farta e por um ano os Ashkar não precisaram plantar coisa alguma.
O velho sábio, cuja identidade e história ninguém sabia, nem mesmo os membros mais antigos da tribo, passou a ser tomado então como sacerdote, estrategista militar, conselheiro amoroso, conciliador para conflitos, curandeiro e qualquer outro título que pudesse remeter a algum serviço essencial para a vida humana. E assim a prosperidade dos Ashkar ia se perpetuando.
E o mais extraordinário de tudo: o velho ajudara a todos sem jamais abrir a boca para pronunciar uma palavra sequer. Relatos de quem já escalou a colina revelaram que, sempre que consultado para algum fim, o velho sábio sempre se mostrara impassível, plácido como uma aranha que tece pacientemente sua enorme teia, silenciosa e sagaz. Esses mesmos relatos informaram que as respostas do velho sábio vinham horas mais tarde, em forma de sonhos ou mensagens que surgiam como claros sinais na natureza ou até mesmo no comportamento dos animais. Ou, de forma ainda mais óbvia, através de inscrições nas paredes das casas ou na areia da praia. Havia uma versatilidade admirável nas ações do velho sábio até nisso.
O único relato que deverá permanecer em silêncio, provavelmente, é o do pequeno Yamit. Filho do capitão do exército que liquidou com os Nazraul, o pequeno valente mal devia ter dez anos quando escalou sozinho a colina. Ávido por uma resposta sobre seu amor impossível por uma garota que só encontrava em seus sonhos, Yamit estava disposto a encarar a orientação certeira do velho sábio, mesmo que tudo que ele tivesse fosse uma bronca por sua audácia em fazer a perigosa escalada por conta própria. Entretanto, Yamit era otimista e contava com a hipótese de que o velho lhe desse os parabéns por tão arriscada empreitada e, quem sabe, até lhe fornecesse as pistas necessárias para encontrar a doce menina.
Mas a frustração de Yamit, a qual ele levará para sempre consigo e da qual jamais se esquecerá, por mais que tente, foi quando, depois de reverências e apresentações, apercebera-se de algo muito perturbador. A ponto de desmaiar com tanto fedor que permeava a caverna, o menino culpou-se gravemente por ter se esquecido de levar algo para proteger as narinas, contrariando um dos detalhes cruciais das narrativas que ouvira sobre as visitas ao velho. No entanto, num ato de extrema ousadia e jamais recomendado por ninguém, o garoto aproximou-se do velho, sentado como uma estátua sobre uma grande pedra, os olhos serenos fitando uma parede à sua frente. O mau cheiro ficou ainda pior.
E foi então que Yamit descobriu que sua petição jamais seria atendida, pois, a julgar pela falta de respiração do velho sábio, além de sua face quase inteiramente carcomida, aquele corpo imóvel devia estar jazendo sem vida há várias décadas.
Yamit não teve coragem de puxar o pano que cobria o corpo do velho. Havia alguns buracos no lençol e, certamente, seriam das bicadas dos abutres tentando arrancar a carne morta ao longo dos tempos.
Num só ímpeto, o garoto correu para fora da caverna, horrorizado, procurando fazer a descida da forma mais veloz que pudera.


Daquela noite em diante, a menina desaparecera dos sonhos de Yamit.

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