(Milena)
A morte é um evento. Não é
celebrada como uma festa de aniversário ou de casamento, mas não deixa de ser
celebrada. À sua maneira, funesta e cheia de pesar, mas ainda assim consegue
reunir uma boa porção de pessoas que confraternizam o fato de um determinado
indivíduo ter passado na Terra e marcado suas vidas positivamente, e essas
mesmas pessoas comparecem aos ritos da partida como a última forma de
demonstrar carinho por alguém que—e aqui permito-me colocar uma opinião
pessoal―, infelizmente, nem sequer pode se dar ao prazer de receber as
homenagens. Eu não acredito que um amigo ou ente querido morra e se torne um
expectador onipresente das ações daqueles que o amaram em vida (ou daqueles a
quem ele amou).
Porém, não quero ficar mantendo o
pensamento na morte. Essas ideias iniciais são apenas uma constatação, embora
aqui, no velório de Rita Lina, vou ter que ficar devendo a parte de “uma boa
porção de gente”. Até agora só estamos eu, minha família, os pais de Rita e
mais cinco pessoas, sendo que três delas trabalham na capela funerária. Não que
eu esteja querendo julgar o quanto Rita era amada ou não, mesmo porque a
maioria dos outros possíveis presentes pode estar cheia de compromissos
incanceláveis ou algo assim. E eu balanço a cabeça, reprovando veementemente
essa justificativa que não tem cabimento para mim. Quero dizer, se você tem um
amigo ou alguém a quem considere bastante, e essa pessoa falece, você se
esforça para ir ao velório dela, não?
É engraçado (não no sentido
literal, claro) como as tristezas de diferentes pessoas, ao se unirem, tem o
poder de criar uma Grande Tristeza, avassaladora, que é como uma assembleia de
pequenas criaturas malignas que querem se assentar sobre os seus ombros e
tentar fazer deles um ninho e... Gente, estou pensando em morte de novo??
Preciso de água.
O bebedouro da capela funerária
está sem copos. Um rapaz de cabelos desgrenhados que trabalha aqui aparece e
diz que vai providenciar uns copos logo.
“Obrigada”, eu digo.
“Fui eu quem a maquiou”, ele diz.
Eu me sinto momentaneamente
perdida, até que ele volta o olhar para o caixão onde jaz o corpo de Rita, e eu
compreendo que ele se refere a ela.
“Modéstia à parte, acho que ela ficou linda”, ele continua com seu
papo grotesco, que já começa a me inquietar.
“Bom, eu cheguei a vê-la, mas não reparei tanto”, respondo. “Deve ser porque não vi utilidade em uma
mulher estar maquiada nesta... situação. Quero dizer, pra onde ela vai não será
preciso impressionar ninguém, né?”, percebo que ele fica meio sem-graça com
a minha análise. Em minha defesa: eu só estou sendo prática, nada de tentar
desmerecer o trabalho do moço.
“E os copos?”, é melhor cobrá-lo e voltar ao nosso impasse inicial.
Ele admite que precisa ir logo
atrás disso e se afasta, sumindo por uma porta nos fundos do grande salão.
Os pais de Rita não saem um só
segundo de perto do caixão ainda aberto da filha. Por ora, não recordo seus
nomes. A mãe de Rita se assemelha muito a ela, o corpo pequeno e esbelto,
enquanto os olhos grandes vieram do pai. O sujeito tem ombros largos e está
usando uma camiseta branca bem apertada de marombeiro, e passa a impressão de
que os bíceps dele também queriam sair para dar o último adeus à Rita. Sem falar
no cabelinho estilo Ken, o namorado da Barbie, e eu desconfio que aquilo nos
olhos dele sejam lentes de contato. Se a Mattel
pretendesse lançar uma versão amadurecida do Ken, daria para se espelhar
tranquilamente no pai da minha ex-secretária. Ao mesmo tempo em que faço essas
observações cruas, tenho uma estranha sensação de alegria ao ver que Rita Lina
estava na família certa. Não importa se há poucas pessoas aqui, o amor dos pais
dela deve ter sido suficiente. Fico até com certa inveja, embora eu não tenha
noção de qual dor é maior: a de uma filha na flor da idade perdendo a mãe, como
aconteceu comigo, ou dos pais tendo que amargar a morte precoce de uma filha.
O rapaz está repondo os copos no
bebedouro. Aproveito para mandar outra mensagem para o Sávio: “O funeral vai começar em uma hora.
Não se esqueça de vir!”
Já que ele não virá para o
velório, pois pedi a ele que cuidasse de um caso importante com uma cliente
chamada Aurora, espero que não perca o rito final, no cemitério. A minha mente
ainda não está trabalhando direito quanto ao que aconteceu ontem em minha casa.
Será que eu agi como tola e dei piti à toa? Mas o que fazer diante de uma
informação que chega como uma bomba? Seu melhor amigo, a primeira pessoa com
quem você usou as táticas de desapaixonamento, mostra que suas armas são
falíveis e que sua primeira missão não foi tão bem-sucedida. Bastou Anna
reaparecer para ele ceder. E o pior: tendo me pedido para repetir o mesmo
trabalho de tantos anos atrás, me preocupando com uma missão que eu teria de
refazer, e até agora me sinto bastante insatisfeita com minha própria atuação
como agente do desapaixonamento, como se tudo, esse tempo todo, fosse baseado
num experimento que falsamente funcionara. E aqui estou eu, pensando em morte
outra vez. Pelo menos é o que isso soa para mim: morte.
Não sei como as coisas serão
daqui pra frente, mas não tenho bons pressentimentos.
O filho da mãe visualizou a
mensagem, mas nem se deu ao trabalho de responder. Espero que esteja ocupado. E
espero que não dê o cano, pois a Rita também era funcionária dele.
Ivan está chegando à capela. Meu
coração se tranquiliza. Embora meu pai, Dana e as gêmeas estejam aqui, não
posso negar que a chegada de Ivan me devolve um pouco de paz e consegue até
mesmo me fazer esquecer, por um momento, que estou num ambiente impregnado de
melancolia.
Ele me cumprimenta com um beijo e
um sorriso curto, possivelmente pela ocasião se tratar de um velório.
“Eu vim o mais rápido que pude”, ele se explica. “Como é que cê tá, amor?”
“Normal. Eu não a conhecia muito bem mesmo, mas como eu sou a última patroa
que ela teve...”
“Cadê todo mundo?”, Ivan franze as sobrancelhas, enquanto procura
com o olhar pela presença de mais pessoas do que pode ver.
“Essas pessoas são todo mundo”, digo, e a reação impressionada de
Ivan me faz querer rir. Ainda bem que me segurei, esse tipo de coisa não
costuma ser de bom tom.
Ele se move, dando a entender que
vai caminhar até o caixão. Outro fato assustador dos velórios: a atração
urgente que as pessoas sentem em se aproximar do falecido, como se este fosse
uma peça em exibição num museu. Até eu fiz isso. Mas se me perguntassem o
motivo racional de tê-lo feito, seria
pega nesta charada que atravessa séculos. E, definitivamente, creio que
guardaria pra mim a resposta que estou pensando agora: “As pessoas querem ter a experiência mórbida de estar perto da morte e
não ser tocadas por ela”.
Estou. Pensando. Em. Morte.
Outra. Vez. Milena, isso não é saudável, querida.
Ivan e eu estamos indo rumo ao
caixão, mas detemos o passo. E uma visão aterradora se expõe diante de todos.
Como quem acorda de um pesadelo, parecendo sufocada, Rita Lina ergue o tronco,
seus olhos parecendo ainda maiores, a boca aberta de susto por ter despertado
de repente. Seu pai, um homenzarrão do tamanho de uma pilastra, desmaia. Sua
mãe está tão atônita que não consegue mover um músculo. Tanto que mal parece
ter notado quando o esposo foi ao chão. Eu estou tremendo, meus lábios ficam
secos de imediato. O rapaz que trabalha na funerária está embasbacado, como
alguém que testemunha o mar pela primeira vez de pertinho. E, meu Deus, aquilo
é um sorriso na cara dele?!
“Blartz Kwarkzo! Clypson zirgmon norvik”, é a primeira coisa que
Rita diz, respirando arfante, e acho que ninguém tem a menor ideia do que isso
signifique.
“De quem é o aniversário?”, outra vez ela fala, e isto, apesar de
ser numa língua familiar, também não faz o menor sentido.
Estou levando Rita e seus
familiares para casa, em meu carro. Ivan está ao meu lado, o carro dele está no
conserto. A família no banco de trás não faz mais nada a não ser ficar em silêncio,
curtindo essa insólita experiência da “ressureição”, os três abraçadinhos. Vou
te contar, hein! O que eu terei visto na vida quando chegar aos 50 anos?
Rita olha para si mesma no
espelho do carro e quebra o silêncio:
“Que maquiagem horrível! Vocês pretendiam me enterrar assim?”
Ivan e eu nos entreolhamos. Ele
se vira para o lado oposto para tentar rir disfarçadamente. Despachada como eu
sou, acabo rindo sem me importar com coisa alguma.
“Tá legal, Rita”, eu digo. “O
que foi aquilo? Você deu um susto em todo mundo. O médico deu certeza absoluta
de que você tava... hum... morta”, falho com louvor em tentar achar um
eufemismo.
“Eu sei”, ela aparenta exaustão. “Mas foi tudo uma atualização do chip que os valpixianos colocaram em mim. É a minha primeira atualização, e
eu não sabia que ia ser tão repentina. Eles simplesmente desligam você sem
aviso prévio e executam o upgrade
remotamente. O procedimento leva de cinco a doze horas”.
Posso apostar que Ivan vai
explodir se continuar reprimindo as risadas. Sem nada melhor para fazer,
resolvo ir na onda:
“Que troço arriscado, hein, Rita Lina. Esses valpixianos são muito irresponsáveis.
Já pensou se a gente enterrasse você viva? Nossa, fico arrepiada só de pensar”.
“Verdade”, Rita concorda. “O
jeito seria tentar escapar da sepultura, né?”
“Claro. Como não pensei nessa alternativa tão banal?”
“A parte boa da atualização é que agora eu tenho algumas novas habilidades”.
“Que maravilha, meu amor!”, a mãe dela diz, e eu não sei se ela
realmente acredita nessas patacoadas ou se está se comportando como eu. “Que habilidades são essas?”
“Ainda não sei”, responde Rita, decepcionando a todos. “Só sei que, quando o chip é atualizado, você ganha novas habilidades.
Mas a pessoa só descobre qual é no momento em que vai executá-las. Posso ser
sincera? Eu tô louca pra que seja a habilidade de lutar esgrima. Ah, mas eu também
ficaria feliz se fosse a habilidade de descascar camarão só com o olhar”.
“Jura?”, Ivan se expressa na conversa pela primeira vez. “Você tem a chance de ser praticamente um X-Men e são esses poderes que você gostaria de
ter? Ou é só isso que os valpixianos podem fazer? Porque se for, estou
desapontado com eles”.
“Se eu pudesse escolher, teria a habilidade de cortar a grama do jardim
só pisando nela”, revela o pai de Rita Lina. “Mas, como eu não sou o privilegiado aqui... Boa sorte, filha!”
Ele dá um beijo na testa da moça.
Esses três são umas figuras! Decido que vou me ater apenas a dirigir, pois, ao
contrário deles, a minha imaginação tem
limites. Deixo a mente apenas relaxando, vagando por caminhos aleatórios e não
sei como acabo pensando sobre o meu
velório. Seria menos triste do que o de Rita? Haveria mais pessoas? Quem? Que
amigos eu tenho que pudessem comparecer para prestar a última homenagem? E por
que raios eu me importo com isso se, afinal, eu estaria morta e não veria nadinha?
Agarro o volante com mais rigidez
e tudo que espero desse dia louco é que ele acabe logo.
Chegamos finalmente à casa de
Rita e, apenas para concluir tudo dentro das formalidades, desço do carro para
me despedir. Ivan, muito mais craque do que eu nesses assuntos, faz o mesmo.
“Eu queria te pedir uma coisa, Milena”, Rita fala, ao mesmo tempo
em que, com o olhar, faz os pais entenderem que não os quer presentes neste
instante. Eles sorriem e entram na casa.
“Pode pedir”, autorizo.
“Será que eu posso tirar o resto do dia de folga?”
Outra vez troco olhar com Ivan.
Estamos trocando risos também, mas em pensamento.
“Claro, querida! Você teve um dia difícil hoje, né? Que tipo de patroa
eu seria se fizesse você trabalhar logo depois de ter ressuscitado, certo?”
Mas há algo de estranho no olhar
da minha ex-ex-secretária.
“Algum problema, Rita?”
“Digamos que sim”, assente ela.
“O que é?”
“Eu quero pedir minha demissão, na verdade. Sabe o que é? É que eu não
aguento ficar muito tempo num mesmo emprego. Espero que compreenda”.
“Sério? Pensei que você gostasse de trabalhar na ANNA”.
“Eu gosto, mas... acontece que eu sou um espírito livre”, ela “explica”,
fazendo um inesperado movimento de bater de asas. Por um segundo sinto a
expectativa de que ela voe, até cair na real de que é viagem demais imaginar
isso. Se bem que, depois do evento de hoje, não sei mais o que esperar da vida.
“Bom... O que eu posso dizer então? Tudo bem”, é minha única
escolha. Apesar de doidinha, Rita é uma funcionária eficiente. E, verdade seja
dita, suas maluquices me divertem à beça.
“Obrigada por tudo, dona Milena. E desculpa qualquer coisa”.
Não sei de onde veio esse ímpeto,
mas eu vou até ela com um abraço sincero. De qualquer forma, parece que hoje
estava destinado a rolar a uma despedida de Rita Lina.
“A gente se vê por aí”, ela encerra, e eu retribuo com um sorriso.
Depois que ela vai para dentro de
sua casa, Ivan e eu partimos. Enquanto abrimos a porta do automóvel, meu
namorado comenta:
“Que loucura, hein! Será que os pais dela acreditam nessa coisa toda de
alienígenas e tal?”
“Como assim, Ivan? Cê não acredita?”
“Você tá me zoando”.
“Eu tô te zoando”.
Já passa e muito das onze da
manhã e ainda sem notícias de Sávio. Devo ficar preocupada?
“Você vai comigo até o aeroporto?”, indago.
“Que horas é o voo do seu pai mesmo?”, Ivan indaga de volta.
“Daqui a umas duas horas, se não me engano”.
“Eu tenho um compromisso”, informa ele, e eu tento apenas não
demonstrar minha frustração. “Porém, é
claro que já cancelei. Eu imaginei que você fosse precisar dos meus serviços
hoje”.
“Seus serviços, é? Imaginou certinho”, e então eu volto a sorrir,
com uma malícia moderada.
E assim a vida segue. Quem diria.
Depois de passar a manhã inteira pensando em morte, a vida é o tópico que
realmente importa em meio a todo esse caos, a luz que se sobressai em meio aos
pensamentos obscuros. E Ivan com seu coração disposto a cuidar de mim me ensina
que, não interessa quantas pessoas estarão presentes no meu velório um dia, mas
sim quais. Sendo as pessoas que
realmente valem a pena, como os pais de Rita Lina que compartilham as fantasias
da filha, eu já me darei por satisfeita. Mesmo que, dentro de um caixão, eu não
fizer a mínima ideia do que estiver rolando. Ou se a minha maquiagem vai estar
boa ou não.
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