(Narrado por Milena)
Como uma mulher de 28 anos, sem
namorado há uns dois meses e meio e um pouco acima do peso se prepara para um
encontro, sem demonstrar qualquer sinal de desespero? Tipo, eu não estou nem um
pouquinho desesperada, até que sei lidar numa boa com a solteirice, mas algumas
pessoas enxergam sinais mesmo que não existam. E não me importo tanto com o que
pensam a meu respeito, mas também não gosto da sensação de carregar à minha
volta a aura da mulher solteira que já está indo a um encontro apenas dois
meses depois do término do namoro. Sim, eu fui a três encontros antes deste,
mas — céus!— eu realmente prefiro nem levar em conta essas barcas furadas.
Tudo isso, após refletir mais
umas três vezes, começa a soar como uma preocupação à toa, ridícula e até mesmo
infantil. Milena, vê se cresce!
A questão é que talvez eu esteja
com uma ponta de preocupação porque tenho consciência de que estou prestes a
sair com um homem diferente. Ivan Castro. Depois de ver que ele descobriu meu
endereço de e-mail e entrou em contato, fiquei curiosa. Claro, antes disso eu
já havia notado o quanto ele parece ser uma pessoa bastante interessante, na
vez em que pisei em seu bar, o Deleite. Negro, porte atlético, alto, cabelo
ralinho, cheiroso, uma voz com um grave suave e dono de um sorriso que arrebata
a atenção de imediato. Me dá um pequeno siricotico (e esta palavra está sendo
empregada num sentido muito mau) ao ver que ele lembra um pouco aquele cantor
Alexandre Pires. E pagode não é,
definitivamente, a minha praia. Espero que também não seja a dele.
Mas ora essa, por que me
preocupar se é a praia dele ou não? É só um encontro, que expectativas idiotas
são essas? Enfim... Voltando ao que eu dizia, respondi ao e-mail dele e logo
migramos a comunicação para a via mais prática que existe ultimamente, o WhatsApp. Desde então, a gente se fala
praticamente todo dia, e quase sempre as conversas são longas.
Para uma mulher como eu, oficialmente
uma expert em achar defeitos em
potencial nas pessoas e, assim, construir um perfil desapaixonante sobre elas,
tem sido um desafio e tanto “ler” o Ivan. Não que ele não tenha defeitos ou
características que venham a culminar num motivo (banal ou não) para eu não ter
qualquer interesse por ele, mas até então nada de realmente relevante se
apresentou. Se ele fosse um cara que aprende inglês vendo Dora, a aventureira ou Dothraki com vídeo-aulas no Youtube, o diagnóstico sairia mais
fácil. Tudo bem, o sujeito tem mania de colecionar coisas e tal, mas exigir
normalidade integral de um ser humano faria de mim uma mulher tola e megera.
O “problema” (se é que posso
chamar assim, portanto as aspas) é que esse ar de mistério é o que tem
sustentado todo esse suposto interesse que eu sinto por ele. Parece que ainda
há muito mais a se desvendar a respeito de Ivan Castro. Cada papo que a gente
tem pelo Whats me puxa mais adiante
na curiosidade sobre o que ele tem a me oferecer enquanto companhia, amizade e
novidade para a minha vida. Aparentemente, esse bem-estar misturado com uma boa
disposição de aprofundar o contato é recíproco. Tanto que hoje vamos sair para
jantar.
E estou aqui de novo, parada, de
frente para o espelho, experimentando a enésima combinação de roupas para a
ocasião. Lanço um olhar de lamento e indecisão para minha cama, onde outras
peças de vestuário jazem descartadas. Essa vida de mulher moderna é um saco, às
vezes.
Confesso que fiquei meio
apreensiva com essa história de sair pra jantar. Aonde se vai para comer com um
cara que é proprietário de um lugar onde você já pode fazer isso? Bom,
concordamos que o Deleite não seria ideal para o que queríamos, já que lá o
clima é muito mais de trabalho do que descontração, para Ivan. Então fechamos
em ir atrás de um local que servisse uma boa massa. E eu insisti que não ia
rolar dele pagar a conta toda (pois é, sou dessas, adepta do “racha a conta”,
fazer o quê?). É um encontro de amigos.
É, eu sei, tenho idade e vivência suficiente para saber que isso não passa de
um subterfúgio para a possibilidade de que todo encontro entre um homem e uma
mulher gere algo mais. Entretanto, existem algumas conveniências sociais que
precisam ser observadas, como, por exemplo, o fato de que estou perfeitamente
capacitada para sair com alguém, sem importar qual será o resultado disso, e
bancar minha própria parte. Afinal, a gente conquista independência para quê?
Outra coisa que eu fiz questão
foi de combinar com Ivan que eu iria no meu próprio carro. Nada de passar para
me pegar em casa, isso aqui não é filme americano de amor adolescente.
Chego ao restaurante. Já passa
das oito e meia da noite. Ivan já me aguarda numa das mesas. Sorrio
amigavelmente para ele, enquanto caminho em sua direção. Estou mentalizando o
quanto é bom estarmos num lugar onde não nos servirão bebidas com canudinhos,
pois assim não terei de testemunhá-lo pegando novos itens para sua coleção de
canudos usados (e babados, argh!).
Acabei escolhendo um vestido
preto para ocasiões especiais que não sejam muito formais, justo em meu corpo
na medida certa, alguns centímetros acima dos joelhos, decote em V, mas nada
tão insinuante, sem mangas. Além de preto ser um bom recurso que disfarça o
peso, o vestido não se agarra inconvenientemente às minhas gordurinhas, o que
me permite agir como uma mulher que está completamente confortável, em vez de
uma que se sente com o corpo claustrofóbico num tecido.
Ivan, muito cavalheiro,
levanta-se, cumprimenta-me com um beijo cordial na bochecha e finaliza puxando
a cadeira para eu sentar. Ele está usando uma camisa amarela sob um terno
preto, sem gravata. Mais uma vez, imbativelmente cheiroso. O ambiente ao redor,
apesar de ser notoriamente elitizado, transmite um clima de casualidade. Está
até tocando Nerina Pallot, e eu achando que era a única criatura no mundo que
apreciava as músicas dela. Foi Ivan quem escolheu o lugar. Eu me rendo. Neste
quesito, estou ganha.
“E então, você sempre traz suas namoradas aqui?”, eu provoco, de
brincadeira, é claro. Só pra dar o tom que eu quero que se mantenha ao longo da
noite.
“Gostei dessa”, ele responde depois de uma leve gargalhada. Que
homem adorável!
“Eu tô brincando, mas... Se eu fosse um homem, acho que sempre traria
mulheres aqui. Parece muito legal, então não teria como falhar. Uma boa
primeira impressão para um primeiro encontro, não concorda?”
“Sem dúvida. Mas eu, na realidade, tava contando com meu charme do dia
em que a gente se conheceu e do meu maravilhoso humor nas conversas do WhatsApp para passar uma boa impressão”.
Ele sela o que acaba de dizer com
um sorriso que apenas me lança mais ainda para uma atmosfera de conforto.
Apesar de ter dito em tom de brincadeira, Ivan, de fato, possui um excelente
humor, com suas tiradas e sacadas que surgem nos momentos oportunos.
“Você está linda!”
“Obrigada. Você também não está nada mal”.
Ouve-se um ruído. É o meu
celular, na bolsa. Notificação de mensagem. Peço licença para colocar no
silencioso, mas antes dou uma rápida checada. É o Sávio. Leio numa velocidade
assustadora e só dá para entender que “eu não vou acreditar em quem ele tá
investigando dessa vez” e parece que tem a ver com uma antiga garota que ele
ficou do colégio e... Passei os olhos pelo restante da mensagem, mas para não
parecer indiferente, mando uns emojis sorridentes e esclareço brevemente que
estou num encontro com Ivan (do qual eu já comentei com Sávio, então não
preciso dar muitas explicações).
“Prontinho”, digo após guardar o telefone novamente na bolsa.
“Trabalho?”, Ivan indaga, ligeiramente preocupado.
“Não, pode ficar tranquilo”.
“Hum, tem certeza? Não tem ninguém aqui que você esteja investigando?”,
ele brinca com o fato de saber sobre o ramo em que eu atuo.
“Até que hoje não”, eu devolvo a brincadeira. Como eu disse
anteriormente, manter o tom.
Um garçom se aproxima, ouve
nossos pedidos, anota-os e, em seguida, afasta-se. Nerina agora está cantando Jump, sobre uma moça que tem dedo-podre
e só sabe escolher os piores indivíduos para se envolver romanticamente, então
ela está pedindo a Deus que a ajude, mas no fundo dá pra sacar que ela até gosta
disso. Adoro essa música, mas não deixo de saborear a sorte em ter conseguido
um encontro decente. Desculpa aí, Nerina, mas é que eu tenho o dedo limpo.
“A gente já conversou bastante pelo celular, mas agora me lembrei de
uma coisa que eu queria te perguntar”, anuncio.
“Vá em frente”.
“Por que você não tem Facebook?
Aliás, por que você não tá em nenhuma rede social?”
“Ah, você andou pesquisando...”
“Não, eu estava tentando te stalkear mesmo”, honestidade é meu
forte, uso sem moderação, até o dia em que eu pegar um porre daqueles. Milena
Kerber, uma mulher que abusa das metáforas.
“Mas falando sério”, eu continuo, “fazia tempo que eu queria te perguntar isso, mas sempre acabava
esquecendo.”
“Bom, eu enjoei. Usei por muito tempo e cancelei, mas eu só usava o Face mesmo.”
“Mas você foi bem radical então. Nem o Deleite tem página no Face ou perfil no Instagram, por exemplo... Sei lá, em
tempos de alta conectividade, isso não seria bom pros negócios?”
“Você parece mais uma jornalista do que uma psicóloga”, ele ri da
minha análise enquanto faz uma observação que me faz ponderar se não estou
sendo muito invasiva. “Bom, digamos que
eu prefira outras formas de divulgação. Nada contra os benefícios da Internet,
mas eu ainda prefiro interagir no mundo real, digamos assim. E levo isso também
pros meus negócios.”
“Você é formado em Direito, certo?”
“Exatamente. Mas raramente advogo. Acho que eu não tenho muita
paciência.”
“É como eu então. Me formei numa área, mas preferi investir numa outra
carreira.”
“Pois é, e ambos oferecemos serviços essenciais às pessoas”.
“Você acha que se desapaixonar é essencial, como comer e beber?”
“Claro. Algum político deveria sugerir a lei do direito ao
desapaixonamento. Já pensou? Um monte de gente sendo atendida pelo SUS ou algo
do gênero? Claro, antes disso a sua empresa formaria pessoas para atuarem como
agentes, e estes formariam outros agentes...”
“Formidável”, eu concordo, mantendo o tom descontraído da conversa.
“Só que não, né? Que piada mais idiota!!
Acho que por isso é tão engraçada.”
“Sei não, hein! Acho que você deveria pensar.”
“E um belo dia ver instaurada a CPI do desapaixonamento porque algum
deputado se aproveitou da minha nobreza pra desviar dinheiro? Deus me livre, tô
fora!”
O garçom chega com nossas
entradas. Serve-nos vinho tinto em duas taças, enquanto esperamos o pedido.
“Você é muito engraçada, sabia?”
“Ah, que nada! Você que é gentil”, percebo que, assim que digo
isso, dou aquela jogada de cabelo charmosa que dizem que toda mulher dá. É a
primeira vez que eu me conscientizo desse gesto, e estou assustada com a
realidade da intenção com que ele é empregado.
“Você mencionou que terminou um namoro há pouco tempo, Milena”.
Eu não disse a ele que fora o
contrário, na verdade. Mas acho que podemos pular essa parte.
“Sim. Foi no fim de Junho. Sabe como é, né? Nem tudo dura pra sempre.”
“Você acha?”
“Bom, você tá falando com a pessoa especialista em ajudar com que não
dure.”
“Ah, mas você só faz com que não dure uma paixão indesejada, não é
isso?”
“É.”
“Então! Falando do jeito que você falou, pareceu que você tava
descrevendo um ser cruel.”
“Tem razão, acho que esse vinho deve ser mais forte que eu pensei. Ou
eu que sou muito fraca. Ou estou culpando o vinho.”
“Olha, Milena, permita-me discordar”, ele ignora minha piadinha com
o vinho, mas isso pouco importa. “Mas
essa história de que nem tudo dura pra sempre... Não precisa ser assim. Eu
acredito no duradouro. Eu acredito no esforço conjunto para a preservação do
amor, sabe. O que mais explicaria a quantidade de casais que comemoram 40, 50
anos juntos? Imagina o tanto que eles trabalharam pra manter o relacionamento.
Sem querer ofender, mas existe mais beleza na conquista diária do que no
desapaixonamento”.
“Verdade, Ivan. Sei lá, acho que as pessoas hoje são muito mais imediatistas.
É mais fácil trocar do que consertar, entendeu? Essa é a mentalidade. Você não
acreditaria, por exemplo, nos motivos mais bobos que alguns clientes encontram
para se desapaixonar. No fundo, talvez nem estivessem realmente apaixonados.
Seria algo mais como uma forte atração pra cumprir uma espécie de demanda
emocional, como se a pessoa precisasse se apaixonar de tempos em tempos, talvez
pra se sentir viva, humana, componente ativa do ciclo universal de estar
atraída por alguém. Da mesma forma que estudamos para conseguir um bom emprego
ou conseguimos um bom emprego para nos sustentar. Algumas ligações se iniciam
de maneira tão banal, e da mesma maneira essas ligações se desfazem. Mas,
enfim, eu não os julgo. Acho que o meu profissionalismo me torna mais
tolerante.”
E então a conversa ganha um ar
mais sério, beirando o filosófico. E, por um momento, visualizo Ivan
estranhamente posicionado do lado inverso da vida. Eu, uma agente que ajuda as
pessoas a se desvencilharem das ciladas da paixão, enquanto ele, um defensor
dos princípios da durabilidade dos relacionamentos, do consertar ao invés do
trocar. Não que eu não seja favorável a isso, mas sob algum aspecto que eu não
consigo identificar com clareza, isso nos deixa em lados opostos. É a sensação
que fica. Porém, acaba sendo um combustível para eu continuar investindo em
conhecê-lo mais. Este homem é um território com muito a se explorar, do tipo
que intriga, e eu não consigo resistir.
“A conversa ficou séria de repente, né?”, ele parece ler meus
pensamentos, ao que concordo no ato.
“Eu falei que esse vinho era forte”, digo, tentando emplacar outra
vez uma piada sobre o vinho. “Se eu tomar
mais duas taças, escrevo uma dissertação de mestrado aqui e agora”. Ah,
gente, essa foi boa, vai.
“Com certeza vou querer sair com você mais vezes”, Ivan declara,
após o que eu acredito que foi um risinho em apoio à minha empreitada
humorística.
Eu sorrio, meus olhos devem estar
iluminados agora, e eu só consigo dizer, com muita ternura e sinceridade:
“Eu também”.
Sinto o celular vibrar novamente.
Mas que droga! Eu devo ter esquecido de silenciá-lo. E ele está vibrando
insistentemente. É uma ligação. Peço licença pela deselegância, mesmo que Ivan
tenha demonstrado que eu poderia ficar à vontade.
“Alô?”, eu atendo, mesmo depois de ver que era um número
desconhecido.
Após ouvir a voz do outro lado da
linha, arregalo os olhos de tal forma que percebo em Ivan um leve estremecer
nos lábios. Ele é um sujeito muito preocupado com as pessoas, que gracinha. Mas
a verdade é que esta ligação traz uma grande surpresa.
“Pai?”
Ivan está me encarando enquanto
eu falo com meu pai. Eu sei o que ele está pensando: está acabando de se tocar
que eu jamais falara de meu pai ou qualquer outra coisa relevante sobre a minha
família, a não ser sobre o falecimento de minha mãe. Depois de falar com meu
pai, desligo o telefone, e fico com a cara mais idiota que eu poderia
expressar, a boca semiaberta e a surpresa ainda estampada nos olhos.
“Algum problema, Milena?”
“Meu pai”.
“Ele tá bem?”
“Ele acabou de chegar de viagem, simplesmente”.
Meu pai, Marcos Kerber, está
parado de pé em frente à minha casa. Ou melhor, a nossa casa, já que tecnicamente ela pertence a ele mas, como ele só
aparece durante as férias ou em algumas ocasiões especiais, então eu acabo
virando a proprietária. Ele perdeu a cópia que tinha do molho de chaves, por
isso atrapalhou meu jantar (e agora estou sentindo meu estômago roncar de fome,
fazendo-me perceber que eu não sabia o quanto estava faminta). Papai está
acompanhado de sua “nova” família. Dana, sua jovem e simpática esposa, apenas
sete anos mais velha que eu, e as gêmeas Isabela e Laura, que eu acredito que
devam ter uns 12 anos à essa altura. Deveria parabenizar Dana por não batizar
as gurias com nomes similares, como se o fato de gêmeos serem semelhantes já
não fosse chateação suficiente.
Não é uma família nova, pois eu já as conheço e sempre
mantemos contato, tanto presencialmente quanto pela Internet. É nova no sentido
de que... Bem, não é a família que costumava ser até a morte da mamãe. Enfim.
“Pai!”, exclamo, marchando em sua direção com passos apressados,
sorrindo. Meus braços estão abertos.
“Princesa Mimi!”, ele anda alguns passos para me encontrar,
chamando-me por um apelido que me deu por causa de uma história que há muito
ele me contou, numa dessas circunstâncias em que os pais vão colocar as filhas
para dormir. Na ocasião, talvez por falta de prática, papai inventou que a tal
Princesa Mimi morava num castelo repleto de bonecas Barbie por todos os corredores e aposentos. Papai nunca notou que
eu não suportava a Barbie, que eu
nunca nem sequer lhe pedi uma de presente e nem mesmo mencionei algo sobre essa
boneca chata. Mas a sua criatividade era tão notável que, na hora de inventar
histórias, eu dava um desconto a ele.
O abraço é saudoso, confortável,
amigável. Meu pai já está na casa dos 50 anos, está calvo e tem uma barriguinha
fofa. Ele nasceu no Rio Grande do Sul, mas agora mora com a Dana e as meninas
no exato oposto de sua terra natal. Ainda abraçados, ele me dá um beijo cálido
na testa e depois na bochecha. E eu me derreto em seus olhos de cores
diferentes, cada um. É que seu Marcos tem uma anomalia chamada heterocromia,
então ele nasceu com um olho verde e outro azul. Para mulheres que se perdem no
charme de um gaúcho branquelo, papai tem um duplo trunfo a seu favor. Pena que
essa anomalia não me atingiu.
Dou um abraço cortês em Dana. Ela
é esbelta, uma morena de cabelos pretos longos e bem tratados. Comento que ela
está mais bonita do que da outra vez —embora, pra ser sincera, eu não me
recorde de como ela aparentava estar da outra vez— e me volto para as meninas,
que, agora estou notando, deram uma espichada desde o último contato. E disso
eu realmente me lembro.
“As gêmeas estão enormes, hein! Saudade dessas meninas lindas!”
“Por que você fala de nós como se não estivéssemos aqui?”, indaga
aquela que eu tenho quase certeza que é a Isabela.
“Por que você ainda pensa que nós somos gêmeas?”, questiona a
outra, que deve ser a Laura.
Papai me lança um olhar doce, mas
que me censura. Aparentemente porque, novamente, eu as tratei como se fossem
gêmeas. Mas elas são idênticas, pô! Mesmo cabelo, aparelho dentário, altura,
timbre, estrutura óssea... E não tem jeito, eu sempre vou me esquecer de que elas
não são gêmeas.
Mas o que é realmente intrigante
é que não é período de férias. Logo, qual é a ocasião especial? Bom, deixemos
as perguntas para depois. Precisamos entrar.
Levou quase uma hora para todo
mundo se acomodar, tomar um banho e tudo mais. Dana acabou de preparar um café
para acompanhar o papo que vamos iniciar na sala de estar. Dana é incrível, ela
é tipo uma dessas esposas-troféu, algo que eu admiro, mas por dentro o bichinho
da rejeição fica cutucando. Papai a conheceu aqui mesmo, enquanto dava aula
numa escola pública. É sempre meio entediante quando um deles conta a história
da origem do romance, e quase sempre eu entro no piloto automático quando eles começam.
É que eu já memorizei cada detalhe, então se fosse pra me alimentar de reprises
eu veria a centésima reapresentação de A
Usurpadora na TV.
Estamos reunidos na sala, falando
de amenidades: como foi a viagem, os detalhes curiosos que aconteceram, o
emprego de meu pai em Macapá, no Amapá. Ele dá aulas de Literatura
Luso-Brasileira, apesar de agora também trabalhar com Língua Portuguesa, já que
as duas matérias foram vinculadas em uma só. Ele já lecionou para mim no Santo
Cristo. Sávio o adora até hoje. Com certeza vai adorar também o fato de ele
estar fazendo uma visitinha surpresa.
“Você se esqueceu de que nós estávamos vindo?”, meu pai pergunta,
com um tom de generosidade, o que é até um tanto estranho, pois ele é dono de
uma personalidade mais elétrica.
Com a pergunta, percebo o tamanho
da minha mancada. Essa visita não é surpresa. Ele já tinha avisado há pelo
menos três semanas, mas fiquei com a cabeça tão cheia e atordoada que apaguei
completamente a informação. Que raiva de mim mesma agora! Se eu não tivesse me
olvidado disso, não teria acertado de sair pra jantar com Ivan justamente hoje.
Meu pai está aqui porque a escola em que ele trabalha e as gêmeas estudam está
passando por uma reforma urgente e, como o prédio só será devolvido à sociedade
daqui a algumas semanas, ele aproveitou e trouxe a família para fazer um
passeio.
“Desculpa, gente, eu não sei como fui esquecer”.
“Que nada, Milena! A gente é que ficou se sentindo mal por ter te
atrapalhado no que você tava fazendo”, conta Dana.
Aceito as desculpas, mas sabem
como é, né? Desculpas não desfazem o estrago. Teria sido um jantar lindo. Mas é
para isso que as famílias também servem, certo? Fazer você perder momentos
legais e sacrificar seus próprios interesses para atendê-los.
As gêmeas surgem, ambas tem o
semblante empolgado.
“Pai, olha o que a gente encontrou lá na garagem!”, informa
Isabela. Ou Laura. Não. Aposto todas as minhas fichas em Isabela, após uma
análise mais minuciosa.
“Uau, Laura!”, papai entra na onda do entusiasmado, ao mesmo tempo
em que constato que perdi a aposta que fiz comigo mesma.
Laura está segurando uma
furadeira, acompanhada de Isabela, que também está inexplicavelmente
animadíssima com a descoberta. Eu fico observando, enquanto no meu íntimo tento
entender o que pode haver de tão maravilhoso numa furadeira. Que, aliás, eu nem
sabia que tínhamos em casa.
Minhas irmãs são estranhas. Elas
têm um canal meio tosquinho no Youtube,
onde bancam as viciadas em livros (apesar de eu suspeitar que elas nunca leram
mais do que Harry Potter e Percy Jackson) mas também fazem vídeos
de DIY (do-it-yourself), onde ensinam as pessoas a construírem cacarecos com o
que se tem em casa, além de outras empreitadas envolvendo trabalhos manuais.
Devo admitir que as garotas têm talento e criatividade, então provavelmente
elas já bolaram um bom plano que inclui a furadeira. Por dentro, sinto-me um
pouco desconcertada, porque nunca vi meu pai tão animado por uma iminente
façanha de uma filha como ele está pelo empenho das minhas irmãs. Será que tudo
que eu deveria ter feito na minha época
de exclusividade era ter demonstrado habilidades manuais e empolgação por
furadeiras? Ok, por que estou tendo esses pensamentos?
Laura e Isabela se afastam,
enquanto Dana decide que vai preparar algo para nós comermos. Sinto vontade de
beijar os pés dessa mulher, porque a fome com a qual eu retornei pra casa está
entronizada e criando raiz em meu estômago.
“E aí, como é que está a vida?”, é a primeira coisa que meu pai
resolve perguntar, quando finalmente podemos ficar a sós.
“Do mesmo jeito de sempre, pai. Um pouco de trabalho e, às vezes, um pouco
de diversão”.
“E o Enzo?”
Meu sorriso sai tão sem-graça que
papai nem precisa de mais palavra alguma.
“Eu entendo. Nem tudo dura pra sempre, né?”
“Realmente”.
“SEM SILÊNCIO CONSTRANGEDOR SEM
SILÊNCIO CONSTRANGEDOR SEM SILÊNCIO CONSTRANGEDOR SEM SILÊNCIO CONSTRANGEDOR
SEM SILÊNCIO CONSTRANGEDOR SEM SILÊNCIO CONSTRANGEDOR SEM...”, grita em mim o
pensamento.
“Macapá não é a melhor cidade do Brasil, mas estamos vivendo bem lá. É
um calor dos infernos, mas ainda pode-se considerar um lugar tranquilo. Quer
dizer, em todo lugar existe violência, né? Mas lá a incidência é menor que em
muitas cidades. E, sabendo agir direitinho, dá pra ganhar bastante dinheiro.”
“Sei...”, parabéns, Milena! Você realmente domina a arte da
conversação com o pai que mora distante.
Meu pai se empertiga um pouco pra
frente, tateando o bolso de trás da calça. Apanha sua carteira, abre-a, tira um
cartão e me entrega. Nele, lê-se: “KPV”. Há um slogan abaixo, que diz: Eternizando emoções.
“Esse aí é um negócio que eu abri. Ainda não tinha te contado porque
guardei esse cartão pra te mostrar pessoalmente.”
“É algum tipo de produtora?”, eu palpito, por haver ilustrações de
rolos de filmes e câmeras fotográficas no cartão. Parabéns outra vez, Milena!
Esse curso de “Decifrando o óbvio” teve certificado no final?
“Exatamente. Fazemos trabalho de foto e vídeo. Você sabe como eu sou
louco por fotografia e filmagem, né? Então juntei uma grana e iniciei a KPV.
Significa “Kerber Produções Visuais”. Já
consegui uns clientes excelentes. Logo vou acrescentar o serviço de maquiagem
profissional. A Dana fez uns cursos muito bons, entende? Já estou até ensinando
as gurias a fotografar também...”
“Isso... Isso é demais, pai. Parabéns!!”
“Gostou?”
“Na verdade, o slogan é bem brega, né? Parece um encontro dos dotes
românticos do Roberto Carlos com os ideais corporativos do Mark Zuckerberg. Mas
de resto, eu adorei”.
Papai abre uma gargalhada
gostosa. Eu senti falta disso. Fazê-lo rir com minha sinceridade espontânea e
ferina. Ele me conhece, jamais se ofenderia. Aquela gargalhada marcante
irrompendo no ar da sala, preenchendo todo o ambiente, sempre me trouxe e trará
boas lembranças.
“Essa é a minha incorrigível Princesinha Mimi”.
Retribuo o comentário com um
sorriso tímido.
“Mas sabe o que eu gostaria realmente, Milena?”
“Do quê, pai?”
Seu semblante se torna mais
sério, solene. E ele se inclina mais para a minha direção, como se tivesse de
contar um segredo, embora Dana ou as gêmeas nem estivessem por perto.
“Filha, nunca te passou pela cabeça ir pra Macapá e morar com a gente?”
Eu levo mais tempo do que o
esperado para processar a pergunta. Na verdade, para processar que ele
realmente me perguntou aquilo.
“Não estou entendendo”, saio-me com esta.
“Só estou sugerindo. Sabe, acho que você poderia continuar lá o mesmo
negócio que você tem aqui”.
“Pai, o senhor sabe que eu não posso ir”, replico, com a resposta
mais óbvia que encontro no momento, e tentando não demonstrar que esse assunto
está me chateando.
“Sim, sim, eu sei. Mas não precisa ser imediatamente. Isso pode ser
algo pra você levar em consideração no futuro, quando as circunstâncias forem
mais... convenientes”.
Tática infalível para quando
alguém fica tentando te convencer sobre algo que você já tem uma posição bem
definida: seja reticente e evite deixar o assunto se alongar. É o que estou
fazendo neste exato momento.
“Você podia pensar no assunto, hã?”, diz ele, e este é o sinal de
que a pessoa mordeu a isca plantada pela sua falsa hesitação. Meu pai está
fazendo aquela introdução típica de quem está encerrando o assunto.
Para conseguir maior êxito no meu
intento de fazer seu Marcos deixar o assunto para lá, respondo apenas assentindo
com a cabeça. Um falso “sim”, embora eu esteja um tanto irritada com a
proposta. Nesses casos, evite responder oralmente. A pessoa pode pensar que
você se reabriu para o papo e achar que pode voltar a ele.
“Vamos comer?”, Dana aparece. E cada vez mais eu me apaixono pela
presença conveniente dessa mulher.
Estou em meu quarto. As gêmeas
estão dormindo aqui também. Eu as observo enquanto, sentada em minha cama, fico
repassando em minha mente tudo o que a noite me trouxe. Odeio dizer isso, mas a
presença do meu pai e a felicidade que ele ostenta com suas mulheres me deixa
com um certo nó na garganta. Minhas irmãs estão podendo aproveitar algo que eu
não aproveitei. Elas têm a mãe por perto, e dá para ver que o apoio do pai é
sempre muito presente. Além de ele estar ganhando um salário maior do que
ganhava aqui, está trabalhando menos. No meu tempo de adolescente, que era
quando eu ansiava muito mais pela presença dele, ele trabalhava praticamente o
dia todo, em dois lugares. Lembro-me de ter chegado ao cúmulo de sentir inveja
dos alunos dele. Apesar de ele trabalhar na escola em que eu estudava, eu só via
meu pai nas aulas que ele ministrava na minha turma e, por raras vezes, em
algumas ocasiões muito especiais do colégio.
Quando paro para pensar nisso,
não importa onde eu esteja ou o que eu esteja fazendo, sempre sou contagiada
por uma tristeza muito amarga. E as lágrimas vêm à tona. Eu amo meu pai, e
pode-se dizer que eu sou o tipo de filha cujo primeiro amor foi projetado no
genitor (não num sentido erótico, obviamente), mas eu sei que, por algum
motivo, ele também foi o primeiro homem por quem eu me desapaixonei. E, pelo
que consigo me lembrar, não fui a única a me sentir assim. E nem a primeira. Eu
sei, eu sempre soube: mamãe foi quem
se desapaixonou por ele muito antes de mim. E ao me dar conta de que ela morreu
com essa história mal resolvida, um pouco de mim acaba morrendo também.
E agora, por mais que seja
maravilhoso tê-lo ali, me sinto parcialmente uma intrusa. Alguém que, não
importa quanto tempo passe, ainda continua com as sobras de Marcos Kerber.
Portanto, o que eu teria para fazer em Macapá? Quanto mais longe desse
sentimento pesado, melhor.
Notificação no celular. Mensagem
de Ivan: “Obrigado pela noite. Estou
morrendo de sono agora, mas estou muito ansioso pra gente conversar amanhã.
Espero que você esteja bem. Te adoro!!”
E, no meio da escuridão dos meus
pensamentos, a luz de uma simples mensagem capaz de transformar minha dor em
exultação, de me fazer construir um sorriso carregado de paz. Ivan, você nem
imagina, mas acaba de salvar este momento. Antes que a sensação amarga resolva
voltar, dou a última olhada em Laura e Isabela e, decididamente, me aconchego
na cama para dormir.
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