(Narrado por Sávio)
2 ANOS ANTES
Estou realmente empolgado com
esse empreendimento que Milena e eu demos início. Aqui estou eu dando conta do
meu quinto caso. É impressionante o quanto estamos tendo sucesso com a ANNA
(Agência do Negócio Nada Apaixonante). Esse frisson de ficar espionando as
pessoas, sabendo sobre elas muito mais do que elas imaginam. Na maioria dos
casos, sabendo sobre elas sem elas sequer imaginarem que existimos. Você se
sente uma divindade pairando sobre as diversas vidas que são colocadas diante
de você, pelos motivos mais variados.
E o ganho da experiência me deixa
cada vez mais confiante. Lembro-me que no início eu não era lá essas coisas,
apenas repetia os procedimentos que Milena havia me ensinado. Bem que ela me
avisou que, com a prática, eu mesmo ia desenvolver alguns procedimentos
próprios. Acertou em cheio, Mile.
O cliente da vez é um coroa
ricaço, Nestor Perucci. Ele é um magnata do ramo de supermercados, negócio de
família. Descendente de italianos, ele vive num casarão pomposo, com um vasto
jardim florido e arborizado. É viúvo, mora com os filhos e uma dúzia de
serviçais.
Essa é a beleza do desejo de
desapaixonar-se. Ele é como a morte, iguala a todos. Os assuntos da alma e do
coração nos nivelam quanto à miséria humana, então não importa quão rico ou
pobre você seja, a paixão usa venda na hora de alvejar as pessoas com seus
dardos em chamas. Por sorte, a nossa empresa recém-chegada ao mundo também não
faz distinção de posição social ou poder aquisitivo.
Sr. Perucci parece um homem
bastante soturno. Na ocasião em que nos encontramos, em sua casa (pois ainda
não temos um escritório, sede ou coisa assim), pude ver que as paredes são
decoradas com pinturas de temática sombria. Anjos de negro, donzelas virginais
acompanhadas de demônios, a morte acompanhando pescadores deprimidos num barco
sob a luz fraca da lua. Entre outras coisas bastante assustadoras. Eu tive uma
fase “gótica” na adolescência, mas acabou passando, então esse tipo de coisa
atualmente me traz mais calafrios do que admiração. A beleza é inegável, claro,
mas não vejo mais isso como motivo de celebração.
Sr. Perucci me recebe sentado em
uma cadeira prateada, à beira da varanda. Uma mesinha ao alcance de sua mão tem
um bule que, presumo, deve conter chá. Sei lá, parece que ricos não bebem café.
Aproximo-me por trás, conduzido por uma de suas empregadas. Posso ver uma brisa
que vem e volta, balançando suavemente os poucos cabelos do meu cliente, que
dispensa a empregada sem nem mesmo se dar ao trabalho de virar-se para ela.
“Fique à vontade, Sávio. Sirva-se de um pouco de café”, o velho me
surpreende duas vezes: primeiro que, até hoje, foi o único cliente que se
lembrou do meu nome antes do fim da missão; segundo porque eu estava torcendo
para que houvesse chá no bule. E se fosse chá gelado, ainda por cima, seria
ainda melhor.
“Todo fim de tarde eu me sento aqui, sentindo o vento me tocar no
rosto. Mas quer saber um segredo, Sávio? Não é o vento que me toca. É minha
falecida Esmeralda. Incrível como o toque é igualzinho a como ela me tocava.
Todo fim de tarde meu eterno amor vem e me faz esse carinho.”
Ainda mais essa agora. O Sr.
Perucci se esqueceu de me informar que está com alguma degeneração cerebral.
Agora estou tendo que torcer para que o seu objeto de paixão não seja uma mulher
morta.
“Mas não é pra isso que você está aqui. Certamente deve estar pensando
que eu tenho alguma degeneração cerebral”.
Ok, não dá pra fingir que é muito
estranho ele ter praticamente lido a minha mente. Mas continuemos firmes aqui,
tentando fazer o trabalho.
“Eu estou perdidamente apaixonado por uma mulher mais jovem, meu caro
Sávio”.
Nessa idade, não é algo de se
admirar. Não sendo uma mulher morta, fichinha.
“Qual é o problema, Sr. Perucci? Eu sou a favor do amor entre pessoas
de diferentes idades. Quer dizer, desde que uma das pessoas em questão não seja
uma criança, claro”.
Eu pareço um tonto bancando o
detetive simpático que quer agradar o cliente. A postura do Sr. Perucci
continua impassível, ele não está ligando a mínima para minhas tentativas de
causar uma boa impressão.
“O problema, Sávio, é que você não faz ideia do que essa jovem mulher é
capaz. Você não conhece Maxine”.
Maxine? Definitivamente, não
conheço mesmo. Mas se eu fosse um travesti, usaria esse nome numa boa.
“Deixando de lado o nome exótico que ela tem, preciso que você dê um
jeito nessa situação, Sávio. Esmeralda está quase me matando”.
“Esmeralda? Mas... Esmeralda não é a sua esposa que morreu?”, eu
estou com os pelos do braço bem arrepiados. O cara lê minha mente e ainda por
cima começa a falar da falecida como se ela representasse um problema real.
“Sávio, nós temos um problema bastante real aqui. Esmeralda aceitaria
que eu me envolvesse com qualquer mulher, mas ela se recusa a me ver com
Maxine. Todas as vezes que trouxe Maxine aqui, Esmeralda veio como um vento
impetuoso, quebrou alguns vasos persas e até moveu parte da mobília. Foi
assustador. Mas você sabe como são as mulheres, não?”
“As vivas, sim”.
“Bom, não posso esperar que você enxergue a vida e a morte como eu, mas
a forma como você compreende esses conceitos não significa nada para o fato que
temos diante de nós. Não posso culpá-lo, claro, mas a situação está ficando
insuportável. Eu amei tanto Esmeralda, então é melhor me desapaixonar pela Max
e evitar que os problemas se perdurem aqui em casa”.
É melhor eu entrar no jogo desse
homem, se eu quiser ganhar esse contrato para a ANNA.
“Mas o que a Maxine tem de tão especial que sua mulher, mesmo morta,
não lhe deixe ficar com ela?”
“Ah, a coitada da Maxine...”, Sr. Perucci suspira, e a única coisa
que dá para inferir desse suspiro é que a tal da Max tem algum tipo raro de
câncer. “Ela é uma mulher de 25 anos que
nasceu com a terrível maldição da beleza”.
Estou segurando a vontade de rir
do mesmo jeito que uma dama segura um pum durante um jantar da alta sociedade.
Esse Sr. Perucci é uma figura. Será que muito dinheiro afeta as faculdades
mentais?
“O que o senhor quer dizer com ‘maldição da beleza’?”
“Maxine é extremamente linda, Sávio. Mas isso não é uma bênção. Ela
está presa nesse invólucro desenhado à perfeição, ou seja, o corpo dela. Tudo
nela é encantador. Sua voz é de sereia, seus olhos são penetrantes, rasgam o
coração de qualquer homem. Ela tem cabelos cacheados pretos e longos
emoldurando uma face bronzeada, com um nariz afilado. Seus dentes são
absurdamente simétricos e seu sorriso é um decreto de prisão. Desejada por
homens de todas as posições sociais. Homens já mataram por ela. E alguns até
mesmo se mataram por sua causa”.
“Parece fantástico”, eu digo apenas para não deixá-lo no vácuo. Do
jeito que ele fala, parece estar narrando um conto de terror, desses que se
conta num acampamento, em torno de uma fogueira. Essa Maxine deve ser um
estouro!!
“Maxine e eu estamos nos relacionando há um ano. Meus filhos não a
aprovam muito, mas ainda bem que eu não me importo com isso. Eu só comecei a me
sentir mal quando Esmeralda resolveu interferir. Ela sempre foi temperamental,
sabe. E eu sempre fui mais tranquilo, sempre encerrei nossas discussões dizendo
que ela estava com a razão”.
“Então se o senhor conseguir se desapaixonar pela Maxine, será como
encerrar uma ‘discussão’, a qual sua falecida esposa usa o vento para se
expressar. É isso mesmo?”
“Sim, você entendeu perfeitamente”.
“E onde eu encontro a Maxine?”
“Procure-a no EscortQueens.com”, ele me informa.
Com a testa franzida, estou me
perguntando se eu realmente entendi o que entendi.
“Sim, Maxine trabalha com escort service”, mais uma vez ele lê minha mente (se bem que está difícil alguém não ler agora), usando um termo em
inglês para me explicar que sua querida e irresistível paixão trabalha como
acompanhante, o que não passa de um eufemismo para prostituta. Ok, será que
essa história pode ficar mais estranha?
E aqui estou, longe da casa dos
Perucci, sentado diante do meu computador. Adoraria bater um papo com minha
sócia Milena, para ver a reação dela ao saber que peguei um caso no qual um
velho empresário quer se desapaixonar por uma garota de programa porque teme os
ataques de poltergeist que sua
falecida mulher provoca de vez em quando. Mas me lembro de que ela falou que
hoje estaria com o Enzo, um namorado novo que arranjou.
De qualquer forma, melhor eu me
engajar no novo caso. O site Escort Queens está aberto. Repleto de fotos
daquelas que são chamadas de “acompanhantes de luxo”, com fotos insinuantes,
encabeçados por nomes muito criativos e, digamos assim, vendáveis. Mas as fotos
não entregam muita coisa (se você quiser um material mais ousado, precisa se
cadastrar e pagar uma taxa mensal). Tudo muito profissional e tal. Apesar de a
minha masculinidade estar se deleitando com o catálogo de tantas mulheres
bonitas, meu senso crítico apita para o incontestável fato de que essas moças
estão expostas como produtos, e o catálogo do site poderia muito bem ser sinônimo de cardápio. Existe uma aba que
diz “Modelos”, e você pode selecionar entre as opções “morenas”, “loiras”,
“mulatas” e ―ah, meu Deus!― “ruivas”. Meu profissionalismo é invejável, pois eu
resisto bravamente a clicar nesta última opção, concentrando-me a escolher a
opção “buscar por nome”. Digito Maxine, em seguida pressiono enter e, alguns segundos depois, a
página carrega exibindo o resultado da busca. Uau! É uma bela morena, de fato.
Os cabelos são exatamente como o Sr. Perucci descreveu. Na verdade, todas as características
batem, mas confesso que ele fez uma descrição tão poética e influenciada pela
paixão que eu esperava mais.
Clico no perfil de Maxine, mas só
estão disponíveis quatro fotos onde ela usa uma lingerie rosa, em poses sensuais. Enquanto analiso as imagens e
algumas informações básicas que aparecem (idade, medidas, que tipo de
“serviços” estão inclusos etc.). Como você faz alguém se desapaixonar por uma
prostituta se, teoricamente, este
seria um fato que ajudaria muito você a conseguir isso? E se eu resolvesse me
encontrar com a Max? Sei lá, uma abordagem mais direta, usar como pretexto que
eu preciso de um “atendimento”. Vai que eu descubro algo útil.
Estou num quarto de motel onde
marquei com Maxine. Enquanto ela não chega, estou conferindo as redes sociais
no celular, ao passo que também fico imaginando como deve ser o nome real dela.
Porque estou custando a crer que este seja seu nome verdadeiro.
Alguém bate na porta. Levanto com
um pouco mais de ansiedade do que imaginava. Bom, é a minha primeira vez
solicitando esse tipo de serviço. E já estou decidido a não ter nada com ela.
Já vim para cá com uma desculpa esfarrapada para justificar o fato de que nós
não transaremos.
“Boa noite”, ela diz, enquanto abre um sorriso, parada à porta. “Dominique, não é?”
Pois é, eu havia dado um nome
falso. E o primeiro nome em que eu consegui pensar foi o do meu irmão caçula.
“Isso mesmo. Maxine, certo?”, respondo, e começo a sentir uma
excitação se arrastar por todo meu corpo.
“Exatamente. Mas pode me chamar só de Max”, ela avisa, e as
palavras parecem sair dançando com leveza ao vir de seus lábios. Até a voz é
cuidadosamente modulada para envolver. Não sei onde ela fez o curso de
acompanhantes, mas provavelmente foi a aluna mais brilhante da classe. Para
arrematar, ela dá uma piscadela.
Ela está estonteante, com os
belos cabelos presos num coque, óculos de aro grosso, com um vestido curto sem
ser justo no corpo. Ou seja: ela não chega se entregando. Ela mantém um ar
misterioso, um ser a se descobrir. Enquanto ela adentra o quarto, sou
arrebatado pelo seu perfume. Ela tira os óculos (que eu desconfio que ela só
usa pra dar um charme, o que funcionou muito bem, aliás), dá uma breve olhada
ao redor. Deve estar acostumada a pisar em lugares mais apresentáveis, dado o
fato de ter ricaços como o Sr. Perucci em suas mãos.
Apesar de ser um ano mais velho,
sinto-me um garoto completamente inexperiente. Deveras, as mulheres se
desenvolvem física e psicologicamente muito mais rápido que os homens, mas a
ponto de me deixar com a sensação de que estou de volta aos meus catorze anos,
é porque tem algo de especial nessa mulher.
“E então, Dominique, você falou que queria... conversar”.
Foi o que informei na ligação
prévia que fizera, quando solicitei o serviço. Portanto, eu realmente a estava contratando para me
fazer companhia. Um desperdício, ainda mais quando ela me explicou que não
trabalha com muita roupa, então se despiu sem qualquer sombra de pudor,
deixando apenas o sutiã e a calcinha.
Invento uma balela qualquer,
enquanto Maxine me faz uma massagem extremamente relaxante. Conto a ela o
quanto meu irmão me torra a paciência. Na verdade, acho que entrei de cabeça no
personagem Dominique, pois estou narrando a ela o que eu acho que o meu amado
maninho sofre na minha mão. De toda forma, está dando certo, porque a massagem
é tão confortante que eu apenas viajo no mundo que acabei de criar, e vou
inventando outros traumas, tudo para fingir que eu tinha motivos reais para
conversar com ela.
Suas mãos param, abruptamente. Eu
estou prestes a implorar que ela retome a atividade, mas, embora extasiado,
viro um pouco a cabeça e, pela visão periférica, consigo vê-la segurando uma
faca que brilha tanto que quase me ofusca a vista. Vou virando o corpo todo,
devagar. Estou tão lento que não entendo como é que ela ainda não desferiu nenhum
golpe.
“O que é isso?”, pergunto.
“Você não me conhece, Sávio”, ela replica, num tom solenemente
mórbido.
Eu engulo em seco. Ela sabe meu
nome.
“Por favor, guarde essa faca. Eu posso explicar”.
“Eu não quero explicações”.
Por algum motivo esquisito, eu não
estou conseguindo manter os olhos abertos. É como se o quarto estivesse
excessivamente iluminado. Mas, ainda assim, dá pra ver um brilho intenso no
olhar de Maxine. Ela tem olhos de corvo, e o negro de seus cabelos parecem
penas de graúna. Sinto os meus membros moles e pesados, incapazes de se mover,
como que anestesiados. Por dentro, uma necessidade incessante de escapar.
“O que eu quero, Sávio”, ela aproxima o rosto do meu, mas sem
largar a faca, “é você, e eu quero
agora”.
“Não, Max... Você não entende...”, minha língua parece colada,
preguiçosa demais para articular as palavras.
Max me pega, levanta-me da cama
até uma altura em que é possível manusear meu corpo para que ele fique sentado.
E avança sobre mim, beijando meu pescoço enquanto suas mãos passeiam pelo meu
peito e minhas costas. Estou gostando, mas ainda estou confuso sobre tudo. Se
eu não estivesse tomado por uma inércia inexplicável, estaria obviamente
questionando que loucura é essa de me ameaçar com uma faca. Será que ela curte
umas paradas mais selvagens e eu que não li isso na descrição do seu perfil no site?
“Eu sou a última coisa que você vai ter na vida, Sávio. Desculpe, mas é
tudo por causa da maldição”.
“Oi? Hã... O quê? Mal...dição?”
“Aproveite seus últimos momentos, querido, porque depois... tudo será
apenas escuridão”.
O Sr. Perucci havia mencionado
algo sobre maldição. A maldição da beleza. Essa porcaria sinistra tinha que
fazer sentido bem agora?
Acabei de ter o sonho mais
estranho da minha vida. Maxine percebe que estou sobressaltado, então
interrompe a massagem.
“Algum problema, Dominique?”
Viro-me para ela. Não estou mole,
inerte, tampouco imóvel. Mas com certeza estou confuso. E, pelo olhar dela,
também está.
“O que foi, Dominique? Não está relaxando?”
“Eu...”, hesito, enquanto me refaço do sonho estapafúrdio que acabo
de ter. “Eu relaxei sim. Até demais.”
“Por que está me olhando assim? Parece desconfiado.”
“Não, não... É que... você é muito bonita”.
“Obrigada, meu anjo”, ela agradece, voltando a exibir um sorriso
malicioso, alcançando o creme de massagem que está num criado-mudo ao lado da
cama.
“Mas é melhor pararmos com a massagem”, eu decido. Estou seriamente
traumatizado.
Que grande inútil estou me
saindo. Ainda não descobri nada que possa ajudar o Sr. Perucci a se
desapaixonar por Maxine. Com muito esforço, consegui o número particular do
celular dela. Aparentemente ela gostou de mim, por isso me fez essa gentileza
(o número para o qual liguei para o primeiro encontro é um número
“corporativo”, ou seja, apenas para fins de negócios). O problema é que depois
daquele pesadelo, que pareceu assustadoramente real e palpável, eu tenho tido
alucinações frequentes. E outros sonhos. Não durmo mais com a luz apagada. Tem
noites em que eu durmo ouvindo música, só pra ter um som agradável que me
acompanhe até eu adormecer. Entretanto, acordo alarmado de repente, no meio da
madrugada. Juro que uma vez, num desses despertares, vi um vulto se esgueirando
pela beirada da cama, indo se esconder sob ela. Nessa referida noite, não
preguei os olhos.
Passei a levar em consideração a
chance de Maxine ser uma mulher amaldiçoada, por mais ridículo que isso soe. E
ando com medo do que quer que esteja responsável por trazer desgraça aos homens
que se envolvem com ela. Concluo, após algumas ponderações, que não é a
falecida Esmeralda que está descontente com o romance entre o marido e a garota
de programa. Se outros homens morreram e mataram por Maxine, então existe uma
entidade por trás de tudo isso, e é essa mesma entidade que está tocando o
terror na mansão do Sr. Perucci.
Esse tipo de coisa faz minha
espinha gelar. Ando paranoico. Como uma mulher pode causar isso a alguém?
Dirijo o mais veloz que posso
para a casa do Sr. Perucci. Ele me ligou desesperado. Falou que precisava muito
falar comigo e que era urgente, caso
de vida ou morte. Nas palavras dele, “mais de morte do que de vida”. Por que eu
aceitei esse caso? Desde o princípio essa história de disputa entre a “mulher
amaldiçoada” e a “mulher fantasma” causa comichão aos meus ouvidos. Na certa
que vou ter de usar medicamentos tarja-preta depois dessa.
A empregada me leva até o
escritório do patrão. Estranhamente, ele não está tomando seu café na varanda,
como de costume no fim de tarde. A casa está toda revirada. Poltronas de
ponta-cabeça, estilhaços de vidro espalhados pelo assoalho, cortinas
arrancadas, marcas de arranhão nas paredes. O ar está carregado. Acho que
aquilo que eu acredito estar causando mal aos amantes de Maxine andou por aqui,
muito enfurecido, por sinal. Espero que ele só selecione homens que de fato se deitaram com ela, porque aí
eu poderia sair ileso de sua vingança maligna sobrenatural.
“Sávio, você finalmente conseguiu alguma coisa?”, Sr. Perucci toca
em meus ombros; este homem está visivelmente abatido, e não sei se estou
falando com ele ou com o seu medo.
Estou sem jeito de admitir que o
trabalho está sendo um fracasso. Maxine realmente tem a maldição da beleza, mas
com isso quero dizer que ela tem a maldição de não ser desapaixonante. Ela
carrega consigo algum tipo de proteção antidesapaixonamento. E eu não faço
ideia do que isso signifique, porque no momento estou ocupado me entalando com
meu orgulho ferido por não ter alcançado sucesso.
“Sr. Perucci, me desculpe, mas...”
“O quê?? Desculpar você?? Então você está me dizendo que eu não vou me
desapaixonar da Maxine?”
“Sr. Perucci, olha, talvez o senhor não tenha necessariamente que se
desapaixonar. Por que o senhor simplesmente não corta o contato com ela? Não
sei, acho que o senhor poderia se mudar. Quem sabe com o tempo...”
“Você se drogou antes de vir pra cá, Sávio? Você não se livra de Maxine
assim!! Por mais que eu me afaste dela, a maldição seguirá comigo, impregnada
nos meus sonhos, aonde quer que eu vá. O desapaixonamento é a única coisa que
pode quebrar o vínculo. Você precisa voltar lá e terminar o que começou”.
“Sinto muito, Sr. Perucci, eu não vou poder continuar”.
“Eu pago o dobro, filho. Por favor”, ele suplica, e lágrimas
começam a se formar em seus olhos. “Olhe
ao seu redor. Está tudo uma bagunça aqui. Eu estou em desespero. Isso tem que
parar, Sávio. Isso precisa parar. Posso contar com você?”
Eu hesito, respiro fundo. Tudo o
que quero é fugir.
“ABAIXE-SE!!”, o Sr. Perucci grita, e me puxa para baixo num só
ímpeto, tanto que caímos juntos. Um dos quadros que enfeitam as paredes do
escritório voou contra mim, ia me acertar em cheio na cabeça, mas atingiu umas
garrafas de vinho e outras bebidas que não consigo distinguir, fazendo-as se
espatifar no chão.
As janelas se abrem e, logo em
seguida, fecham-se. Segue-se assim freneticamente, e o vento que vem de fora é
violento, forte, desafiador, como se quisesse espancar a casa inteira.
“Está vendo? Você precisa me ajudar”, apela o Sr. Perucci, querendo
que eu entenda aquilo como um ultimato.
Era só o que me faltava. Estar
bem no meio de uma rixa com um espírito do mal.
DIAS ATUAIS
“Devo reconhecer que dessa vez você foi bastante criativo nos seus
relatos, Sávio. Você incluiu elementos que não existiam da outra vez”, diz
a doutora Márcia, minha psicanalista.
Ela possui vasos de estilo chinês
espalhados pela sua sala. Fotos de família sobre sua escrivaninha. Sua caçula
ainda é um bebê, e tem os olhinhos apertados num rosto risonho e contemplativo.
Eis uma boa palavra: contemplativo. É como estou, depois desses relatos.
“A minha opinião hoje vai ser um pouquinho diferente”, ela anuncia,
pacientemente esperando que eu desperte inteiramente do transe.
“Pode mandar, doutora”.
“Esse Caso Maxine ainda te persegue, certo? Você não consegue se livrar
da culpa do fracasso, não é mesmo?”
“A senhora que é a doutora. É a senhora quem deve dizer”.
“Sendo bem sincera, eu acho que você deveria contar pra Milena sobre
esse caso. Só assim vai parar de ter pesadelos com essa história. Tudo isso é
reflexo da culpa que você sente por ter perdido o caso, Sávio. Claro, deve
haver algumas consequências, mas já que vocês são grandes amigos, ela vai te
perdoar. E eu tenho certeza que, depois de você contar tudo, os pesadelos e a
sensação de culpa vão sumir pra sempre”.
Eu não consigo me convencer. Não
tenho a mínima coragem de abrir o jogo com a Mile.
“Mas como é que eu vou explicar que peguei o caso do Sr. Perucci dois
anos atrás, pra ele se desapaixonar da Maxine, e quando eu tava quase
conseguindo, ele cancelou tudo?”
“É isso mesmo que te impede de contar?”
“A senhora sabe o real motivo”.
“Sim, o Sr. Perucci resolveu cancelar o contrato porque encontrou uma
agência que poderia conquistar Maxine,
e que garantiu que ela seria dele e somente dele. Uma tal agência que também
tem nome de mulher...”
“AMANDA”, eu menciono o maldito nome, que parece ácido na minha
língua. “Nós perdemos um caso de
desapaixonamento porque o cliente descobriu que a AMANDA podia fazer a garota
gostar dele. Então eu fui lá e cancelei o relatório que tava fazendo, bem como
o contrato. É como se o Caso Maxine nunca tivesse acontecido, porque eu não o
registrei. E até hoje a Milena nem sabe que um dia esse caso existiu”.
“Você mentiu pra Milena. Mas esconder a verdade não é mais leve do que
revelá-la”.
“Eu conheço a Milena”, defendo-me. “Se ela soubesse que tínhamos acabado de abrir um negócio e que já
havia uma agência capaz de roubar nossos casos, ela ficaria muito frustrada e
provavelmente desistiria da ANNA. Doutora Márcia, isso já faz dois anos. O
problema de não ter contado naquela época está maior agora, e a coragem de
contar está bem menor do que antes”.
“Sávio, você está disposto a ficar sofrendo carregando a culpa, que te
faz sonhar com a Maxine e fantasmas vingativos?”
“Não”, admito. “Mas eu tenho
muito mais medo de ver minha amizade com Milena afetada do que a Maxine
querendo me matar num quarto de motel, o que é muito mais fácil de lidar”.
“Tudo bem. Qualquer coisa, marcamos outra sessão para conversarmos
sobre isso de novo”.
“Não vai ser preciso, Dra. Márcia. Sem ofensa, mas essa é a última vez
que eu volto”.
Ela sorri sem mostrar os dentes,
assentindo. No fundo, já sabia da minha decisão. Estou indo embora. Não há nada
de errado com a minha psicanalista. Está tudo exposto. Dá para ver que a única
pessoa carregando algum problema aqui sou eu. Embora eu mesmo admita que eu
deveria ser honesto e 100% transparente sobre tudo que diz respeito à minha
parte no trabalho na ANNA, há um lampejo de consolação em meu coração que me
tranquiliza, uma voz que sussurra no fundo da minha alma, dizendo: você fez a
coisa certa, Sávio.
Mas é aí que o bicho
pega: fiz mesmo?
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