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13 de setembro de 2015

DESAPAIXONANTE --- EPISÓDIO 2x03: BICHA MÁ



(Narrado por Sávio)

Eu estava usando um terno preto, camisa branca e gravata cor-de-vinho, sentado a uma mesa redonda de mármore, enorme, com um prato vazio à minha frente, provavelmente esperando para ser servido. Dava a entender que eu seria o anfitrião e, dali a pouco, teria mais alguns convidados, pelo fato de haver outros pratos e cadeiras vazios. De algum lugar, como que do nada, elas começaram a surgir, cada uma prestes a tomar seu assento, caminhando graciosas, elegantes e extremamente belas. Sophie Turner, Carice Van Houten, Marina Ruy Barbosa, Jessica Chastain, Isla Fisher… E o time ainda não estava completo. Juntaram-se a nós também Scarlet Johanson, com a coloração usada na franquia Os Vingadores, obviamente. Até Jessica Rabbit resolveu dar o ar da graça, apesar de sua presença ser uma bizarrice incontestável. Nesse momento, torci para que a princesa Merida não fosse a próxima figura inusitada de desenho animado do meu célebre jantar.
Eu tinha a atenção de todas. Qualquer asneira que eu pronunciasse as deixava fascinadas, risonhas, captas em meu insuperável charme. Até que uma última, marchando elegantemente como a convidada especial da noite, veio até à mesa e conseguiu que Sophie Turner lhe cedesse o lugar. Mas, ao contrário das demais, eu não podia ver o rosto da recém-chegada. Era uma espécie de borrão, e seus cabelos ruivos eram a única coisa que me alentava a respeito de sua identidade. Seus gestos não me eram estranhos, seus maneirismos continuavam os mesmos... Sem dúvida, era Anna. Anna Munhoz. A mulher que me transformou no Sávio que sou hoje. Reunida às minhas ruivas favoritas, mas por algum motivo encabeçando o movimento.
E aí, graças a Deus, soou o alarme, estridente. Estava livre daquele sonho tão gostoso quanto perturbador.


Hoje tem um cliente novo para conhecer. Para ser sincero, gostaria que hoje fosse um dia mais tranquilo, com simples relatórios para fazer ou quaisquer trabalhos que me permitissem deixar a cabeça folgada. Não estou no clima para lidar com clientes, e me parece que o cidadão que conhecerei hoje é um sujeito meio inconveniente. Sei lá, saquei um pouco isso apenas pelo e-mail preliminar que ele enviou.
Desde a volta de Anna, alguma coisa ficou abalada na minha estrutura emocional e mental. Tenho tido alguns sonhos em que ela aparece, mesmo que seja apenas como um vulto, por míseros segundos. Milena ficou um pouco estranha desde o ocorrido porque, afinal, ela me conhece melhor que todo mundo, e percebeu que esse fato deu uma desestabilizada em mim. Mas a estranheza de Milena deve dizer respeito a uma sensação de frustração pois, se eu estava me sentindo inquieto com a volta de Anna, de algum modo minha parceira também foi atingida, já que foi ela quem me ajudou a pôr um fim ao furacão que Anna causara em minha vida. Todo mundo sabe, eu fui o “experimento que deu certo” dentro das técnicas de desapaixonamento aplicadas pela Mile. E ela deve estar achando que, após todos esses anos, tudo não passou de fracasso.
Claro que eu não quero que ela pense nisso, porque a minha paixão pela Anna morreu definitivamente, está enterrada e seus ossos por certo já viraram farinha para minhocas. O problema aqui, na realidade, foi eu ter alimentado o desamor, em vez de trabalhar para esquecê-lo. Uma dica para a vida: não alimentar o desamor, mas dedicar-se a esquecê-lo, aí você não terá sonhos frequentes e esquisitos. Olhando por esse lado, começo a considerar que teria sido melhor que a princesa Merida, de Valente, tivesse aparecido no sonho com as ruivas múltiplas.
Mas o que estou fazendo? Eu afirmei categoricamente que minha paixão por Anna fora enterrada, certo? Então por que parece que existe um furo nessa honestidade tão ferrenha? O quanto eu sei sobre paixão a ponto de garantir que todos os meus sentimentos por Anna, de fato, foram embora de vez? Faz um bom tempo que eu domino conhecimentos sobre a “despaixão”, portanto posso muito bem ter desaprendido todos os conceitos envolvidos no gostar de alguém. Logo, melhor ficar temporariamente de boca fechada.


O nome do meu cliente do dia é Caio. Vai adentrando minha sala mascando irritantemente um chiclete, com um sorriso malandro no rosto. Gordinho, bochechas proeminentes, faz o tipão sacana-mas-que-saberia-ser-sensível-na-hora-certa. Aparenta pelo menos uns 5 anos a mais do que me disse que tinha (sua idade é 26, se não me engano). Já está com um nível avançado de calvície para alguém mais novo que eu. Bom, é meio penoso descrever um homem sem pender mais para uma abordagem negativa, e acho que inconscientemente competitiva. Homens, em geral, são mesmo uns babacas. Estou incluso.
Converso com Caio, peço para ele esclarecer alguns pontos do e-mail enviado há alguns dias. Para minha surpresa (e um pouco de nojo?) ele não se desfaz do chiclete que está mascando, mas abre outro para se juntar ao que já tem na boca. Não é que eu esteja com nojo, mas a forma como ele executa a tarefa dá um ar desagradável à visão da situação. Mas enfim...
“Então você está querendo se desapaixonar pela Dayane, sua antiga paixão de adolescência? Você sabe que pode ser difícil, né?”
“É, eu sei. Eu já tive diversos motivos pra isso, mas não consigo esquecer a Dayane”, afirma ele, em seguida fazendo uma bola com o chiclete e estourando-a. Um pedacinho gruda perto do queixo, aí ele passa a língua pra remover e... Bem, faço o meu melhor para memorizar aquela imagem e talvez ter pesadelos com isso, só para evitar os sonhos com a Anna. Pelo nível de apelação, dá para notar que a coisa tá feia.
“Vocês já tiveram algum relacionamento?”, eu me mantenho profissional e forçando uma indiferença quanto ao ato de mascar do meu cliente.
Caio franze a testa, estreita os olhos, numa típica feição de quem está puxando algo da memória. Não entendo. Como alguém não lembraria imediatamente se tivesse namorado ou ficado com uma eterna paixão de adolescência?
“A gente se beijou uma vez no aniversário de uma amiga, e depois umas duas vezes numa festa, e mais uma no enterro de um tio dela, mas eu não gosto muito de contar essa vez porque tava na cara que ela tava triste, entendeu? Poderia ter beijado qualquer um...”
O sujeito não dispensou nem o luto da moça. Mas, para uma pessoa que não consegue dizer um simples número como resposta (“nós ficamos 4 vezes”), nada me surpreenderia. Entretanto, nada está me incomodando mais do que alguns olhares demorados que ele me lança volta e meia. Pode estar me analisando. Pode ter dificuldade em desviar os olhos. Pode ser um psicopata inventando uma mentira sobre querer os serviços da agência e só está na contagem regressiva para me liquidar aqui mesmo.
“Eu vou te passar o formulário e o contrato, ok? Vai mesmo fechar conosco?”
“Vou, vou sim”, ele assente, com a porcaria do olhar maníaco me deixando congelado. E outra bola de chiclete nasce tão instantaneamente quanto morre, menos de dois segundos depois. Nenhum pedacinho grudou dessa vez.
“Algum problema, Caio?”, dane-se a discrição profissional. Preciso saber o que esse camarada tá querendo. E uma injeção de adrenalina corre pelo meu corpo.
“Você estudou no Santo Cristo?”, finalmente o mistério tem nome. Ele deve me conhecer da época de escola.
O mesmo canal por onde correu a injeção de adrenalina agora recebe uma carga quase dobrada de alívio. E de surpresa também.
“Sim, eu estudei lá. Praticamente a vida inteira. Você me conhece de lá?”
“Acho que você estudou com meu irmão mais velho, o Carlos. Você parece ter a mesma idade dele.”
Caio fala da minha idade como se ele fosse garoto-propaganda de algum creme anti-idade. Mas é claro que, no meu sorriso, não deixo nada disso transparecer.
“Carlos, Carlos... O que tinha o apelido de ‘Parente’?”
“Esse mesmo”, Caio começa a rir, e ambos compartilhamos agora uma cumplicidade estranha, tanto que eu rio também. O irmão dele, Carlos, foi “gentilmente” apelidado pela galera na oitava série porque mentia muito sobre ser parente de praticamente todo mundo da cidade. Velhos e maravilhosos tempos. Muitos episódios começam a vir à minha mente, com a participação de Carlos e muitos outros amigos da época. Saudades eternas.
“Que legal, Caio!! Mas olha, não vou mentir, eu não lembro de você”.
“Eu sei. Eu só lembro de você por causa do Carlos mesmo”, de repente ele se detém, faz de novo a cara de quem está lembrando de alguma coisa. Seu rosto se ilumina, e então ele, com a boca semiaberta, aponta o dedo para mim e exclama: “Ei! Você tava naquela peça, não tava? Uma que tinha duas bichas. Você era a bicha má! Era você!”
Meu.Deus.Do.Céu. Sou invadido pelo choque da vergonha eterna, um baque certeiro na central das minhas memórias. Uma mancha no meu passado da qual nunca mais eu havia ouvido ninguém falar, nem mesmo por parte de Milena. O mico dos micos que me estigmatizou durante todo o ano de 2002, na escola Santo Cristo. E que eu, ingenuamente, havia topado fazer apenas por amor à arte.
Caio está rindo igual a um porco que chafurda em milhares de hectares de lama. Ele não está acreditando que reencontrou o idiota que interpretou o papel da “bicha má” na droga de uma peça escolar, em busca de uma pontuação na matéria de Literatura. Tudo fora ideia de um outro amigo meu, o Come-Diabo (o nome verdadeiro era Diógenes, mas você sabe, os apelidos não perdoam a posteridade), em que nós adaptamos um texto do qual não me recordo agora, incluindo elementos mais contemporâneos, e naquela época o Come-Diabo já tinha essas manhas de querer ser engraçado às custas de temas sociais, e aí ele criou as personagens das bichas, a boa e a má, e eu fui incumbido de ser aquela que pertencia ao lado negro da força. Na época, aceitei porque enxerguei alguma utilidade ao tentar ensinar sobre o tal texto literário e passar uma mensagem de antipreconceito para as pessoas, mas a ingenuidade insistia em andar de mãos dadas comigo. Não tenho o mínimo orgulho dessa peça, pois NINGUÉM prestou atenção em nada além das nossas interpretações afetadas e nosso figurino exageradamente escandaloso, o que, num ambiente escolar cheio de adolescentes, era prato cheio para zoar alguém para o resto da vida. A história estava morta, mas aí está Caio desenterrando o esqueleto.
“Cara, aquela minissaia rosa colada na tua bunda era o máximo, e as suas pernas eram só dois cambitos e...”, mais risada. Vai rindo, infeliz.
Porém, preciso admitir dois golpes de sorte: o apelido “bicha má” não pegou e naquele tempo não havia celulares com câmera. Do contrário, a minissaia rosa extremamente justa estaria me assombrando até hoje.
E o pimpão do Caio ainda ri. É, eu estava certo. Ele é mesmo muito sacana.


A tal da Dayane está noiva, mas isso não é motivo suficiente para Caio tomar a iniciativa de esquecê-la. Dois erros básicos que a paixão o fez cometer: insistir em alimentar um amor que nunca vai se consumar (beijinhos e ficadas durante enterros não podem ser considerados); e pagar para a ANNA entrar em ação, quando ele mesmo poderia tomar uma atitude e se mancar de que aquela menina agora não passava de um sonho. Assim, economizaria uma grana. Sobre paixões que duram tempo demais, uma consideração: se você tem plena consciência de que o sentimento só existe do seu lado, melhor é que não haja troca de beijos e muito menos sexo, pois as chances de se criar um monstro faminto por mais são incrivelmente grandes. É o caso de Caio. Depois que ele saiu da minha sala naquele dia, mesmo estando irritado por ele ter ressuscitado o episódio da bicha má, fiquei com certa pena dele. Nada mata tanto quanto um amor não resolvido, que respira com toda a vida pulsante.
Um dos mandamentos da ANNA diz que não devemos pegar casos para ajudar amigos, mas tecnicamente eu não sou amigo de Caio, apenas de seu irmão (com quem na verdade não troco uma palavra há muitos anos). Logo, nada me impede de permanecer atendendo-o em sua busca desesperada por conseguir perder a paixão por Dayane.
Por falar nela, estou espionando-a enquanto ela passeia com umas amigas numa floricultura. É, pelo visto as surpresas só estão começando. Eu não havia ligado o nome à pessoa, mas essa Dayane é uma garota com quem eu já fiquei, ainda nos tempos do Santo Cristo. Se eu tivesse sabido disso antes, poderia revidar a fanfarronice de Caio dias atrás. E o meu rolo com ela durou mais de um mês. Foram muito mais de quatro beijos. Devo assinalar também que uma das ocasiões em que ficamos foi num corredor de hospital, quando fui lhe fazer um pouco de companhia enquanto ela servia de acompanhante para um tio que estava internado e... Peraí! Um tio internado? Lembro-me que dias depois ele foi a óbito. Caramba, é o mesmo tio em cujo enterro ela trocou um beijo com Caio. É, certamente essa moça tinha umas preferências bem peculiares quanto aos momentos em que se deixava dominar pela vulnerabilidade. Além de não ter um pingo de restrições amorosas quanto a quem ou com quantos ficar ao mesmo tempo (tá, quase ao mesmo tempo).
Apanho o celular no bolso da calça, digito uma mensagem no WhatsApp para Milena, compartilhando com ela as últimas novidades. Ela me retorna com alguns emojis sorridentes, esclarece que vai se ocupar (sairá com um cara que ela conheceu há algumas semanas, um tal de Ivan), então me conformo com minha investigação solitária. Deixo o celular sobre o colo, para o caso de precisar fotografar algo suspeito ou interessante.
A aparição de Caio e, agora, o reconhecimento de quem é Dayane, me deixam nostálgico. Começo a reviver momentos hilários que tive no Santo Cristo, onde estudei desde a quinta série até o fim do ensino médio. Testemunhei, por exemplo, o dia em que Diógenes ganhou o apelido de “Come-diabo”. Foi durante o intervalo, quando um dos nossos amigos, após pegar um prato com macarronada, aparentemente se arrependera depois da primeira garfada. Sem paciência alguma para as frescuras do rapaz, Diógenes esbravejou em alto e bom som, para o refeitório inteiro escutar: “Vê se larga de ser chato e come, diabo!”
Eu cheguei a ir lá há alguns anos. Continua uma escola com um belo aspecto, atrativa, espaçosa, amistosa, mas com uma atmosfera absurdamente sem graça. É clichê afirmar que na minha época era muito melhor, mas talvez eu não esteja apenas puxando a sardinha pro meu lado. Talvez o excesso de tecnologia atualmente tenha matado um pouco a celebração do calor humano, do constante olho no olho, da proximidade real, das conexões humanas em vez das conexões virtuais... Cada geração tem o ambiente escolar que merece. Talvez os estudantes atuais estejam felizes com a rotina, e futuramente critiquem a próxima geração que for frequentar aquele espaço, como eu estou criticando a de hoje.
Credo, que aperto no coração é esse? Um nó na garganta. É o bicho corrosivo da saudade. Melhor tentar direcionar os pensamentos para outra coisa. Mas como, se o objeto de paixão do meu cliente atual é justamente uma peça do meu passado?
Baseado nisso, me vem a ideia de que talvez eu não precise de muito para convencer Caio a finalmente abandonar sua eterna paixão. Dou partida no carro e vou embora. Acho que já tenho a solução para o caso.


“Confesso que eu tô nervoso, Sávio. Tô até com medo do que você descobriu”.
“Na verdade, Caio, eu não descobri. A verdade sempre existiu, mas foi preciso você me reencontrar pra eu poder te contar”.
“Não entendi. Você não tava investigando? Então se já sabia, por que foi investigar?”
“Simples. Eu não sabia que se tratava de uma mesma Dayane que, por sinal, também conhecia da época da escola.”
Caio me olha desconfiado, e seu indefectível e soberanamente presente chiclete o deixa movimentando o maxilar um tanto nervosamente. E, claro, irritantemente. Quantos “mentes” num mesmo parágrafo!
“Não sei quanta importância você dá pra isso, Caio, mas... Eu fui um dos caras que ficou com a sua querida Dayane.”
Ele dá de ombros. Ok, normal, qual é o mal na garota ter ficado com outras pessoas?
“Pois é, continuando... Antes de eu ir investigar, eu não sabia quem era ela. Mas então lembrei de várias coisas a seu respeito e... Bem, a verdade é que sua paixão de adolescência foi uma das meninas mais rodadas do colégio.”
“O quê? A Dayane?”, ele parece pronto a protestar.
De fato, eu poderia ter pensado em palavras melhores para a ocasião.
“É. E aqui vai outro motivo pra eu não ter lembrado imediatamente dela. Assim como muitos na escola, ela também tinha um apelido. Casa de Praia.”
“Como é que é? Casa de praia?”
“Sim”, sinto-me muito envergonhado, porque na época houve até uma votação para escolher um apelido para o comportamento de “amor livre” de Dayane. Lembro que deu empate entre “Casa de praia” e “Feriadão”. E eu desempatei ao escolher a primeira opção. O significado de “Feriadão” era de que “todo mundo aproveita, mas dura pouco”. Meu Deus, como éramos crápulas!
“Por que Casa de praia?”, Caio começa a se indignar, na certa porque já presume que não vem coisa boa por aí.
“Você não vai querer saber o significado, cara...”
“POR QUE CASA DE PRAIA, VELHO?”
Dá pra perceber nitidamente seu rosto se transfigurando em algo violento, a pele ficando vermelha de raiva. Parece que só agora ele está se dando conta de que todos seus sentimentos foram baseados numa ideia frágil sobre quem Dayane era e o que fazia.
“Porque é ideal para dar uma relaxada, mas não para fixar moradia. É isso”.
Caio desmorona, emocionalmente. Os ombros estão encolhidos e o semblante cai como um castelo de areia.
“Dar uma relaxada?”, ele repete, temendo a própria interpretação para aquilo.
“É, tipo... Aproveitar por um tempo, curtir um pouco... A Dayane ficou com vários caras da escola, Caio. Inclusive...”, eu paro, abro uma gaveta e pego uma folha que imprimi na noite anterior.
“O que é isso?”, indaga ele.
“É um arquivo de uma comunidade do Orkut. Foi uma comunidade que um amigo meu fez. Dá uma olhada.”
Caio encara a folha de papel boquiaberto. É de uma comunidade da outrora rede social que bombava, Orkut, chamada “Eu peguei Dayane Couto”. Há uma foto da moça e, na contagem de membros, a comunidade chegou a ter 23 pessoas. Incluindo duas garotas.
“Cara! Que bizarro! Se ela ficou com tanta gente na escola assim, como é que eu não fiquei sabendo disso?”
“Ás vezes a gente gosta tanto de uma pessoa que fica cego, Caio. Ou surdo”, dou a melhor resposta que consigo pensar, e me dou conta que é aquela na qual acredito. “No caso da comunidade do Orkut, ela só foi criada em 2005”.
“Quem era o administrador dessa comunidade?”
“Era um amigo meu, o André Monte.”
“O Quarta-Feira?”, Caio lembra-se de outro célebre apelido daquela época. No caso de André, ele ficou famoso com essa alcunha por conta da enorme quantidade de faltas que teve ao longo de 2003. Porém, ele jamais faltava às quartas, dia em que tínhamos aula de Educação Física.
“Não acredito nisso. É horrível, Sávio”.
“Pois é... Eu imagino como você deve estar se sentindo. Eu sei que não é necessariamente um bom motivo para se desapaixonar por alguém, mas isso vai deixar você bastante pensativo por um tempo, porque investiu tanto sentimento por alguém que mal tinha consideração por você.”
“Eu tô indignado, você tá entendendo?”, diz ele com o olhar fixo no papel que lhe entreguei, seus dedos trêmulos numa fúria crescente. “Por que o Quarta-Feira não me colocou nessa comunidade? Caramba, a gente jogou bola tantas vezes juntos. Eu pensei que ele fosse parceiro. Mas me deixou de fora, aquele sacana!”
Caio continua encarando a folha por mais um longo minuto, meneando a cabeça negativamente. Deve estar se sentindo apenas um número na lista que Dayane cultivou de pegações do ensino médio. Algum dia, com certeza, se sentiu especial, único. Agora descobre que fizera parte de um grupo sem nem mesmo ter tido participação “oficialmente reconhecida”. Cadê aquele gorducho que se acabou de gargalhar da minha bicha má?


Após o pagamento e já pronto para partir da sede da agência, Caio se recorda de algo e me repassa um recado:
“Eu falei pro meu irmão sobre você. Ele ficou muito empolgado, porque vai rolar uma festa com a galera da época do ensino médio lá na casa dele, um reencontro. Mandou te convidar.”
“Sério?”
“Sério. Anota o número dele aí e liga depois.”
Anoto o número que ele me repassa, ao mesmo tempo em que uma onda de empolgação e aquele aperto que senti no peito durante a investigação de Dayane me vêm em chibatadas. Então quer dizer que terei a chance de rever todo aquele povo que me proporcionou três anos muito felizes, inesquecíveis e marcantes? Num flash, me vem a imagem de Anna e a possibilidade de reencontrá-la. Estremeço. Mas logo me lembro que nunca estudamos na mesma turma, então sem chance de ela ser convidada. Volto a me excitar com a ideia do reencontro.
“Valeu pelo trabalho, Sávio. Falou, bicha má”, Caio se despede, trazendo à tona aquela maldita recordação pela última vez, talvez para compensar sua presente decepção.
Mas eu, dessa vez, nem dou a mínima. Apenas uma coisa está disparando em minha mente: mal posso esperar para contar a Milena a respeito da festa.



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