(Narrado por Sávio)
Como se não bastasse toda a
poluição sonora que permeia o ambiente do festival de música em Goiânia, ainda
temos que lidar, Milena e eu, com um turbilhão de perguntas que só faz se
multiplicar em nossas mentes. Primeiro, por que raios até poucos dias atrás
Julinho Cowboy era um ídolo existente
e do nada virou fumaça, literalmente uma lenda? E como alguém se torna ninguém
do dia pra noite? Ou melhor, como um cantor sertanejo cheio de fãs Brasil afora
se transforma em outro produto musical e ninguém parece se importar ou sequer
perceber? O pior: como tem gente que jura que esse mesmo cantor sertanejo nem
existe, como fez o gerente da gravadora? É coisa demais pra mim, eu não sabia
que a indústria musical era tão cheia de truques e “gambiarras”. Mas daí me
lembro que eles são apenas mais uma forma de comércio e precisam manter os
sentidos atentos para onde sopra o vento dos lucros.
“Agora eu entendo por que o gerente da gravadora disse que o Julinho
Cowboy nunca existiu. É só um golpe de marketing, ele entrou no espírito da coisa pra promover o ‘novo artista’ MC
Camufla”, conclui Milena.
“E tudo que eu quero entender é: por que alguém faz isso? Tipo, se o
cara já tinha uma carreira sólida e tava ganhando dinheiro e tudo mais, qual o
motivo de se tornar outro artista?”
“Sei lá, vai ver que eles quiseram seguir a febre do momento. O funk ostentação faz muito sucesso com os
adolescentes, né? E os MCs famosos faturam muito dinheiro.”
“A gente precisa pegar esse tal de MC Camufla. Ou melhor, Julinho
Cowboy. Quer dizer... Ah, caramba, seja lá qual for o nome desse maluco. A
gente não pode ir embora sem bater um belo papo com ele.”
“O que você tem em mente?”
Levamos mais tempo para
decidirmos fingir que éramos da organização do festival do que para burlar a
segurança do camarim do MC Camufla. Estou me sentindo um pouco mal por agir de
má-fé com os caras que nós enganamos, mas trabalho é trabalho.
“Aí, parceiro, quando é que vão trazer os churros que eu pedi? Pô,
parça, já tô ficando bolado com isso”, disse o MC Camufla, sentado diante
do espelho admirando-se tal qual Narciso quando descobriu que era lindo. A
diferença é que MC Camufla não era Narciso. E muito menos Narciso era comedor de churros.
“Incorporou bem o personagem funkeiro, hein, meu amigo”, Milena já
chega determinada a parar com a palhaçada. E eu vou junto, claro:
“Não precisa bancar esse papel pra gente... Julinho Cowboy!”
“Que parada é essa aí, mermão?”, o cascateiro continua insistindo,
apesar de suas pálpebras estarem sutilmente trêmulas. “Que história é essa de Julinho Cowboy? Não tô ligado nessa parada não.
Aqui é Camufla, tá ligado, parça?”
“Meu nome não é parça. Meu nome é Sávio e essa aqui é minha sócia Milena.
Não precisa mentir, a gente sabe quem você é. A gente só quer conversar.”
“Tenho que tirar o chapéu pro cara, Sávio. Ele é bom. Adotou os
maneirismos dos funkeiros e gírias, olha aí”, Milena ressalta em voz alta
mesmo, como se ele não estivesse ali.
“Vou chamar os seguranças, morô?”
“Morô?!”, repito eu, com uma sobrancelha levemente arqueada. “Que tipo de pessoa com menos de 30 anos
fala ‘morô’?”
Ele faz menção de ir em direção à
porta, mas Milena se coloca na frente dele, encarando-o. Eu me aproximo e
seguro o pôster do Julinho Cowboy (um pouco amassado, mas tudo bem) diante das
fuças do MC Camufla. Veja bem, na dada circunstância, é como segurar um
espelho.
“Julinho, a gente não é da imprensa. Não estamos aqui pra arrancar a
verdade de você e depois divulgar na Internet. O caso é que a gente precisa de
ajuda, mas pra isso seria bom se você pudesse parar de bancar o cantor de funk e conversar normalmente”, explico a
situação.
“Também não somos policiais. Pode confiar na gente, só precisamos de
uns esclarecimentos.”
Mc Camufla/Julinho Cowboy nos
encara com a expressão furiosa no olhar, mas que vai cedendo para um semblante
menos tenso. Ele engole em seco. Seus olhos denunciam que sabe que está
encurralado e que a verdade o cercou. Então se rende:
“É, vocês me pegaram”, ele agora fala com um sotaque difícil de
identificar, pois quando entramos ele forçou algo entre paulistano e carioca,
uma falha tremenda para quem quer construir um personagem e ser convincente. Construir uma boa mentira é uma empreitada
arquitetônica delicada.
Sentado, ele abandona os maneirismos
de cantor de funk e aparenta ser um mero homem fantasiado de MC. Aliás,
reparando bem, ele realmente parece muito mais um homem do que um garoto (já
que, segundo Milena, os artistas do funk
ostentação são todos bem novos... Acho estranho Milena saber tantas informações
sobre esse universo, mas não posso perder tempo com isso agora, o foco é outro).
“Quer saber, cara? Eu cansei de resistir. Não me importa se vocês são
da polícia ou da imprensa. Se fosse em outros tempos, eu teria morrido
defendendo que sou MC Camufla.”
Ele abre uma garrafa de whisky (cantor de funk bebe whisky?
Milena deve saber...), faz um gesto nos oferecendo, nós recusamos. Milena toma
a palavra:
“Por que até um dia desses você era um cantor sertanejo e agora se
transformou em um cantor de funk? E
fazendo parecer que o artista sertanejo nunca existiu?”
“Por causa da grana, né? O funk
ostentação é o meio mais rápido de se ganhar dinheiro na música popular hoje em
dia. Julinho Cowboy ia cair no esquecimento logo, logo, então a gente sempre
toma uma providência antes que isso aconteça.”
“A gente? Você quer dizer você e o pessoal da gravadora?”, indaga
Milena.
“Das gravadoras, na verdade”, ele responde bastante irritado, e
quando pensamos em pedir que ele explique melhor, o malandro é mais rápido e
pergunta: “Afinal, o que é que vocês
querem?”
“Muito bem, Julinho, é que...”
“Meu nome não é Julinho. Esse foi apenas o nome de um dos tantos”.
Gravadoras (num plural que a
gente não tá conseguindo entender), “um dos tantos”. Esse cara tá começando a
me dar medo. Preciso de férias desse trabalho na ANNA.
É Milena quem faz as honras:
“O caso é que nós somos de uma agência especializada em ajudar as
pessoas a se desapaixonarem, entende? Um cupido invertido. As pessoas vem até
nós e contratam nossos serviços para descobrirmos informações que as façam se
desinteressar das pessoas por quem estão apaixonadas. E você é o objeto de
paixão de alguém.”
“Me diz uma novidade”, ele replica com uma presunção estranha, como
se isso não o fizesse se sentir o dono do pedaço, mas sim triste.
“Ok, verdade. Um monte de menina vive correndo louca atrás de você e...
Ou melhor, do Julinho Cowboy... Escuta, como eu devo me referir a você? Ai,
gente, que confusão!”
“Pode me chamar de ‘amor’, ‘gatão’, ‘tesão’...”
“Não força a barra, mano!”, eu o censuro, gesticulando com a cabeça
para Milena continuar o que ia dizendo.
“Vou te chamar de Julinho, que foi o motivo de termos vindo a Goiânia.
Certo. Como eu ia dizendo, fomos contratados pela mãe de uma garota de 14 anos
que é louca de paixão por você. Digo, pelo Julinho Cowboy. Eu pesquisei várias
coisas sobre você na Internet, coisas desagradáveis, lógico. Expus tudo pra
garota mas não deu em nada. Ela não me ouviu e acho até que ela se apaixonou
mais por você. Quero dizer, pelo Julinho Cowboy. Mas de uns dias pra cá ela
mudou radicalmente o comportamento e se veste e age como uma fã de funk ostentação, incluindo nas fotos do
Instagram as hashtags que você popularizou. Eu, sinceramente, só
não entendo como é que essa moda se instaurou num tempo tão meteórico. Quando
chegamos na cidade, a garota já era fã alucinada de MC Camufla, que para nossa
surpresa, não é ninguém menos que o antigo ídolo dela.”
“Moça, se eu bem prestei atenção, o Julinho Cowboy é um antigo ídolo
dela, então seu trabalho acabou, né? Não tem mais de quem ela se desapaixonar”,
Julinho Cowboy/Mc Camufla faz pose de quem resolve problemas complexos em
questão de segundos, mas é óbvio que Milena não vai deixar barato:
“Acontece, senhor Julinho barra MC, que aparentemente a cada nova ‘identidade
artística’ que o senhor assume, a filha de nossa cliente cai de amores por
você. Não há nada de errado em ser admirador de um artista, mas não podemos
fazer nada se a menina tem sentimentos românticos por você e a mãe está nos
pagando para que ela não tenha. Eu tava até me sentindo mal, mas depois que a
gente descobriu essa safadeza que você faz enganando o público e os fãs
inventando personagens musicais só pra lucrar, agora virou uma questão de honra
desfazer essa ilusão.”
Essa é a minha eterna melhor
amiga Milena, no auge de sua determinação. Deve ser por isso que a minha mãe quer
tanto que a gente se case.
Julinho Camufla (sim, agora eu
vou logo é juntar os nomes) faz um ar de arrependido. Baixa um pouco a cabeça
enquanto mantém um olhar vago no chão. Não sei quanto à Milena, mas eu estou
alerta para o caso desse doido querer bancar algum personagem dramático só pra
amolecer nossos corações. Decidido, ele me olha bem no fundo dos meus olhos
(filho da mãe, não tente me hipnotizar!!) e solicita:
“Você tem um celular aí, cara? Vamos dar um jeito nisso!”
Julinho Camufla me pede para
filmar no celular enquanto ele manda um recado para enviarmos para Tamires. Nem
acredito que Milena e eu conseguimos. Essa noite teve surpresas loucas demais,
meu Deus. O que ainda falta?
“Meu nome é Odair, eu tenho 45 anos de idade e...”
Qualquer pessoa que assistir ao
vídeo que estou fazendo do depoimento de Julinho Camufla (que agora sabemos que
se chama Odair) vai perceber que a imagem treme logo no início, culpa da minha
reação nada disfarçada ao saber que ele tem 45 anos de idade. Ao longo da fala
ele vai explicando que os truques de maquiagem e os Photoshops da vida de celebridade o ajudam a passar credibilidade
sobre sua fingida juventude. Isso explica por que ele usou a gíria “morô”, o
tipo de coisa que está em desuso na comunicação, a não ser que você tenha... 45
anos de idade ou mais.
O sujeito é tão cretino que é por
isso que adotou o nome “MC Camufla”, uma espécie de piada interna sobre o fato
de enganar as pessoas. Sozinho em seu quarto, ele deve dar altas risadas das
menininhas recém-chegadas à puberdade que juram que ele é o filezinho do funk. Odair também explica que vem
fazendo isso desde os anos 80, quando iniciou uma banda de rock em Brasília,
período em que eclodiram diversas outras bandas.
“Desde então, assinei contratos com gravadoras diferentes em cidades
diferentes, mas não ao mesmo tempo. Dependia da moda da época, é claro. Nos
anos 80 foi em Brasília, nos anos 90 foi em São Paulo quando entrei para um
grupo de Pagode, e ainda nos anos 90 fui vocalista de um grupo de Axé, só que
desta vez em Salvador. Pra onde o vento da música brasileira estivesse
soprando, lá estava eu, soprado por alguma gravadora interesseira. Eles não me
queriam como artista, eles me queriam como um experimento, queriam provar que
dava pra usar a mesma pessoa em diferentes estilos e épocas, apenas dando uma
repaginada na aparência e forjando o sumiço de um suposto artista para lançar
um suposto novo artista. É isso que eu sou, um experimento. Eu sou um camaleão
musical, que nem David Bowie.”
O cara se compara ao David Bowie
e Milena sente uma fisgada de riso, mas se contém. Vamos dar um desconto a ele,
né? Entretanto, essa história do Odair me faz imaginar se ele não está meio
brisado, se não fumou ou cheirou algum tóxico. E também não tô conseguindo
compreender se ele está chateado em ser uma marionete dos magnatas da música ou
se ele curte essa vida. Opa, essas vidas. Pelo jeito empertigado dele, parece
que ainda tem mais coisas a declarar:
“A fase que eu mais gostei e me senti como se fosse eu mesmo aconteceu
em 2002, quando virei vocalista de uma banda de rock maravilhosa, Illusion
Shadows. A onda gótica tava tomando conta
de muitos adolescentes naquela época e eu entrei no clima, sabe...”
“Peraí, peraí!! Como é que é?”
“Sim, meu caro jovem. Eu também cantei numa banda brasileira de rock
gótico, na época que o Evanescence
estourou. A gente cantava em inglês e...”
Não. Acredito. No. Que. Eu. Tô.
Ouvindo. Desse. Babaca.
“Por que parou de gravar, rapaz?”, ele protesta ao me ver guardando
o celular. Existe fogo em meus olhos.
“Diz que você tá brincando, pelo amor de Deus!”
“Não, rapaz, eu não tô brincando. Você chegou a conhecer a banda Illusion
Shadows?”
Milena saca de imediato o que acaba de
acontecer e, como toda boa melhor amiga, não segura a gargalhada e passa a rir
deliciosamente da minha cara, ali mesmo e sem nenhum pudor.
“Essa era... Haahahahahaaha... a banda fav... hahahahaha... favorita
dele... hahahahahahahahahahaahahaahaha!!!! Ele amava Illusion Sh...
hahahahaha... Illusion Shahahahahaha... Illusion Shadows... Hahahahahaha!!!
Caraaaaca, Sávio!!!”
“É mentira dele, Milena. Ele nunca cantou na Illusion Shadows. Cara, cê
não tem mais o que fazer em vez de ficar contando mentiras?”
E aí ele esfarela meu coração
dando a única prova incontestável do que o que ele diz é verdade: começa a
cantar o refrão de My Darkness, o
eterno sucesso da banda, com o mesmo vocal que eu seria capaz de reconhecer
mesmo se ficasse demente.
O que faz a Milena lagrimar de
tanto rir. Mais ainda.
Mas como assim? Por que eu não o
reconhecera até então? Na Illusion Shadows ele usava o codinome Senhor Ilusão,
o que seria o nome artístico de Alexander Galvão, seu verdadeiro nome. Mas acontece
que jamais existiu Alexander Galvão, do mesmo modo que jamais existiu Julinho
Cowboy. O gerente da gravadora, de certo modo, não mentiu pra nós. É tudo uma
grande fraude. No mundo distorcido por interesses financeiros em que vive
Odair, até os nomes artísticos tem nomes artísticos. Senhor Ilusão!! Estava ali
na cara o tempo todo que tudo fazia parte de um grande espetáculo, de um grande
truque.
“Ai, minha barriga, meu Deus!! Hahahahahaha!! Eu não
consi...hahahahahahah... eu não consigo parar... hahahahahahaha!! Minha...
Barriga... hahahahahahahaha!!!!”
O desgraçado do Odair fica tão
contagiado com as violentas risadas de Milena que também não se aguenta. Estão
os dois rindo de mim agora. Estou me sentindo miseravelmente idiota neste exato
momento. Provavelmente eu riria de Milena se estivesse no lugar dela e ela no
meu, mas esse mentiroso escroto deveria se envergonhar. Eu só tinha dezesseis
anos, caramba! Que droga, e pensar que eu defendi essa banda com unhas e dentes
mesmo quando saíram do underground e
até hoje levanto a bandeira dos caras porque “fã que é fã não vira as costas”.
Aaaaah, que ódio desse sem-noção!!
“Seu filho de uma...!!!”, não termino o xingamento, porque é nessa
hora que eu pulo em cima de Odair Julinho Camufla com toda a raiva do mundo.
Nunca, nunca, nunca quebre o coração de um fã quando ele estiver na sua frente.
Porque ele pode quebrar a sua cara.
De volta ao hotel e agora mais
calmo, pego meu laptop. Eu poderia estar colocando gelo na mão de tanto que
soquei a cara do Odair Mentiroso, mas acontece que não deu tempo de ensinar uma
lição a ele. Milagrosamente, os seguranças do evento apareceram na hora, e hoje
eu vi e ouvi tanta coisa estranha que já nem quero entender como os homens
apareceram no momento exato. Entro na Internet e vou deletando tudo que eu
encontro que ligue meu nome à banda Illusion Shadows (Sombras da Ilusão, em
português). A ilusão, enfim, acabou. Embora eu não imaginasse que fosse mais
que o nome da banda.
Milena me pediu mil desculpas no
caminho pra cá, mas a cada dez segundos ela se lembra do ocorrido e parece um
saco de risadas prestes a explodir. Tento não encanar com ela, pois de certa
forma ela está se vingando do fato de sempre ter me falado durante a nossa
adolescência pra não exagerar no apego às bandas. Parabéns, Milena! Você tava
certa.
Cerca de uma hora atrás, Milena
combinou com Tamires e a mãe dela de fazermos um chat via Skype. Já está
na hora.
Contamos parcialmente o que
aconteceu na viagem e deixamos o restante para dona Melinda e sua “princesinha”
descobrirem através do vídeo que fiz no camarim do MC Camufla. Infelizmente a
gravação foi interrompida por causa da minha reação revoltada, mas o principal
está ali, o suficiente para que Tamires descubra, da boca do próprio ídolo, que
ele não é digno de ser idolatrado.
“E aí, Tamires? O que você achou?”, eu pergunto assim que mãe e
filha terminam de assistir ao vídeo.
Pelo chat com webcam, vejo
Tamires trocando um olhar com a mãe. Eu não entendo o que esse olhar significa,
talvez seja uma dessas coisas que há na cumplicidade entre mãe e filha. Ou
teriam elas dons telepáticos e trocaram frases mentalmente ali? Cara, eu tenho
certeza que eu deveria estar tomando remédio tarja preta, porque ó...
“Mas eu amo tanto o MC Camufla”, a guria fala num tom bastante
infantilizado, como se fosse chorar; novamente olha para a mãe.
“Tamires, mas agora você sabe a verdade”, eu me intrometo quando a
mãe faz menção de que vai falar alguma coisa. Faço isso porque, tristemente,
também sou uma vítima de Odair e suas cascatas camaleônicas. “Nunca existiu MC Camufla, nem Julinho
Cowboy. Quero dizer, existiram personagens, mas isso é tudo que eles são.
Personagens são de mentira, eles não servem pra gente amar com a intensidade
que amamos nossas famílias, por exemplo. Esses cantores não são pessoas reais,
entendeu? O que eles falam não é o que de fato eles sentem ou o que querem
dizer. Apesar de serem humanos, é como se fossem produtos fabricados só pra
trazer lucros para as gravadoras e pra eles mesmos. Olha, Tamires, você só tem
14 anos e eu tenho o dobro da sua idade. Vai por mim: você ainda vai cometer
muita besteira na vida e muita gente vai querer abusar da sua ingenuidade. Mas
fica de olho aberto, não deixa qualquer ídolo te influenciar. Busque um ídolo
que demonstre se importar com as pessoas, que faça o bem, que traga alguma
ideia importante e útil pra sociedade. Na verdade, esse ídolo nem precisa ser
um cantor ou um ator famoso. Pode ser até mesmo um professor da sua escola. Eu
já tive ídolos, sabia? E hoje eu aprendi uma lição muito importante: vou passar
a dar mais atenção aos conselhos que as pessoas me derem sobre idolatrar
alguém, porque idolatria não é saudável e a decepção pode ser devastadora.”
“Na verdade eu tô muito triste”, admite Tamires, “porque eu não gosto quando mentem pra mim.
Eu tô decepcionada.” E começa um choro tímido ali mesmo.
A mãe balbucia alguma coisa para
nós, despede-se e o chat é
desativado. Missão arduamente cumprida. Faço log out, desligo a máquina e me recosto na poltrona, olhando pro
nada. Milena, que estava um tanto distante quando falei as últimas palavras
para Tamires, quebra o silêncio:
“Sávio... Isso foi tão legal da sua parte. Acho que eu nunca vi esse
seu lado mais sensível.”
“Sensível? Ah, Mile, não é pra tanto também. Só fiz o meu trabalho como
um bom agente do desapaixonamento, ora.”
“Hummm... Será? Sei não, acho que tem um escritor de autoajuda
escondido aí dentro, hein. Já pensou em investir na carreira, amigo?”
“Você é chata assim mesmo ou fez um intensivão, hein?”
“Fiz um intensivão, não tá lembrado? Eu era até sua aluna.”
Milena e eu podemos passar a
noite toda nessa bestice. Mas graças a Deus ela boceja, doida pra ir pra cama.
Amanhã nós embarcaremos de volta para nossa cidade, nossa realidade. Embora eu
tenha alegado que só estava fazendo meu trabalho, eu sei aqui no fundo que não
é somente isso. A menina Tamires não merece ter que ficar refém de um embuste
tão ridículo promovido pela indústria do entretenimento.
Optamos por deixar o Odair
continuar com seu teatro sórdido, pois demos nossa palavra de que não iríamos
envolver a imprensa e tudo mais. E pra ser honesto, eu ainda estou em dúvida se
tenho pena dele por se permitir ser usado desta forma ou se tenho raiva. A
história toda é muito incomum e confusa para minha mente acostumada com um
pouco da lógica do mundo real. Bom, o compromisso da ANNA neste caso foi,
primeiramente, com dona Melinda e Tamires, então não teve como resguardar tanto
assim a verdade que Odair nos confiou, se bem que ele abriu tanto o bico que eu
desconfio que ele até queira que tudo venha à tona. Talvez seja a forma dele se
livrar disso. Quanto à Tamires, ela não se livrará de outras mentiras e ilusões
ao longo da vida, mas pelo menos dessa, em que eu pude tomar uma atitude para
impedi-la de ir mais fundo, ela estará livre logo, logo. Assim que seu coração aceitar
que a paixão por Julinho Cowboy ou MC Camufla não vale mais a pena. Do mesmo
jeito que, em breve, eu terei esquecido das Sombras da Ilusão.
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