(Narrado por Milena)
Se tem uma coisa bem difícil pra
mim é lidar com frustrações. Deve ser árduo pra todo mundo, na verdade. Até
porque existem níveis de frustração. Neste momento, para ser logo bem
específica, estou tendo que enfrentar uma daquelas frustrações que vem
escondidas atrás de expectativas avassaladoras. Saca como é? Explico: quando
você considera a frustração como uma opção, ok, de boa. Mas quando você vai
atrás de algo e tem isso como certo –por que, ora, o que poderia dar errado?-
mas esse algo não sai como o esperado, é o pior nível de frustração. Como este
de agora, em que Sávio e eu estamos voltando para o hotel aqui em Goiânia, após
uma revelação esquisitíssima de que o tal Julinho Cowboy não existe.
“Vocês estão na cidade por causa do festival?”, indaga o taxista,
já sabendo que nós não somos daqui.
“Que festival?”, Sávio tenta ser simpático, pois tenho convicção
que, assim como eu, ele está pouco se lixando pra festival.
“O festival de música. Eu vou aproveitar pra faturar muito. Os melhores
cantores de sertanejo vão estar lá.”
“A gente não curte muito música sertaneja, moço”, eu dou aquela que
considero a melhor resposta para cortar logo o papo-furado.
“Mas vai ter artista de tudo que é tipo”, insiste o taxista, ao que
Sávio e eu apenas fazemos um “ah” como resposta.
No momento estamos
intrigadíssimos com o que nos foi afirmado na gravadora musical. Como assim não
existe Julinho Cowboy? O cara tem fã-clubes ao redor do país e tudo mais,
discos lançados, notícias sensacionalistas. Ele é uma celebridade. Como é que vem uma pessoa cheia de pompa
declarando categoricamente que o cara não existe?? Metaforicamente, tudo bem, daria
para entender, mas o gerente da gravadora afirmou que ele literalmente jamais existiu. Teríamos sido enganados pela dona
Melinda e sua filha
fã-louca-doente-maníaca-aparentemente-resistente-ao-desapaixonamento?
“Mas que ótima ideia!”, festeja Sávio, tirando-me do devaneio.
“Que ideia?”, eu pergunto, na fronteira entre o interesse e a
indiferença.
“A gente vai ao tal do festival de música. Com certeza algum cantor de
sertanejo deve saber de alguma coisa e pode ajudar na investigação”.
“Pode ser uma boa”, começo a visualizar uma esperança.
Fica decidido então que mais
tarde o mesmo taxista boca-de-anjo passa para nos pegar no hotel. Ganhamos um
cartão com o nome dele, do qual eu não me recordo agora e, portanto, o apelido
“boca-de-anjo” soa muito bem, e é assim que vou chamá-lo. E é justo, afinal, se
ele não tivesse tocado no assunto do festival...
Estamos mesmo longe de casa,
então o que custa se aventurar mais um pouquinho? Vamos ver o que a noite em
Goiânia tem a nos oferecer. O tal do festival começa a lotar, com grandes filas
se formando na porta do local (um estádio de futebol, se bem consigo
visualizar, pois a cabeça tá em outro lugar). Sávio não consegue disfarçar o
certo desconforto com a atmosfera apinhada de gente estranha. Nem precisa ser
estranha, basta o simples fato de ser gente.
Mas eu o faço lembrar que estamos aqui pela ANNA e que temos que levar uma
solução quando voltarmos, afinal estamos num caso de zona mortal. Temos que
esgotar nossos recursos.
“Tá um verdadeiro mosaico sinistro aqui”, Sávio reclama, mas devo
admitir que ele tem razão. No mesmo lugar você vê fãs vestidos de acordo com
cada tribo da qual faz parte. Os fãs de sertanejo estão usando trajes típicos
de quem curte sertanejo, os fãs de funk
estão usando acessórios correspondentes aos seus ídolos (embora eu nunca vá
entender por que essa garotada deu pra usar armações de óculos sem lente, e olha
que são umas armações ridiculamente enormes, vai entender...), enfim, só não vi
fãs de rock porque acredito que os
organizadores tiveram o bom senso de não misturar demais os estilos. Coitadinhos
dos roqueiros, seriam destroçados pela massa cowboylesca maciçamente presente
aqui.
“Ainda bem que a gente se adiantou, dá pra respirar um pouco. Só
precisamos de um plano que preste pra abordar uns cantores sertanejos e não
sermos confundidos com essas fãs histéricas”, eu comento.
“Eu já passei por muita coisa em nome da ANNA, mas ser confundido com
fã de sertanejo é demais pra mim”.
“Sávio, seu preconceito faz o meu se encolher de vergonha, sabia?”
“Cara, dá pra acreditar nisso?”, ele aponta para um pôster do
evento, ressaltando uma das atrações do festival.
“Mc Camufla? Que merda é essa?”, é quase uma pergunta retórica que
sai da minha boca, porque eu definitivamente
não quero saber. Apesar de que o fato de eu vê-lo todo posudo no anúncio,
usando uma calça dessas do exército já me dá mais informações do que eu
provavelmente gostaria de saber.
Pelo visual e os diversos
adereços, MC Camufla é um expoente do funk
ostentação, e tudo que eu sei sobre isso é que é uma vertente mais recente do funk brasileiro, e os cantores se
apresentam usando acessórios caríssimos e mantêm uma vida bastante pomposa. Os
caras ganham uma nota!! Já ouvi falar de umas historinhas de vida bonitinhas
sobre superação proporcionadas pela fama trazida por esse estilo musical, mas
eu tenho meus pés atrás com ele. Sei lá, parece que todo jovem de baixa renda
curtidor de funk no Brasil está à
mercê da influência desses ídolos e pode ter pensamentos do tipo “pô, olha lá o
MC fulaninho, nem precisou terminar o fundamental e já tá faturando uma
fortuna... Acho que eu posso me dar bem também”. Ai, gente, será que é muita
viagem da minha cabeça?
A única coisa que me distrai da
reflexão altamente sociológica é o Sávio olhando mais de perto o anúncio. Meu
parceiro parece muito intrigado.
“Tá memorizando o visu do MC Camufla pra copiar no próximo verão,
Sávio?”
“É um visual arrasador, mas hoje não”, Sávio sarcástico. Gosto
assim. “Abre o Instagram da Tamires naquela foto que você achou
estranha.”
Atendo ao pedido dele
prontamente, abro o aplicativo no celular, espero uma pequena eternidade
(internet 3G de má qualidade, sabe), procuro a foto e passo o celular ao Sávio.
Ele examina e me devolve o aparelho.
“Sabe por que você achou a foto estranha, Milena? Lê as hashtags.”
Eu leio: #PrincesinhaTamires
#BeijinhoNoOmbro #CoéNovinha #AkiÉCamuflada #ChoraRecalque. Meu Deus, que
triste! Não tinha feito as contas da primeira vez que vi a foto, mas devo
confessar agora que estou bem estarrecida com a mudança de comportamento de
Tamires. Resolvo voltar à página inicial do seu Insta e lá estão mais três
fotos semelhantes.
“A menina agora é fã de funk,
Sávio. Do dia pra noite ela começou a postar fotos com essas tags bizarras. Por que uma criança postaria ‘Chora,
Recalque’?”
“Olha, Mile. A psicóloga aqui é você, mas eu arrisco um palpite: as
crianças fãs de funk não se enxergam
como crianças, elas simplesmente consomem a música da forma como ela é
entregue. Se a música exalta o fato de uma pessoa ser bem-sucedida e outra não,
é isso que vai fazer sentido na cabeça do fã, mesmo que seja uma criança.”
“Por favor, não abra mais a boca pra dizer coisas assim, senão vai
roubar o emprego de psicólogos com diploma como eu.”
“Enfim, o caso é que uma das tags da Tamires diz ‘Aqui é Camuflada’. Agora, veja o anúncio”, Sávio indica uma inscrição no cartaz do
MC Camufla, onde dá pra ler “As Camufladas piram”.
“A Tamires é fã do MC Camufla”, digo em voz alta a óbvia conclusão.
“Mas essa não é a grande descoberta, minha cara Milena”, anuncia
Sávio, como que conhecedor de algum segredo macabro do universo, enquanto tira
um outro pôster que estava todo dobrado no bolso de sua calça. Coloca diante de
mim a foto do Julinho Cowboy.
“Olha a foto do cowboy e depois a do funkeiro, e olha de novo e de novo
até sacar o que tá acontecendo.”
É muito divertido sair numa
investigação com seu melhor amigo. Melhor negócio que eu poderia abrir na minha
vida. No entanto, ele curte abusar um pouco quando eu estou toda perdida num
caso e ele está mil passos à frente. Mas também pudera! Depois de examinar as
benditas fotos umas quinze vezes, entendi por que o Sávio ficou com um ar tão
prepotente por ter entendido antes de mim qual era o lance. Julinho Cowboy e MC
Camufla são, sabe-se lá por quê, a mesma pessoa.
CONTINUA NO PRÓXIMO EPISÓDIO...
CONTINUA NO PRÓXIMO EPISÓDIO...
Nenhum comentário:
Postar um comentário