(Narrado por Sávio)
Já se passaram algumas semanas e
a ressaca pós-Maitê, a ruiva, ainda persiste como um zumbi na minha vida. Não é
todo dia que se leva um fora de alguém cuja mente planejou um grand finale para uma história em que
pessoas foram usadas como peões num tabuleiro de interesses. Por “pessoas” eu
quero dizer “eu”. Mas tudo bem, melhor a
dor da flecha logo sentida do que a ilusão aos poucos alimentada. Além
disso, zumbis não vivem para sempre, então tudo que eu tenho a fazer é aprender
a mirar bem na cabeça deste que me persegue.
Levanto-me muito cedo e encontro
minha mãe, Lola, e meu irmão caçula, Dominique, à mesa do café.
“Bom dia, mãe. Bom dia, maninha!”, eu não consigo deixar de ser um provocador
mesmo nas primeiras horas da manhã. Dominique me devolve um olhar furioso
enquanto bebe seu café com leite.
“Como é que você consegue acordar com o cabelo pronto pra fazer
comercial de xampu? Qual é o teu segredo?”, eu continuo provocando, no fundo
com uma invejinha porque ele realmente está com os cabelos maravilhosos e mal
são sete da manhã. E eu ainda vou sair hoje de casa insatisfeito com os meus,
com certeza.
“Do mesmo jeito que você consegue acordar com a mesma cara de universitário
fracassado e ainda assim acha que a vida faz sentido”, ele devolve. Acordou
afiado hoje.
“Universitário fracassado, é? Ora, Rapunzel, você quer que eu faça
faculdade pra quê? Eu já tenho uma empresa e um bom salário todo mês. Um dia
você aprende que estudar nem sempre vale a pena.”
“Já chega, meninos. Sávio, que mau exemplo de se dar pro seu irmão mais
novo!! E pare de implicar com ele. E você, Dominique, já passou da hora de
cortar esse cabelo. Hoje à tarde você não me escapa.”
Eu quase me engasgo com a
determinação da minha mãe. Dominique fica boquiaberto diante da declaração
dela, protesta, ameaça fazer greve de fome, tudo para não ter que entregar suas
lindas madeixas às tesouras.
“Sávio, dê uma carona pro Dominique. E não discuta, não foi um pedido,
foi uma ordem”, essas são as últimas palavras dela, antes de se levantar da
mesa e recolher a louça do café. E agora sou eu quem tem vontade de protestar e
ameaçar fazer greve de fome, mas aí realizo que tenho quase 30 anos de idade e
não pega bem um homem da minha maturidade ficar dando piti.
O trajeto de carro leva 20
minutos até a faculdade onde Dominique cursa... bem, eu não sei qual é o curso
porque não sou o irmão mais curioso do mundo, mas deve ser algo entre Filosofia
e Moda, o que pra mim, de alguma forma, tem algum tipo de ligação (por isso
acabo confundindo). Trocamos algumas palavras, ele emburrado no banco de
passageiro e apenas grunhindo quando eu o provoco. Ele sabe que não pode
reclamar muito porque está no meu carro.
Ah, a delícia de estar com aquele poderzinho nas mãos, que indiretamente faz
alguém reter ofensas que adoraria dizer mas não pode, porque está dependendo de
você naquele momento. Na real, não me importaria nadinha se ele começasse a me
xingar agora, porque eu não o abandonaria no acostamento, por exemplo. Eu amo
esse moleque, só que o meu jeito de amá-lo é apenas um tanto peculiar. Eu amo a
minha família, na verdade. Até meu pai, que é separado da minha mãe e mora em
outra cidade, está incluído nessa projeção que faço agora.
“E aí, Dominique, como vai a namorada? Qual é o nome dela mesmo?”
“Bianca. Vai bem.”
“Legal, legal...”, eu poderia esticar o papo se ele tivesse sido
menos seco e desinteressado na resposta.
“Sávio?”
“Sim?”
“Você pode falar com a mamãe por mim?”
“Falar com a mamãe? Sobre o quê?”
“Sobre essa história de cortar o cabelo. Cara, é sério, ela não precisa
fazer isso.”
“Relaxa, ela não vai fazer isso. Certamente é um cabeleireiro quem vai
fazer.”
“Eu não tô brincando. Dá pra você conversar com ela?”
“Tá bom, Rapunzel. Vou ver o que posso fazer.”
Nesse momento, Dominique abre a
boca e posso ter certeza que ele ia disparar alguma ofensa mais cabeluda que
ele mesmo, mas o meu celular toca e eu o atendo no viva-voz, para não tirar
muito a atenção da direção. É Milena.
“Sávio, sabe o quarto mandamento da ANNA?”
“Bom dia pra você também, dona Milena Kerber!!”
“Aham, tá, bom dia. Mas é que eu tô falando sério, estamos com um
problema de ‘zona mortal’ pra resolver.”
“Eita!”, meu semblante deve ter ficado visivelmente transformado. “Você já tá na agência?”
“Já. Vem logo, por favor!”
“Ok, sócia. Chego aí daqui a pouco.”
Raramente existe um “tchau” ou
algo do tipo em minhas ligações com a Milena. Uma velha amizade pode dispensar
certas formalidades e trocá-las por pequenas grosserias.
“O que significa isso de zona mortal?”, meu irmão indaga bem
intrigado.
“Significa que esse é um caso que só pode ser resolvido por Milena e eu
juntos.”
Entro com extrema pressa na
agência, Madonna me avisa que Milena está com cliente na sala dela e que eu
posso entrar mesmo assim.
“Dona Melinda, esse é o meu sócio Sávio Miranda, ele também é um agente
do desapaixonamento.”
Sou apresentado à nova cliente,
uma mulher de uns 40 anos de cabelo castanho bem curtinho, porte elegante,
jeito de quem não tem qualquer pudor financeiro quando se trata de bancar um
serviço especial que conta com a atuação de dois agentes ao mesmo tempo. Milena
me explica que dona Melinda está pagando mas não é para si mesma, e sim para
sua filha adolescente de 14 anos.
“Dona Melinda, explique ao Sávio a história, por favor.”
“É que a minha princesinha Tamires está completamente desvairada de
paixão por esse rapaz!”, a mulher começa a narrar e aí eu percebo que seu
rosto estava úmido antes de eu chegar porque ela estava provavelmente chorando,
e agora ela volta a chorar. Sacanagem fazer a mulher contar a história de novo,
Milena!
“Quem é o rapaz, dona Melinda?”, eu pergunto, já ciente que terei
diante de mim mais um caso típico de novela: mãe rica que não quer que a filha
se envolva com garoto de classe baixa mas a menina confia que ele é o seu amor
verdadeiro. Clichê.
“É este o rapaz que está arruinando a vida da minha princesinha
Tamires”, a mulher saca de uma pasta uma espécie de pôster, abre-o e então
a minha previsão clichê vai por água abaixo.
“Julinho Cowboy?!”
Dirijo para Milena um olhar de
“que porcaria é essa?”, e a dona Melinda emenda:
“Ela é fã desse cantor desde o ano passado. Meu marido e eu pensávamos
que ia passar, porque você sabe como são os adolescentes, eles aderem a todo
tipo de modinha e trocam de tempos em tempos. Mas aí descobrimos que a nossa
amada filhinha realmente se apaixonou por esse sujeito.”
“Ele canta sertanejo universitário, Sávio, e tem um monte de fãs ao
redor do Brasil”, Milena adiciona mais informações, e eu confesso que
jamais ouvi falar deste cidadão.
Dou uma boa olhada para o pôster,
e tento fazer os cálculos do porquê esse caso tem que ser resolvido por dois
agentes em vez de um só. É melhor perguntar.
“Mas por que esse é um caso de zona mortal, Milena?”
“É porque eu já estava cuidando do caso sozinha, Sávio. Investiguei
algumas informações sobre o Julinho Cowboy e nenhum dos podres que eu
apresentei pra Tamires sequer pareceram problema pra ela. Tudo que ela fez foi
ficar com raiva da mãe e de mim e o defendeu até o fim. Eu ia entregar o caso,
mas a dona Melinda resolveu insistir, então eu expliquei a ela que, nesse tipo
de situação, a filha dela estava adentrando aquilo que chamamos na ANNA de
‘zona mortal’, que é quando nada está convencendo a pessoa a se desapaixonar.
Logo, estamos aqui.”
“Só por curiosidade, que tipos de podres você descobriu sobre este tal
de Cowboy?”
“Bom, ele regravou algumas músicas sem pagar direitos autorais, por
exemplo. Eu tentei apelar pro lado do politicamente correto e perguntei a
Tamires se ela queria ter como ídolo um cara que infringe as leis. Ela me
devolveu perguntando se eu nunca havia baixado algum filme da Internet, e aí eu
tratei logo de mudar de assunto e apresentar outro podre. Mostrei a ela algumas
fotos do Julinho numa festa onde ele sai agarrado com três mulheres, então
resolvi apelar pra um possível senso feminista na garota, perguntando o que ela
achava de ter um ídolo que trata mulheres como objetos tanto nas letras de suas
músicas quanto na vida social. Ela me respondeu prontamente dizendo ‘quem me
dera ser uma dessas mulheres’. Enfim, são alguns exemplos que eu posso citar.”
“E agora ela está insistindo pra nós contratarmos ele pra festa de
quinze anos”, contou a mãe, com o olhar aflito por nossa ajuda. Eu tento
algo:
“Pra ser sincero, eu não estou vendo tanto problema assim. É óbvio que
essa garota nunca vai ter nada com esse cara, então um dia a paixão por ele vai
acabar naturalmente, e ela nem vai precisar ter o coração partido por causa
disso. O único problema é paciência pra esperar esse dia chegar.”
“Não é bem assim, agente Sávio”, dona Melinda é a primeira pessoa
na minha vida que me chama de ‘Agente Sávio’. Curti muito. “Ela não está se alimentando, tira péssimas notas na escola, não fala
mais com as amigas... O meu bebê lindo está se perdendo por causa dessa paixão.
Eu preciso de ajuda. Me ajudem, por favor!!”
“A senhora nunca considerou dar uma surra nessa menina, dona Melinda?
Sabe, uma surra boa, inesquecível. Ás vezes é só falta de uns bons tapas.”,
esta é Milena sendo Milena, surpreendentemente cortante como uma navalha numa
noite escura. Orgulho de chamá-la de amiga.
A madame fica chocada com a
sinceridade da minha sócia, parece reprimir uma réplica, prefere não dizer nada, pois no fundo sabe que
é uma mãe tão permissiva que agora está colhendo os frutos por mimar tanto uma
criança.
“Qual é o seu plano, Milena?”, pergunto.
“Vamos ter de refazer as investigações, Sávio.”
“Mas você acha que ainda há mais a se descobrir sobre esse cara?”
“Ele é uma celebridade, Sávio. Sempre tem mais a se descobrir. E é aí
que a gente vai entrar.”
“Mas esse maluco nem é daqui, Milena. Ele mora em outra cidade, certo?”
“Aí é que tá, amigo. Você tá pronto pra fazer uma bela viagem a
trabalho?”
Milena acabou de dizer “viagem”?
Esse meu emprego é definitivamente um prato cheio de surpresas bem agradáveis.
Com essa pergunta que minha sócia me fez, só posso responder abrindo um sorriso
satisfeito de quem estava precisando muito mudar de ares. Fazer o quê? Ossos do
ofício, né?
Não dá pra fugir muito dos
clichês. Por exemplo, estamos desembarcando num aeroporto em Goiânia, pois
(alerta de clichê) o tal do Julinho Cowboy mora aqui, no celeiro mais fértil da
música sertaneja do país. Nunca vim a Goiânia, e mesmo sendo uma viagem a
trabalho, sou apaixonado por esse trabalho. A complicação que tive em meu
último caso, isto é, aquele sequestro-relâmpago, curiosamente acendeu ainda
mais essa chama da insanidade que é adorar esse trampo. Será divertido, eu
tenho certeza.
Após nos acomodarmos em nosso
quarto no hotel (a grana tava curta para alugar quartos separados), nos
arrumamos para uma visita à gravadora da qual Julinho Cowboy é contratado. Antes,
posso ouvir Milena falando ao telefone com Enzo. Ela jura a ele que alugou um
quarto individual. Ciuminho normal de namorado, né? Apesar de que eu acho que
já passou da hora do Enzo parar de ter ciúmes de mim. Por outro lado, me sinto
um pouco mal por vê-la mentindo pra ele.
Enquanto isso, no meu celular, há
uma mensagem de agradecimento do Dominique. Consegui convencer mamãe de não
levar o garoto ao cabeleireiro (pelo menos por um tempo, pois a qualquer
momento dona Lola vai implicar de novo com aquele cabelo dele e só Deus sabe se
o irmão herói estará lá pra salvá-lo). Mas não vou jogar isso na cara dele,
porque em mulher não se bate. Ok, foi uma piada ridícula.
Finalmente chegamos à tal da
gravadora. Um ambiente requintado, todo decorado com cartazes de seus artistas
(na verdade eu queria dizer “galinhas dos ovos de ouro”, mas vamos manter uma
certa decência aqui). Todos eles são iguais, para mim. Todos eles cantam igual,
para mim. Do ponto de vista artístico, ou melhor, do ponto de vista do
pouquíssimo que eu entendo de arte, esses caras não tem a mínima preocupação em
inovar, em ser originais, em sair do lugar-comum. Tipo, mesmo sabendo que eles
são representantes de um determinado gênero musical, será que nenhum deles
pensa em inserir alguma coisinha que se diferencie dos outros? Pelo visto, para
que vão gastar tempo pensando nisso? O seu comércio musical já é bem rentável e
seus produtos amplamente consumidos. E, de quebra, ainda deixam garotinhas que
mal chegaram à puberdade de coração esbaforido de paixão. Aí entra outra
ironia: se não fosse por isso, nem eu e nem Milena estaríamos aqui, ganhando para isso. O capitalismo é,
definitivamente, a teia mais mesquinha e perigosa em que alguém pode se
envolver.
“Olha isso aqui, Sávio”, Milena me passa o seu smartphone, aberto no perfil do Instagram
da “princesinha Tamires”. Na foto, que é uma selfie, ela está de óculos escuros, com a língua entortada para o
canto da boca, usando um boné de aba reta. Achei estranho, mas aceitável para
uma adolescente. Afinal, todo mundo já fez alguma tolice na adolescência. E o
advento da Internet só fez crescer em toneladas a quantidade de burradas que a
garotada pode fazer.
“Por que me mostrou isso?”
“Porque tem alguma coisa estranha nessa foto.”
“Ah, sério?Além do óbvio?”
“É sério, Sávio. Eu tô falando isso baseada nas outras fotos que eu
olhei da Tamires durante a investigação anterior. Tem alguma coisa estranha.”
Chegamos à recepção depois de
atravessar o corredor repleto de quadros e cartazes dos artistas. Avisamos à
recepcionista que queremos falar com o gerente do lugar, a respeito do cantor
Julinho Cowboy. Somos surpreendidos pela aparição repentina do tal gerente, que
sem qualquer cerimônia já chega anunciando:
“Julinho Cowboy?! Sinto informar, senhores, mas essa pessoa que vocês
procuram nunca trabalhou para nós. Ouso afirmar, inclusive, que essa pessoa não
existe.”
E o espanto só faz crescer em mim
e Milena. Como é que o cara aparece assim, com uma afirmação dessas, depois de
todo o esforço que fizemos para chegar até lá? Que brincadeira doida é essa de
que Julinho Cowboy não existe?
CONTINUA NO PRÓXIMO EPISÓDIO...
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