(Narrado por Milena)
Duas linhas significam “sim”, uma
linha significa “não”. Nunca torci tanto pra algo dar negativo na minha vida.
“Não não não não não não não não não não.”
A espera pela confirmação final
parece demorar uma eternidade. Passa o tempo necessário para o procedimento e,
graças a Deus, não estou grávida. Já dá pra seguir o dia sem neura. Tá, quase sem neura. Mais tarde vou comprar
mais dois testes e afastar qualquer dúvida de vez. Se terminar o namoro já é
uma missão para a qual estou me preparando com muito ardor, imagina ser coroada
com a possível chegada de um bebê. Além disso, eu não me vejo como uma mãe. Sei
lá, eu perdi a minha muito cedo e acho que não deu tempo de desenvolver um
senso mais aguçado de maternidade, pois eu mal tinha entrado na adolescência
quando ela morreu. Gosto de me sentir “mãe” para os meus clientes, pois que mãe
poderia ser melhor do que uma que está por perto quando você está com o coração
encrencado?
Estou mais relaxada agora e posso
me concentrar no caso da vez. Ontem recebi um telefonema de uma moça meio
esquisita chamada Sabrina. Quando eu a convidei a me encontrar na agência, ela
declinou e disse que seria melhor nos vermos num lugar mais público porque “tem fobia a conversas particulares em
ambientes afastados de casa”. Ainda bem que ela não viu a minha cara de
interrogação, já que o papo era por telefone, mas essa vida de psicóloga nos
presenteia com cada “peculiaridade humana”. Brincadeira, gente. Exceto a parte
da cara de interrogação.
Encontro-me com Sabrina na praça
de alimentação de um shopping. Foi
fácil identificá-la, pois ao telefone ela descreveu exatamente como estaria:
branca de cabelos pretos presos em coque, óculos de grau de aro grosso, blusa
branca com estampa de bolinhas pretas e um jeans
num tom bem claro de azul. Ufa! Nem sei como ela se esqueceu de mencionar os
sapatos. Mas o estranho de tudo é que ela mencionou que estaria bebendo café e
assim que eu a avistei, ela estava literalmente bebendo café. Estou com a sensação de que essa cliente vai me
proporcionar algumas... surpresas.
Vou pular a parte das
formalidades e ir ao que interessa.
“Então você está interessada nos serviços da ANNA? Qual é a sua
história?”
“Você não vai pedir nada?”, por enquanto essa parece ser a maior
preocupação de Sabrina.
“Não, não, estou bem. Não tô a fim de pedir nada.”
“Ai, é que eu me sinto muito desconfortável quando a pessoa tá comigo e
não come nem bebe nada. É chato, sabe.”
“Entendi. Mas relaxa, eu tô de boa. Vamos falar do motivo que fez você
procurar a gente.”
“Tudo bem.”
Sabrina parece se acalmar.
Pa-re-ce. Ela começa a contar uma história e não consegue me encarar nos olhos
por mais de um segundo. Sua atenção se dispersa por qualquer coisa, é como se
temesse estar sendo vigiada ou sei lá. Tenho a impressão que qualquer um que
interaja com ela saca logo de cara que ela “não bate muito bem”. Isso sim é
mais chato do que beber café acompanhado de alguém que não está bebendo coisa
alguma. Mas vamos lá, Milena, profissionalismo.
“Tem esse cara, sabe, meu ex-namorado. A gente não tá mais junto há uns
três anos e... Tem sido complicado...”, ela leva um tempão pra começar a
desembuchar, pois sua fala é repleta de pequenas pausas e desvios de olhares. Inquietação.
Ansiedade. Cogito oferecer meus serviços de psicóloga. Descarto a
possibilidade. Cogito outra vez. Decido deixar a ideia de molho, um
plano-reserva. Aí me pego pensando que eu também acabei me dispersando um pouco
só por conta dessas cogitações. Ê, mundinho irônico.
“Então você está querendo se desapaixonar por ele, certo?”
“Sim.”
“Ah, Sabrina, mas isso é muito natural. Essas coisas acontecem. Pode
ficar tranquila, que eu vou te ajudar com isso. Eu só vou precisar que você me
forneça algumas informações. Mas primeiro você tem que me confirmar se vai
realmente contratar os meus serviços.”
A garota, que aparenta ter não
mais que 25 anos, vai de distraída-ansiosa a assustadoramente concentrada numa
velocidade que impressiona. Tem que haver algo de errado com ela. Sua
concentração não está em mim. Ela fixa um ponto no nada e mantém um olhar
focado ali, como se estivesse prestes a abrir um portal interdimensional só com
o poder dos olhos.
“Oi? Sabrina? Tá tudo bem?”
“Tem certeza que você não quer pedir nada mesmo?”
Levo uns quinze segundos para aceitar
que aquele comportamento recém-modificado é apenas uma demonstração de seu
desconforto por eu não estar bebendo nada. Me rendo, chamo um atendente e peço
um copo grande de chá gelado. Quando o chá finalmente chega e eu dou a primeira
sugada no canudinho, o espírito maligno que habita em Sabrina e está quase me
tirando do sério a abandona e ela volta a se comportar de um jeito mais
frenético.
“Conrado e eu ainda somos amigos”, a história ganha prosseguimento.
“O problema é que eu ainda gosto dele,
nunca deixei de gostar e ele sabe disso. Acho que ele também ainda gosta de
mim. Mas o problema maior de todos é a Natália, a namorada nova dele. Ela anda
fazendo umas coisas de uns tempos pra cá...”
“Tipo o quê?”
“Ela anda me stalkeando há um tempo. Manda convite no Facebook usando
perfis falsos, faz ameaças ligando de números privados. Ela começou tentando
bancar a amiguinha da ex-namorada, mas depois vi que ela era muito falsa. Falou
mal de mim pras minhas amigas, pros meus pais, fez umas montagens de fotos
pornográficas que chegaram ao conhecimento do meu chefe e eu quase fui demitida
do emprego por causa disso. Ela é totalmente doida. E... não vou negar, ela me
dá muito medo. Ela é tipo uma psicopata. Deve haver algo errado nela, muito
errado. Eu tenho certeza.”
Fui fazendo anotações mentais e
não pude deixar de perceber um certo padrão na preferência que o tal Conrado
tem por mulheres de personalidades um tanto... especiais.
“Como você sabe que é ela quem te liga de números privados e manda
convites de perfis fakes no Facebook?”
“Não sei te explicar, acho que é intuição feminina, mas eu tenho
certeza que é ela.”
“Então ela age assim por ciúmes do Conrado?”
“Exatamente. Ela sabe da nossa história e sabe que a gente ainda se
fala.”
“Se você tem tanto medo dela, então por que não se afasta do Conrado?”
Eu soube que aquela pergunta era
estúpida no momento em que ela saiu da minha boca. E o olhar disperso de
Sabrina voltou a se concentrar no nada, mas eu sei que era um nada apenas para
mim, pois neste momento ela deve estar visualizando o rosto de Conrado
materializado no ar, talvez até esteja recordando de sua voz, de seu cheiro...
E a pergunta está respondida. Tudo culpa dessa monstrinha da paixão. A paixão nos carrega em seus braços
envolventes só para nos conduzir a lugares repletos de saborosos riscos.
Faz parte da minha ética de
trabalho tentar resolver o problema do cliente antes que ele assine o contrato.
De repente a fumaça da paixão o está atrapalhando de ver algum detalhe que pode
solucionar a coisa toda bem rápido, sem precisar gastar com um serviço
profissional como o que a ANNA oferece. E sem precisar gastar meu tempo também.
“Você acha mesmo que a Natália poderia, sei lá, te machucar?”
“Olha, pra ser bem sincera, eu acho que sim. A gente nunca sabe do que
uma mulher louca é capaz. E eu é que não quero desafiar a loucura de outra
mulher.”
“É por isso que você é tão ansiosa? Por medo do que a Natália possa
fazer?”
“Ansiosa?”
“É, meu bem. Você não consegue ficar quieta.”
“Ah, não, não. Na verdade hoje estou com a cabeça bem sossegada. Não
queira me ver ansiosa.”
Ok, agora estou realmente
convencida de que tem algo muito errado com essa garota. Ou será que é comigo? Sem
mais comentários.
“Eu te trouxe o formulário, Sabrina. Quer preencher?”
“Claro. Posso levar pra casa?”
“Humm... Algum problema em preencher aqui? Seria bom pra agilizar meu
trabalho.”
“É que eu tô sem minha caneta pra assinar documentos e preencher
formulários. E, sem ofensa, mas eu só assino documentos e preencho formulários
com a minha caneta específica pra isso. Posso levar pra casa?”
Concluo que Sabrina está
certíssima: eu também não quero desafiar a loucura de outra mulher.
No dia seguinte, na agência, me
deparo com mais um buquê de rosas enviado por Jean Pierre (agora ele se
identifica com J.P. nos cartões). Apenas mando Madonna, a secretária, enfiar
num vaso. Boa parte da ANNA tem cheiro de rosas, graças ao rapaz de nome francês
e trato fino no jeito de se vestir.
Estou com o formulário de
Sabrina, a estranha. Entro na minha sala a fim de estudar as informações, ligo
o computador e seleciono umas músicas para acompanhar minha leitura. Sabrina
menciona que o fim do namoro entre ela e Conrado se deu por conta de
“desgastes”. Mas ela não entra em detalhes. Confesso que o caso dela me
interessa muito, pois chego até a sentir pena da pobrezinha. Por causa de uma
maluca ciumenta ela teve que decidir se desligar completamente do ex-namorado.
Se bem que, tentando enxergar pelo ângulo da Natália, a namorada atual, não sei
se eu ia curtir a ideia do meu namorado de amizadezinha com ex. Provavelmente
eu não me rebaixaria ao nível de sou-stalker-maníaca-larga-mão-do-meu-macho-ou-eu-te-mato.
Mas cada pessoa tem sua forma de expressar o domínio de seu território, e
algumas dessas maneiras envolvem impingir medo e dor naqueles que representam
ameaça. Claro que no meu atual estado,
eu adoraria que alguma ex do Enzo saltasse das páginas do passado e viesse
fazer a cabeça dele, assim me facilitaria arranjar uma desculpa para terminar o
namoro.
Vou averiguando as informações,
acessando as redes sociais do Conrado e traçando planos para montar meu esquema
de desapaixonamento. Apesar de eu acreditar firmemente que todo ser humano pode
ser desapaixonante, estou sem ideias no momento. Mesmo cedo para dizer,
aparentemente não há nada no Conrado em si que me forneça material suficiente
para iniciar o processo em Sabrina. Não adiantará, por exemplo, argumentar que
ele e Natália parecem fofos e felizes nas fotos do Instagram. Qualquer casal sai bonito nas fotos da Internet. Se eu
não soubesse que por trás do biquinho simpático que Natália exibe em algumas
imagens há uma fera das trevas com sede de sangue, veria apenas uma moça normal
com quem se pode cruzar na rua.
Pense, Milena, pense. Como eu
poderia ajudar a jovem Sabrina, que está em apuros por ter o coração ainda
atrelado aos sentimentos que possui pelo ex-namorado? Oh, Sabrina, por que você
teve que desistir do cara? Poderia ter se poupado disso. Poderia ter me poupado
de me sentir uma amadora na arte do desapaixonamento.
“E então, Milena? Quais são as novidades?”, Sabrina me indaga após
uma semana de investigação. Ela definitivamente me parece mais ansiosa do que
em nosso primeiro encontro, mas se ela disser outra vez que está com a cabeça
sossegada, o que poderei fazer?
Estamos num outro shopping dessa vez. Sim, porque Sabrina
alega que o shopping anterior em que
nos encontramos “é um verdadeiro caos” no fim de tarde das quintas-feiras
(palavras dela) e que este em que estamos é pouco visitado no mesmo período.
Nesse ponto ela me lembrou o Sávio, que tem medo de gente. A garota é
extremamente metódica, cheia de manias. Mas é cliente, então eu estou aqui
pelos negócios. Depois de uma semana tentando agregar evidências que pudessem
convencê-la a largar de mão a paixão pelo Conrado, aqui estou com algumas
novidades:
“Acho melhor a gente se sentar, Sabrina. A conversa pode ser meio
longa.”
Ela assente, e pela primeira vez
eu me surpreendo por ela não inventar uma desculpa para não sentar, já que ela
tem uma mania para usar em cada situação do universo.
“Primeiramente, você me deu uma missão muito difícil. Você não é a
primeira garota que permanece a fim do ex-namorado mesmo após anos do fim do
namoro. Então eu me esforcei bastante pra conseguir algo que pudesse te ajudar.
Você tem que estar preparada pra dor, pois o Conrado não te fez e nem te faz
mal algum, então o processo de se desapaixonar por alguém assim geralmente é
bem doloroso.”
Ela apenas aguarda em silêncio, o
olhar examinando tudo ao redor, os dedos tamborilando nas coxas.
“Fica calma, Sabrina.”
“Eu estou nervosa, Milena.”
Puxa, nem acredito que enfim
acertei.
“Eu segui o Conrado algumas vezes, várias delas ele tava acompanhado da
Natália e... Bem, acontece que pelos lugares que eles foram juntos,
especialmente um deles, tudo indica uma coisa.”
“Que coisa?”, aí o olhar da moça congela novamente naquele ponto do
nada, e eu vejo que já estou me acostumando com isso.
“Eles foram a uma loja de joias e... o Conrado vai se casar com a Natália.”
Cara! O fato de portar essa
notícia quebra o meu coração de tal forma que eu nem consigo ter noção de como
está o coração da Sabrina. Tipo, se ela resolver surtar e correr berrando que
nem uma desvairada do shopping, darei
a ela esse direito. Então, pela primeira vez, os olhos dela encontram os meus e
ela sustenta esse contato. Os olhos dela encontram os meus cabisbaixos, uma
expressão pesada em mim. Ah, gente, eu tô realmente mal por ter dado essa
notícia, mas era o melhor que eu tinha. Sei que isso não significa que ela se
desapaixonará dele imediatamente, mas é o tipo de coisa que tem uma utilidade
enorme com o passar do tempo, pois você vai se acostumando com o fato do seu
objeto de paixão estar cada vez mais inacessível. Talvez ela até o ame para
sempre, mas pelo menos essa situação não a impedirá de um dia encontrar um novo
amor e ter um relacionamento saudável. A ANNA não trabalha para extirpar o amor
do coração, mas para deixar o coração respirar mais leve.
Eu poderia aconselhá-la a lutar
pelo seu grande amor, mas o fator Natália lhe causava um pavor contra o qual eu
estava incapacitada de dizer qualquer coisa. Sem falar que, antes de Natália
aparecer, Sabrina teve tempo de tentar recuperar a relação e não o fez. Agora
simplesmente parece tarde demais.
“Ele... Ele parecia feliz? Eles pareciam felizes?”
“Sim”, eu não poderia mentir. Mesmo que doa, eu preciso me manter
profissional e honesta.
Sabrina balança a cabeça em sinal
de concordância, parece lúcida. Talvez sua alma esteja se partindo em pedaços
lentamente ou despencando em câmera lenta numa queda infinita, por isso ela
ainda não apresenta qualquer reação. No entanto, as primeiras lágrimas
despontam em seu olhar.
“Vem cá, deixa eu te dar um abraço.”
“Eu adoraria”, ela afirma conforme o fluxo do choro aumenta, “mas abraçar alguém nessas horas só me faz
chorar ainda mais.”
“Tô nem aí, deixa eu te abraçar logo.”
Desta vez não deixo que suas
manias fiquem entre nós. Deixo o carinho e a compreensão tomarem conta do
ambiente. E deixo as lágrimas dela encharcarem minha blusa novinha, fazer o
quê?
Alguns dias depois, para acertar
o pagamento do serviço, Sabrina aceitou ir à sede da ANNA. Desde que não
demorasse muito, claro. Mas eu dei um jeitinho e fiz com que ela conversasse
comigo por mais tempo do que ela pretendia, apesar do incômodo gerado pelo seu
constante comportamento escapista, como se quisesse disparar porta afora e
sumir. Quem sabe eu ligue um dia pra ela e a convença a se tratar. Aproveitando
que íamos nos despedir ali, dei uma dica um tanto inusitada:
“Você vai achar estranho o que eu vou dizer, Sabrina, já que eu
trabalho fazendo as pessoas se desapaixonarem das outras. Mas tem vezes que o
melhor remédio para o desapaixonamento é uma nova paixão, por incrível que
pareça.”
Ela sorriu meio sem-graça. Óbvio
que ainda não estava refeita da terrível novidade. Mas eu sei que plantei uma
sementinha ali. Eu notei que seu olhar se perdeu nas rosas que enfeitam minha
sala.
“Seu namorado te ama mesmo, né?”
“Não foi meu namorado quem me enviou essas rosas. Foi um ex-cliente,
meteu na cabeça que é meu admirador. Ele é uma graça de pessoa, mas... é só
alguém muito bacana, nunca rolaria nada entre nós. Mas ele é gente fina,
simpático, tem mania de andar sempre bem-vestido, estuda Direito...”
“Mania, é?”, Sabrina deu um sorriso visivelmente diferente nesse
momento. E então uma luzinha minúscula se acendeu na minha cabeça. Será que...?
“O nome dele é Jean Pierre, você ia adorar conhecê-lo.”
“Parece legal.”
E foi assim que eu tive a melhor
ideia para o fim dessa história. Apesar de estranha, Sabrina merecia muito ser
feliz. Se ela poderia alcançar isso depois de pegar o número do Jean Pierre, já
não era algo que estivesse sob meu controle. Mas era uma oportunidade
formidável e, outra vez, eu estava me sentindo incrível por ter esse emprego.
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