(Narrado por Sávio)
Certa vez ouvi falar num lance
esquisito chamado “paralisia do sono”. É uma sensação agoniante que algumas
pessoas dizem já ter passado durante uma espécie de período intermediário entre
estar dormindo e acordado, em que você parece estar imobilizado, a boca não
abre, o peito parece estar sufocado, mas você sente uma presença forte,
frequentemente negativa. Alguns religiosos chamam isso de opressão maligna. No
meu caso, estou totalmente acordado. E a sensação de estar imóvel se deve ao
fato de alguém ter amarrado minhas mãos para trás contra uma cadeira, bem amarradas. Não é a tal “paralisia do
sono”, mas definitivamente a sensação de agonia deve ser idêntica. Ainda mais
quando você não faz ideia de por que raios se encontra em tal situação.
Finalmente abro os olhos, não
tenho ideia de onde estou. Tudo que me lembro é de ter saído do meu carro para
ajudar um cara enquanto vigiava o namorado da Maitê, a ruiva que vem fazendo a
minha cabeça na última semana. Foi quando apareceram outros caras para
supostamente ajudar e, do nada, alguém veio por trás e cobriu minha cabeça com
algum tipo de saco. No entanto, depois disso rolou um apagão, o que indica que
provavelmente me deram uma porrada na cabeça pra eu desmaiar. Que horas são?
Onde estou? Hoje ainda é hoje?
“O bonitão acordou, senhor Gonzalez”,
alguém grita para outro alguém.
Ainda muito atordoado, tento
encaixar as informações. Primeiro, não dá pra saber quem deu o tal aviso, pois
não vejo ninguém por perto. Segundo, quem é Gonzalez? Aos poucos vou recobrando
a consciência. Sim, Átila Gonzalez. O namorado “complicado” de Maitê, a ruiva.
Mas qual é a relação entre eu estar aqui, no que parece um sequestro, e o
Gonzalez? Bem que eu saquei que algo não cheirava bem nesse sujeito. Começo a
ver que não era coisa da minha cabeça que julga as pessoas pelas suas fuças
intimidadoras.
“Foi o Ramone que te mandou?”, esbraveja o tal do Gonzalez, com um
hálito que varia entre o fedor de bebida forte e bala de menta.
“Cara, eu acho que você tá me confund...”
“NÃO ME CHAMA DE ‘CARA’!!”, grita ele outra vez, acentuando ainda
mais o bafo. Se ele soprasse por mais uns minutos sem parar na minha cara,
seria capaz de descobrir a marca, os ingredientes, a data de fabricação e até
onde ele comprou aquela bebida. A bala de menta deve ser Halls.
“Você vai me chamar de ‘Senhor Gonzalez’, entendeu?”
Me dá uma vontade de rir quando
ele diz isso, mas aí me lembro que parte do que está acontecendo aqui é
desconhecido para mim, por conta de uma bela pancada que levei quando me
sequestraram. Curiosamente, isso faz com que eu me dê conta do quanto a cabeça
lateja, e há uma dor mais intensa um pouco acima da nuca. Portanto, melhor eu
segurar o riso. E entrar no jogo do cara.
“Sim, senhor Gonzalez. Entendi. Eu só não entendi por que vocês me...
sequestraram.”
“Ei, bicho! Sequestro não é nosso negócio”, protesta um dos
brucutus que, agora, percebo se tratar de algum tipo de capanga do Gonzalez.
“Foi o Ramone que te mandou?”, insiste Gonzalez na mesma pergunta
que me fez ainda há pouco.
“Ramone?”
“Faz tempo que você anda me seguindo, seu otário. Mas hoje eu te
peguei. E você vai mandar um recadinho pro seu chefe. Pode falar pra ele que eu
vou continuar tocando meu negócio, e ele não vai me intimidar. O império do
Ramone vai chegar ao fim.”
“Por favor, senhor Gonzalez, eu não quero ser enterrado num cemitério
de animais.”
Gonzalez e o capanga se
entreolham, acho que não entenderam minha piada com referência pop.
Provavelmente estão achando que ainda estou grogue. Não sei explicar, mas às
vezes quando estou nervoso meu senso de humor atropela boa parte das minhas
atitudes sãs e eu acabo soltando comentários e piadas para o meu prazer próprio,
mas que são involuntárias.
Entretanto, no meio disso tudo,
não tive como não notar a fragilidade que houve durante a investigação. Fui
pego. Estou completamente estarrecido, porque eu nunca havia sido pego antes. O
que torna essa situação atual ainda mais perigosa.
“Senhor Gonzalez, por favor, deixe eu me explicar. Eu não sei quem é
esse tal de Ramone.”
“EU AINDA NÃO TERMINEI MEU RECADO. NUNCA INTERROMPA O ‘SENHOR ÁTILA
GONZALEZ’, SEU DESGRAÇADO!!”
Um frio na espinha e alguns
arrepios na pele (e na alma) são tudo que você precisa às vezes pra ficar
quietinho no covil de um sujeito de caráter duvidoso.
“Diga ao Ramone que eu vou roubar todos os clientes dele porque o meu
material é o meu melhor. Tem coisa nova vindo direto da Colômbia. A melhor coca
que essa cidade vai provar. E tem uma boa erva vindo aí também, mas eu não vou
te dizer de onde ela vem. Só sei que vai fazer a cabeça da galera dessa cidade.”
Ok. Recado entendido. Mas no
silêncio mais profundo do meu ser eu ainda estou deglutindo cada informação.
Então o tal do namorado ciumento e arrogante de Maitê era nada menos do que um
traficante? E o pior: um traficante com um concorrente direto, um arqui-inimigo
no mundo do comércio de produtos ilícitos. Ser ciumento, arrogante e possessivo
é a menor das minhas preocupações sobre Átila Gonzalez agora. Não consigo
acreditar que a ruiva se esqueceu de me informar desse “detalhe”. Ou será que
ela não sabe? Como se já não bastasse a missão trabalhosa de dar um jeito pra
esse valentão se desapaixonar por ela, agora estou pego num fogo cruzado que eu
nem sonhava que existia. Ah, as coisas que eu faço pela ANNA. Ah, as coisas que
eu faço por uma ruiva...
“Tudo bem, senhor Gonzalez”, que saco desse negócio de chamar esse
imbecil de “senhor”, mas enfim, não posso arriscar minha integridade,
principalmente a física. “Vou transmitir
seu recado ao Ramone. Será que eu poderia ir agora?”
Ele se vira para o capanga e
ambos começam a rir. Quem já foi zombado na escola sabe quando duas ou mais
pessoas começam a gargalhar mas você não está convidado para o momento de
alegria, pois é de você que elas
estão rindo.
“É que não dá pra enviar um recado sem selar”, diz o capanga
mal-encarado, e eu me odeio por entender prontamente que eles não vão me mandar
de volta sem me dar “uma boa lição”.
Penso na primeira loucura que
posso para me livrar das garras de Gonzalez e seus homens. E meto o pé com tudo
sob o auxílio da minha estratégia:
“É o seguinte, Gonzalez...”
“Senhor Gonzalez, idiota!”, ele me corrige, mas com a voz num tom
abaixo das outras vezes.
“Claro. Senhor Gonzalez. Então, eu estava espionando você pro Ramone,
mas a verdade é que eu tinha outros planos.”
“Que história é essa de outros planos?”
“Bom, é claro que eu não esperava que vocês me pegassem tão cedo, mas
eu já tava preparado pro caso de algo ruim acontecer. Por conta disso, eu acho
que tenho uma informação valiosa pra você. Quero dizer, pro senhor.”
“Desembucha logo, rapaz. Deixa de frescura e fala o que é.”
“O Ramone sabe que o senhor tem uma namorada. Parece que é uma moça
ruiva. Seria isso?”, adoro toda vez que finjo não ligar muito para a
existência da Maitê.
“Sim”, ele confirma e quase dá pra sentir o ambiente ao redor
congelar. Aí tem coisa. E é o suficiente pra eu ir em frente com a estratégia.
“Eu ouvi o próprio Ramone comentar que ele anda... como posso dizer...
de olho na sua garota. Ele fala que ela é uma baita mulher linda, que fica
hipnotizado com aqueles cabelos, aquele sorriso. Olha, pra ser sincero, senhor
Gonzalez, acho que ele tá a fim de competir por muito mais do que o mercado de
coca e erva, viu? E o senhor conhece o Ramone...”
Quase não acredito no que eu
acabei de falar. Além de praticamente dizer na cara do Gonzalez o quanto estou
atraído pela namorada dele, mesmo que de forma disfarçada, ainda me saio com
essa de “o senhor conhece o Ramone”, sendo que eu mesmo nem imagino como ele é.
E se fosse um traficante cego? Mas a vida é assim, a gente tem que apostar numa
boa história quando ela surge do nada. Além disso, comecei a inventar tudo isso
porque, apesar da enorme atração que sinto pela Maitê, ruiva nenhuma vale a
minha vida.
Alguma coisa muda no olhar de
Gonzalez. O capanga o cutuca e fica dizendo:
“Eu avisei, chefe. Eu avisei sobre ela.”
“Você, moleque de recados do Ramone, tem certeza do que tá dizendo?”,
Gonzalez parece preocupado.
“Certeza absoluta, mestre Gonzalez. Agora, por favor, não quebre todas
as minhas costelas.”
Gonzalez e o capanga se afastam
alguns metros de mim, cochicham alguma coisa. O semblante do traficante
disfarçado de empresário do ramo de limpeza ganha um ar mais leve. Não, eu
diria melancólico. O que está havendo nesse papo entre eles que o está fazendo
mais parecer um gato fracote do que um namorado ameaçador? Enquanto eles
parecem estar decidindo algo, me vem à cabeça a interessante ironia: Gonzalez
tem uma empresa de produtos de limpeza, mas tudo isso deve ser meramente uma
forma para ele fazer lavagem de dinheiro.
Maldito trocadilho que me faz novamente querer rir alto, mas minha vida maluca
ainda está nas mãos desses caras. Preciso me lembrar dessa piada genial e a do
cemitério de animais para contar mais tarde para Milena. Deus, me faça viver!
Acho que Gonzalez e seu cúmplice
chegam a um acordo. Me desamarram e Gonzalez chega bem perto de mim, seu
péssimo hálito ainda mais intenso contra as minhas narinas, e me diz:
“Vaza daqui, mano. A gente não vai fazer nada contigo. Mas vaza bem
rápido, senão a gente muda de ideia.”
Fazer o quê, gente? Seu algoz em
potencial te dá a ordem pra você dar no pé, o que você faz? Você. Dá. No. Pé. E
não olha pra trás até caminhar, pelo menos, uns cinco quarteirões.
No dia seguinte, acordo bem
tarde. A tensão desregula meu humor e também meu sono. Há uma mensagem da Maitê
no WhatsApp, superfeliz. Ela diz que
Gonzalez terminou o namoro com ela por telefone, sem muitos rodeios. Ao final,
ressalta que, mesmo não sabendo como eu procedi para conseguir aquilo, ela me
agradecerá pelo resto da vida. É lóóógico que eu jamais direi. Pelo mesmo
motivo que um bom mágico nunca revela seus truques, ou seja, é preciso manter a atenção da plateia presa
em qualquer maravilha que você puder fazer, mesmo sua fonte sendo a mais
ordinária. Respondo às mensagens da maneira mais humilde que posso, e Maitê
nem sonha que eu estou mais feliz que ela pelo caso estar encerrado. No fundo,
ainda tenho a curiosidade em saber o que foi realmente definitivo para o
Gonzalez terminar com ela. E acredito fortemente que teve a ver com a mesma
coisa que o fez me mandar embora do lugar onde eu fiquei cativo.
Alguns dias depois, senti demais
a falta da comunicação com a Maitê. Não gostaria de admitir, mas o que eu
estava sentindo por ela começou a ganhar contornos mais afetivos do que
puramente físicos. Não quero me precipitar afirmando que estava ficando
apaixonado, mas nos últimos anos, ela me balançou bem mais do que as outras
garotas com quem fiquei. Será que depois de ficar com ela pelo menos uma vez
isso iria passar? Não era o que estava parecendo.
Tomei coragem e a chamei pra
sair. Odeio essa parte do processo de ganhar a confiança da garota, pois é
sempre tão cansativo e você tem que seguir uma série de protocolos, fingir que
não está querendo avançar um monte de etapas e partir para os beijos e amassos.
Desculpe se meu romantismo tem a consistência de uma folha seca arrastada pelo
vento outonal, mas quando faz um tempo que seu coração não encontra alguém que
realmente o arrebate, você enxerga a vida com lentes embaçadas pelo monstro
chamado realidade nua e crua.
Pra resumir a história, porque
não há motivo pra você acompanhar em detalhes essa parte chata, Maitê e eu nos
divertimos muito. Fomos ao cinema e, para minha surpresa, ela aceitou comer
algo numa lanchonete no shopping, de
boa (é que geralmente faz parte do protocolo o cara adivinhar aonde deve levar
a garota, e isso não ser algo que ela descreverá como um pesadelo para suas
amigas). No final, quando a levei em casa, abri o jogo e falei que estava
interessado nela. Ela me mostrou o melhor sorriso da noite, mas me disse que,
agora que estava livre do controle de Gonzalez, estava precisando respirar um
pouco de liberdade e queria ficar sozinha por um bom tempo. Eu cometi a tolice
gigantesca de perguntar se ela não queria pensar no assunto, ao que ela me
respondeu um simpático porém determinado “não”. Deu-me um beijinho no rosto, me
agradeceu pela milésima vez pelo meu trabalho e pronunciou uma despedida
qualquer. Fui dirigindo pra casa com um saborzinho amargo no coração. Muitos
gostam de fingir maturidade após levar um toco, que tá tudo tranquilo e tal,
mas um fora sempre será um fora. É quase uma ofensa, do ponto de vista de quem
levou, pois você está ofertando a outro alguém o que você tem de melhor, que é
você mesmo. Você se sente diminuído, pois se você é o que você tem de melhor e
a pessoa recusou você, então o que resta de bom? Mas a verdade é que a gente
também precisa aprender a se colocar no lugar daquele que nos dispensa. Seja
feliz, Maitê.
Numa dessas circunstâncias
irônicas em que a vida adora colocar as pessoas, estou com Milena num bar,
assistindo a uma apresentação de uma amiga cantora que temos em comum. Eis que avisto
a bela ruiva com quem eu andava sonhando até então. Ela está sentada a uma
mesa, de forma que não consegue me ver. Está acompanhada de um sujeito de boa
aparência, que tem um certo ar de superioridade, elegante, e penso que ele de
fato possua algum tipo de status,
além de dinheiro. Já faz uns dez dias desde o fora que ela me deu, e pelos
risos e sorrisos que ela dá, acho que já se recuperou muito bem do namoro
anterior e já respirou toda a liberdade que tava precisando.
Não resisto e me levanto, vou
caminhando até bem perto da mesa, aproveitando a desculpa de que o balcão do
bar fica ali próximo. Peço a cartela de drinques ao bartender, finjo interesse mas mal presto atenção ao que está
diante dos meus olhos. É aí que ouço algo que corta meu coração com a mesma
delicadeza que um açougueiro furioso decepa um pedaço de carne dura.
“Você é o melhor, Ramone. Eu te amo muito.”
Ok, acho que isso é mais do que o
suficiente para desmoronar um castelo de fantasias que eu vim construindo por
causa dessa garota. Ali, naquele bar, naquela que era pra ser uma noite
divertida, emergiu contra mim a conclusão dolorosa de que Maitê apenas me usou.
E agora ficou tudo cristalino: seu plano desde o início era ficar com Ramone,
pois ele era muito mais pomposo do que o descendente de colombianos. Tava na
cara que, se havia um criminoso poderoso e influente para se temer naquela
cidade, era aquele homem. Sabendo que não teria como competir com Ramone se
este resolvesse roubar sua garota, Gonzalez preferiu terminar o namoro e ficar
apenas com seu negócio de drogas. E isso está muito mais claro agora pra mim,
pois dá pra sentir o cheiro de dinheiro e poder que exala de Ramone. Seria
ingenuidade demais achar que uma relação entre ele e Maitê é uma coincidência.
O irônico é que eu conheci a
Maitê se passando por uma moça estúpida, e nessa mesma ocasião ela provou que
estava longe de ser assim, mas apesar de tudo eu ainda caí nos seus encantos, tirei
o empecilho de seu caminho e pavimentei seu caminho para a liberdade de poder
finalizar seu plano. Essas ruivas espertas...
Mas uma coisa me deixa feliz, por
mais estranho que pareça: quando percebi que esse ressentimento seria o
bastante para me fazer desencantar de Maitê, não hesitei: escolhi uma bebida deliciosa
e retornei para a minha mesa, para o lado da minha melhor amiga. Aquela que, depois
da minha mãe, é a única mulher em quem eu posso confiar.
Um comentário:
Amei e amei. Quero o resto pra já!
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