(Narrado por Sávio)
Os negócios vão indo tão bem na
ANNA que já nos convidaram algumas vezes para palestrar em faculdades. Da minha
parte, é uma ironia deliciosa pisar num campus universitário e, mesmo estando
com o curso de Ciências da Computação trancado, sinto-me acima de todo mundo.
Vamos ser realistas. Boa parte da galera ali nem está a fim de estudar ou está
seguindo uma carreira que não quer. Enquanto eu estou tocando meu próprio
negócio e sem qualquer estresse de artigos, relatórios, resenhas e seminários
para me preocupar.
O tema que Milena e eu escolhemos
para aqueles acadêmicos do terceiro ano de Psicologia foi “Desencantar para desencanar: vivendo bem após o fim da paixão”. Milena
e eu nos revezamos nos microfones, descrevendo para aquela plateia parte de
como funcionava nosso trabalho na agência. O mais interessante foi ver que
havia poucos homens no auditório. Definitivamente eu não estou reclamando de
nada, longe de mim. No entanto, é inegável o quanto falar de paixão, mesmo que
com uma linguagem mais científica, atrai muito mais o público feminino. Respondemos
a algumas perguntas, umas muito pertinentes e outras bastante... estúpidas
(essa é a palavra mais amena que tenho no momento). Veja exemplos das que eu
considerei pertinentes: “Se a pessoa se
desapaixonar e voltar a se apaixonar em algumas semanas ou poucos meses pela
mesma pessoa de quem ela se desapaixonou, vocês devolvem o dinheiro?”, “Existe
a possibilidade de vocês ministrarem cursos preparatórios para que outras
pessoas venham a dominar as técnicas empregadas pela ANNA, aproveitando para
expandir o negócio?” Eis agora algumas das pérolas: “Que truques vocês usariam para alguém se desapaixonar por mim?”, “Se
eu for atirada demais pra um cara, fico automaticamente desapaixonante?”
Essas perguntas foram feitas pela mesma garota, e ficou muito claro que ela não
prestou a mínima atenção em nada do que a gente disse. A sorte dela é que tinha
maravilhosos cabelos ruivos. E eu sou simplesmente gamado numa ruiva. Então
respondi com toda a paciência do mundo que os “truques” dependem de uma série
de variantes, fazemos um cruzamento de informações do cliente e do seu objeto
de paixão etc.
“Até que eu gostei. E você?”, Milena estampava um cansaço
satisfatório no rosto.
“Só de estar numa faculdade e não ter que ficar pra alguma aula, só dá
pra dizer que gostei também.”
“Essa coisa de palestrar faz o negócio parecer muito mais sério.”
“Mas a ANNA é um negócio
sério!! Você vive falando que estamos mudando a vida dos nossos clientes. Não
poderia ser mais sério.”
No caminho para o estacionamento,
fomos abordados pela mesma ruiva linda que cansou minha paciência. Ela
sinalizou que queria falar comigo e Milena então seguiu para o seu carro.
Aproximei-me da moça e ela foi bem direta:
“Eu percebi que você odiou as minhas perguntas.”
“Desculpa, o quê?”, eu tive que dar uma de João-sem-braço e fingir
que o rosto dela nem era familiar, quanto mais suas perguntas.
“Não tenta dar uma de João-sem-braço. Você fazia cada careta quando eu
perguntava alguma coisa. E não foram as únicas vezes que você me olhou na
palestra. Na verdade, eu só fiz aquelas perguntas idiotas porque tava ficando
sem jeito com a forma que você me encarava. Então resolvi implicar com você.”
Ainda me admiro com o fato de
haver mulheres que ganham a vida vendo o passado, presente e futuro em bolas de
cristal, pois mulheres não precisam disso.
Amigos homens, elas nos sacam quando nós, do alto da nossa ingenuidade,
pensamos que estamos por cima. Fiquei encarando aquela universitária com uma
tremenda cara de trouxa pego na armadilha mais ridícula que poderia haver.
“Nesse caso, fazer o que, né? Você me pegou bonito.”
“Obrigada”, ela deu de ombros parecendo sinceramente agradecida,
como se eu realmente quisesse agradecê-la por aquele falso papel que ela
desempenhara. “ Eu me chamo Maitê. Na
verdade tô muito interessada no trabalho de vocês. Fiquei deslumbrada e queria
saber se você pode me ajudar”.
Nessa hora, não sei o que
aconteceu exatamente. Mas ali, tão de perto, pude constatar que a ruivice dela
era ainda mais encantadora. Nossa! As ruivas definitivamente são as melhores.
Ela poderia ter uma irmã gêmea com o mesmo corpo bonito e tudo mais, só que se
a irmã fosse loira, morena ou qualquer outra cor, eu preferiria ela, só por ser
ruiva. Reparei que os lábios se mexiam, acho que ela estava dizendo algo. Pra
fingir interesse, disse uma abobrinha qualquer:
“Claro, é natural que alguns estudantes de Psicologia queiram se
aprofundar mais no trabalho da agência e entender melhor como funciona”.
“Cara, você não ouviu nada do que eu disse. Eu sou estudante de
Comunicação Social, então meio que fui de penetra àquela palestra. E eu estou
querendo um serviço de vocês, é isso.”
“Ah, é? E quem é essa pessoa que nós vamos tirar do seu coraçãozinho?”
“Hummm, é aí que tá. O que eu quero é um serviço contrário.”
“Como assim?”
“Eu quero que alguém se desapaixone por mim.”
Aquilo sim me pegou muito mais do
que ela se fingindo de tapada na palestra. Por alguns segundos esqueci que ela
era ruiva e fui arrebatado por aquele cheiro de desafio.
“A gente nunca fez isso. Quero dizer, geralmente o serviço é contratado
por um cliente que quer se convencer que pode não gostar mais do seu objeto de
paixão. Mas o objeto de paixão ser o cliente, essa é nova.”
“Pois é, cara, tô precisando muito dessa ajuda. É um namorado
complicado que eu tenho, muito possessivo, muito arrogante. Eu já me
desapaixonei dele há séculos, mas tô com medo de colocar um ponto final e ele
ficar me enchendo o saco. Quando vi vocês hoje na faculdade, achei a solução
ideal.”
“Bom, Maitê, acho que a gente pode conversar melhor outra hora. No
momento eu tô com pressa, então se puder me dar o seu número...”
“Claro, Sávio. Ufa! Só de saber que você vai levar meu caso em
consideração, já me deixa mais aliviada. Mas, por favor, me liga o quanto
antes.”
Essa gata mal sabia que nem
precisava ter pedido isso. Consegui, em uma tacada, duas coisas fantásticas: um
caso incomum com grandes chances de ser bem interessante e um contato próximo com
aquela beleza de mulher. Parti dali extremamente confiante de que, num futuro
nada distante, eu vou levar Maitê pra sair. Um dos cinco mandamentos que temos
na ANNA diz que não devemos ter qualquer envolvimento emocional com um cliente
ou com seu objeto de paixão. Pois bem, não haveria como me envolver emocionalmente
com alguém por quem meu interesse é estritamente físico. Além do mais, Milena
não precisaria saber dessa parte.
Domingo, dias das mães. Sinônimo
de pânico pra mim. Não, não odeio minha mãe. Mas qualquer comemoração dessa
natureza é motivo para algo que me angustia: gente em casa. Tipo assim, muita
gente. O nome da minha mãe é Lola e, ao contrário de mim, ela adora agregar o
máximo possível de parentes em qualquer ocasião. A minha antissociabilidade é
como um bicho de estimação feroz que eu tenho que guardar em dia que a casa
fica cheia, para não incomodar as visitas. E não adianta inventar que vou sair,
até porque domingo é o único dia em que não fazemos qualquer serviço para a
agência. Minha sorte é que a Milena foi convidada pro almoço/festa, já que ela
não tem mais sua mãe. Quer dizer, não foi tanta sorte assim, já que a minha mãe
nunca perde a oportunidade de dizer a cada encontro que Milena e eu vamos
acabar no altar.
“Mãe, vira esse disco. Todo mundo já ouviu a senhora dizer que a gente
vai casar. Não tem mais graça”, eu tento em vão deixá-la ciente dessas
tolices repetitivas.
“É, dona Lola, o seu filho não serve pra mim”, Milena faz a parte
dela, ao mesmo tempo em que não ajuda muito tentando me detonar na frente de
todos.
“Que lindo, gente! Estão vendo como eles se amam?”, essa é a Dona Lola
provando que não liga pra nada que a gente fale para protestar contra suas “previsões”.
Para espairecer a agonia que é
estar cercado por tantos familiares vindos de todos os buracos da cidade, vou
até a sala praticar um dos meus hobbies favoritos.
“E aí, maninha?”, eu chego pegando nos cabelos castanhos, longos e
sedosos dela.
“Vai se catar, Sávio!”
“Eu te amo, minha Rapunzel!”
“Vai levar um pau daqui, isso sim, se não parar de me irritar!”
“Credo, como ela é melindrosa! Olha que eu passo a tesoura nessas
madeixas lindas, hein! Se eu fosse você teria muito cuidado ao dormir.”
Adoro zoar de vez em quando o meu
irmão mais novo, o Dominique. Ele tem 17 anos e sem dúvida alguma seus cabelos
longos e macios são sua marca registrada. Óbvio que eu nunca falei e nem
falarei isso a ele. Elogios são
manifestações de uma guarda baixa quando se vive em conflito. Ele meio que
me odeia porque eu sempre tiro uma onda com a cara dele por ter feições um
tanto femininas. O guri tem namorada e tal, mas acho que ele ama mais os
cabelos do que a garota. Não nasce um fio de barba no sujeito, e sua voz parece
a de um anjo. Sem contar que mamãe fez uma bela sacanagem ao lhe dar um nome
que pode ser usado tanto para batizar meninos quanto meninas. Lembro de quando
éramos mais novos e ele foi reclamar para a mamãe da primeira vez em que eu o
chamei de “maninha”. Dona Lola já ia pegando o cinturão pra esquentar minhas
carnes quando me defendi argumentando que, mais cedo ou mais tarde, alguém na
escola ia perceber que a aparência de Dominique lembrava a de uma garota e a
escola logo se tornaria um inferno pra ele. Mamãe admitiu que fazia sentido e
até disse que eu estava tentando ajudá-lo a se preparar para aquela situação,
mas como já estava com a mão na massa, deu-me umas cintadas para não perder a
viagem.
Senti o celular vibrando,
mensagens de Maitê. Ela querendo saber quando eu começarei o serviço (sim, eu
topei, e Milena me apoiou dizendo que o desafio seria bom para a empresa).
Algumas das mensagens até mesmo vinham com emoticons de coraçõezinhos e
carinhas sorridentes. Bom sinal. Mesmo que às vezes seja apenas um truque
emocional feminino para conseguir nos manipular, a verdade é que o uso de
certos emoticons em aplicativos de mensagens e similares deixa uma pequena
abertura cuja expansão vai depender da pessoa que vai responder, isto é,
sabendo tirar proveito dessas imagens que demonstram simpatia e mantendo a
conversa sempre nesse tom, até que ela vá ganhando contornos de mais liberdade.
Sim, Maitê, estou empenhando em ganhar você. E sim, eu sei o quanto soa
machista da minha parte, mas tanto homens quanto mulheres sempre estiveram em jogos
de interesses em matéria de conquista. Você não faz ideia dos poderes
misteriosos que uma ruiva carrega nos cabelos.
“E aí, o que você já descobriu pra iniciar o caso?”, Milena me
indagou num momento em que ficamos a sós na cozinha.
“A Maitê passou na agência e preencheu o formulário. O nome do cara é Átila
Gonzalez. Ela disse que ele é filho de colombianos, empresário do ramo de
produtos de limpeza. Gostos musicais: sertanejo, forró e... hip-hop, o que pra mim não tem nada a ver, mas vamos respeitar
o ecletismo do cara. Ele tem personalidade forte, gosta de se impor, é um tanto
autoritário, competitivo, ciumento, possessivo e não poupa esforços quando pode
humilhar alguém.”
“Nossa, tem certeza que você descreveu um ser humano?”
“Levando em conta que a humanidade tá cada vez mais perdida, então ele
é um belo exemplar de ser humano.”
“Tá, mas se é ele que tem que se desapaixonar dela, então não deveriam
ser os dados dela que você deveria
analisar a fim de conseguir material pra ele se desencantar?”
“Milena, você me conhece. É claro que eu também já peguei essas
informações. Maitê estuda Comunicação Social, além de fazer uns bicos como
dançarina de flamenco e dança do ventre, pratica natação, tem poucos amigos nas
redes sociais porque boa parte deles o tal do Átila mandou ela excluir. Ela
adora fotografia e gatos. Enfim, tem outras coisas também mas esses são alguns
exemplos do que eu sei sobre ela”, fiz questão, é claro, de não mencionar
que Maitê era ruiva, pois conhecendo meu fraco por ruivas, Milena poderia
suspeitar na hora que eu tinha um interesse extra no caso.
“Flamenco, dança do ventre, natação... Parece uma espécie de versão
alternativa da história de A bela e a Fera, né? Tipo, o Gonzalez nesse caso seria literalmente uma fera. Não me
admira que o cara tenha tanto ciúme, essa Maitê deve ser bem visada por aí. Ela
é bonita?”
“Bonita? Hummm... Até que é simpatiquinha...”
“Entendi. Vai precisar de alguma ajuda minha?”
“Não, tô tranquilo. Valeu!”
Foi o momento menos desconfortável
daquele almoço de domingo, até minha mãe aparecer bem na hora e parar diante de
nós e começar a cantar que um dia a gente ainda vai se casar. Me senti um
adolescente cercado por amigos de escola muito a fim de me constranger. O pior
é que ela fez isso batendo palminhas.
Dava pra ser mais ridícula, mãe?
Passei os quatro primeiros dias
da semana seguinte indo atrás do tal do Átila Gonzalez para todos os lados. Meu
objetivo era ter um panorama geral do seu dia-a-dia e, posteriormente, traçar
um perfil cruzando com os dados da Maitê. E eu não parava de pensar nela. Tinha
que ser cauteloso. Não poderia livrá-la de um cara e me jogar com tudo na vida
dela, pois minha intenção não era fazê-la se apaixonar por mim, mesmo sabendo
que não me seria árduo fazê-la perder o interesse depois, quando eu bem
quisesse.
O tal do Gonzalez, apesar de ser
um empresário do ramo de produtos de limpeza, sempre andava acompanhado de uns
sujeitos bem estranhos. Geralmente dois. Mal-encarados, como se fossem seus
guarda-costas. Ou talvez fosse apenas coisa da minha cabeça, julgando as
pessoas pelas suas fuças intimidadoras.
Despertei dos meus pensamentos
profundos com um homem que bateu na janela do meu carro. Ele me pediu ajuda
porque seu automóvel ficou no prego e precisava de gente para empurrá-lo.
Lógico que eu odiei ter que interromper a investigação, mas vi que não levaria
mais que uns reles minutinhos. E já havia outros dois homens que também iriam
ajudar, todos com aquele sorriso bobo que as pessoas trocam entre si quando
estão compartilhando momentos de apuros.
Quando me aproximei do bendito
carro do homem, apenas senti uma presença por trás de mim e então minha vista
ficou escura. Acho que colocaram um saco de pano na minha cabeça e depois...
depois simplesmente apaguei.
<< CONTINUA NO PRÓXIMO EPISÓDIO>>
Um comentário:
Aaaaaaaaaah!!! 3h da manhã eu lendo essa série (que por sinal adorei, e me diverti lendo) mas fazer este último episódio terminar assim é tortura!! Haha :/ parabéns, prof. Marcos, está muito legal a série Desapaixonante, acho que todo mundo que lê se identifica de alguma maneira. :) espero que o próximo episódio não demore. Quem é viciada séries, como eu, sabe o quanto a expectativa é enorme pro episodio seguinte, principalmente quando termina como esse quinto. To aqui aflita com o que pode ter acontecido com o Sávio!
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