(Narrado por Milena)
Nada melhor do que passar um
tempo com seu namorado amado vendo filminho com pipoca, agarradinhos no sofá, à
meia-luz, aproveitando esse presente tão maravilhoso que a vida te deu, não é
mesmo? Bom, não para mim. Conforme já confessei, venho perdendo cada vez mais o
interesse no Enzo e, por dentro, sinto-me entediada ou irritada por qualquer
coisa que ele diga e faça. Um simples programinha de casal com ele é suficiente
para eu querer correr da sua presença e preferir qualquer outra coisa, sozinha,
ou acompanhada de amigos. Estou
desapaixonada. Por outro lado, não existe outro cara, o que me daria um
motivo muito mais fácil e rápido para terminar esse relacionamento. Mas não! A
vida não é tão gentil a esse ponto. A vida é uma filha-da-mãe que quer te ver
sendo torturada, amarrada e amordaçada ao sol do meio-dia nua e deitada de
costas no asfalto. Sim, porque não bastaria o Enzo ser um homem bonito e
simpático; ele também é muito legal comigo. Você tem ideia do quanto é doloroso
tramar o fim de um relacionamento com uma pessoa tão bacana? Você se sente o
vilão dos pesadelos do Freddy Krueger. O Enzo tem seus defeitos, obviamente,
mas eu só percebi ao longo do tempo e por estar acostumada a identificar
possíveis traços desapaixonantes nas pessoas.
Já me ocorreu que o trabalho na
agência é um risco e tanto para minha vida sentimental, mas eu amo o que eu
faço. Infelizmente quando se tem esse tipo de talento, fica impossível
interagir com as pessoas e esquecer que, por baixo de suas camadas
encantadoras, existem pontos que podem ser muito desagradáveis. Os seres humanos são como ramalhetes: flores
que encantam até o momento de murchar.
A verdade é que já tentei algumas
estratégias bem sutis para reverter a situação, isto é, fazer o Enzo se
desapaixonar por mim. Já inventei brigas do nada, escândalos em público,
implicâncias repentinas, pedidos absurdos em lanchonetes (como os dois
hambúrgueres com fritas que eu me arrependi amargamente de ter comido, tentando
assustá-lo com a minha gula). Mas só depois me toquei da minha idiotice: eu não
estava sendo a Milena, eu estava apenas sendo mulher. E a cada vez que eu
inventava de aplicar alguma dessas estratégias, era ele quem vinha depois me
pedir desculpas por algo que ele nem tinha feito.
A verdade é que isso está me
matando e quanto mais eu perco meus sentimentos pelo Enzo, mais ele se apega a
mim. Eu preciso dar um jeito nisso,
mas só de imaginá-lo machucado já me dói também.
Dias atrás, tive uma reunião em
casa com o Sávio. Falamos sobre o aplicativo que queremos criar da ANNA. Ele é
meio contra, já que seria uma empreitada não-lucrativa. Uma posição muito
conveniente, eu diria, já que ele foi o meu primeiro “cliente”, digamos assim,
e eu nunca lhe cobrei nada. Mas agora, que ele também está no negócio, vem com
essa de que devemos sempre ser pagos pelo serviço. Ora, compartilhar um pouco
do que sabemos com o resto do mundo não vai nos deixar mais pobres. E eu sou da
opinião de que, se você tem um dom, parte dele precisa ser compartilhado sem
que você espere retorno financeiro.
O Enzo tem um ciuminho do Sávio,
mas eu já disse a ele que não tem nada a ver. Sávio e eu somos amigos desde a
adolescência e, pra mim, seria mais possível encontrar meu cachorro à mesa do
café lendo as notícias do dia do que eu me apaixonar por ele. E eu nem tenho um cachorro. Seria, sei lá,
como me apaixonar por um irmão. Nem mesmo há qualquer tensão sexual entre nós,
como muitas vezes há numa amizade forte entre homem e mulher. Certa vez ele me
veio com a história de que a mãe dele, dona Lola, acredita piamente que um dia
a gente vai se casar. Eu apenas tomei um gole de chá gelado e ri que nem uma
desvairada por quase meia hora. Saiu chá até pelo nariz. Ele também riu e
juntos a gente definiu que não teria como nascer um sentimento maior que
amizade. O Sávio tem um certo probleminha emocional depois que a Anna (a garota
que inspirou o nome da nossa agência) terminou com ele. Depois que você aguenta
por mais de um ano um cara lamentando a perda de um grande amor, vendo-o
mergulhado nas mais diversas situações embaraçosas, você consegue ficar imune à
qualquer paixão por ele. Nunca me esquecerei da fase em que ele bancou o
gótico. Faria o cantor Pablo sentir dó. Só não abraçou a causa emo com a mesma dedicação porque eu o
filmei cantando bêbado uma música do Simple
Plan. Ele se deu conta do papelão e parou com a graça na mesma hora. Como
eu disse, eu posso ser bem convincente quando eu quero.
Por ser esse homem de coração
mais blindado hoje, é que não existe encanto que me atraia no Sávio, em termos
de paixão. Ele é muito solícito comigo, dedicado, profissional, divertido, mas
às vezes se prende muito ao próprio mundo, é um tanto antissocial. Não gostaria
de arriscar tantos anos de amizade.
Chegando à agência para mais um
dia de trampo, deparo-me com Madonna, nossa secretária, admirando um buquê de
rosas vermelhas. O nome dela não é Madonna, mas foi um apelido que, segundo
ela, pegou por causa de sua “incrível semelhança com a rainha do pop”. Eu ainda
não encontrei essa semelhança, mas essa era a justificativa que a própria
Madonna me dera quando eu a perguntei certa vez como ela gostaria de ser
chamada. Deve haver algo muito errado comigo para não ter notado ainda essa
INCRÍVEL semelhança.
“Arranjou um admirador, Madonna?”, eu vou logo toda curiosa olhar o
buquê junto com ela.
“Quem me dera, dona Milena! Essas rosas são pra senhora.”
Enzo tornando cada vez mais
difícil lidar com a vontade de terminar com ele. Dá vontade de ligar e dizer “Que droga, pare de ser legal, caramba! Por
que você não consegue ser um imbecil como todos os homens? Tinha necessidade de
mandar essas rosas maravilhosas e tão perfumadas, que qualquer mulher na face
da Terra adoraria receber? Por que você não me troca por uma partida de
futebol, hein? Que saco!”
Às vezes acho que ele já sacou
tudo e faz só de pirraça. Leio o cartão que acompanha as rosas: Obrigado por tudo, você simplesmente me
fascina. Que mulher não se derreteria com uma declaração dessa? Confesso
que acho fofo, romântico e que é uma dádiva ter um namorado assim, no entanto
não faz com que eu me reapaixone. Eu adoraria que isso acontecesse, sério. Ao
contrário do que muitos pensam, não é por ser uma agente do desapaixonamento
que eu não valorize o bem-estar que a paixão causa, das vantagens existentes
numa estabilidade afetiva para quem está numa relação firme. Só que, como toda
verdade que dói, meu coração não se entusiasma mais pelo Enzo.
Já na minha sala, arrumo as rosas
num vaso e coloco perto da minha mesa. Elas dão uma cara mais alegre e até
chique ao ambiente. Meus clientes entrarão aqui e saberão que sou amada. Ok,
pensar nisso me tortura ainda mais. Coloco uma musiquinha no computador, olho
uns e-mails, pego o relatório do último caso resolvido pela ANNA. Acho a maior
graça no relatório que o Sávio fez sobre um caso em que o cara tava traindo a
esposa e alegava que, apesar de ter uma amante, seu amor pela esposa era o
mesmo. Gente, mas que cachorrada!! Se isso é amor, então esse senhor deveria, no
mínimo, nascer de novo para que seu sistema de moralidade fosse redefinido. Mas
aí eu descubro que a história deu uma boa guinada e eu quase choro com o final
que teve. O amor venceu. O amor. O
amor. Droga, isso dá uma martelada na minha cabeça. Quão diferente eu sou do
cara que tava traindo a esposa? Só por que não estou saindo com outro homem,
sou menos má que ele? Pra falar a verdade, acho que eu sou. Mas também não
estou sendo totalmente sincera com Enzo, e ele está perdendo tempo comigo.
Algumas horas depois, Madonna liga
pra minha sala, avisando que um cliente que atendi na semana passada está
querendo falar comigo. É o Jean Pierre, um gordinho que sempre anda de terno e
gravata e tem nome francês em homenagem a alguém da família que morou na França
(que maneira estranha de homenagear alguém, mas enfim). Jean Pierre sempre
gosta de andar bem arrumado. Ele está no último ano de Direito, tem uns 26 anos.
Entrou tarde na faculdade. Não sei que advogado ele daria, mas se houver o
quesito elegância no exame da OAB, nisso ele se garante.
Recebo ele em minha sala,
levanto-me assim que ele entra. Seu sorriso lembra o daqueles amigos gorduchos
que todo mundo tem, com as bochechas proeminentes e um olhar que denuncia um nerd que passou muito tempo da vida
entre games e batatinhas ruffles. Óculos de aro grosso, barba,
excelente cliente. Semana passada ele entrou aqui com um caso clássico nas
mãos: apaixonado por uma garota que nunca deu bola pra ele até que, do nada,
ela começou a notá-lo e, mais do que isso, a flertar com ele pela Internet.
Alguém disse ao Jean Pierre que ela o estava iludindo, pois sempre saía com
vários caras diferentes. Ele descobriu a verdade: que era o número sete na
lista dela, e entrara milagrosamente nessa tal lista depois que começou a ir
pra faculdade com o carro do pai. Ou seja: o carro havia se tornado o seu
charme, e ele achando que eram suas “boas piadas”. Ele parou de manter contato
com a moça, mas não perdeu a paixão por ela. E foi assim que ele veio parar no
escritório da ANNA.
Resumindo: tive que seguir a
dita-cuja pra cima e pra baixo. A menina não tem limites. Ela vai do lixo ao
luxo, do glamour à bagaceira. Dependendo de com quem ela estava saindo, tive
que pisar numas festas bem tensas, com direito a funk proibidão e uma sensação
de “tudo liberado” no ar. Mas a bonitona também me fez entrar nuns restaurantes
maravilhosos. Como toda boa gordinha, aproveitei para unir o útil ao agradável
e pedi um prato chique e saboroso. Depois de alguns dias, levantei o material
necessário, levei para o Jean Pierre e ele examinou tudo minuciosamente. Deu
uma choradinha (mentira, chorou de soluçar) e depois me garantiu que ia levar
um tempinho, mas ia esquecer da fulana (esqueci o nome, acho que era Soraia).
Ele ficou impressionado com a minha eficiência, enquanto eu fiquei
impressionada em como ela é tão vagabunda. O Jean se sentiu usado e ludibriado,
e eu disse a ele que era exatamente isso. Não foi de muita ajuda na hora, mas a
gente sempre tem que dar algum tipo de solidariedade ao cliente, né? Tipo, ele
sabia que a garota era de caráter duvidoso, mas vê-la e ouvi-la em ação,
zombando dele num dos áudios captados, isso era muito mais convincente. Ele
ficou devastado.
Enfim, eu só espero que o Jean
Pierre diante de mim não esteja fazendo uma visita para informar de uma
recaída.
“Mas que surpresa, Jean Pierre!! O que o traz aqui?”
“O carro do meu pai, aquele que fez a Solange se ‘apaixonar’ perdidamente por mim”, responde ele,
dando um exemplo de mais uma de suas tiradas sarcásticas. Não curto, mas forço
uma risada pra ir na onda.
“Ah, não fala assim, Jean. São águas passadas, não são?”, eu
torcendo pra que ele confirme, pois eu não estou com a mínima vontade de
refazer o processo pra ele se desapaixonar, ainda por cima pela mesma menina desclassificada.
“Sim, sim, com certeza. Estou aqui por outro motivo”.
Comemoro mentalmente. Mesmo que
ele estivesse apaixonado por outra pessoa em apenas uma semana depois da
Solange, seria muito melhor do que pisar em locais terríveis como os que fui
forçada a ir.
“É que eu estou apaixonado novamente, Milena”.
“Mas já? Meu Deus, Jean. Acho que você tem que colocar umas rédeas
nesse seu coração galopeiro aí, né? Mal faz uma semana que você se livrou da
Solange”, essa sou eu sendo bem honesta, porque não sou obrigada a amenizar
a verdade para os meus clientes.
“É, eu sei, Milena. Mas foi assim, aconteceu. Eu na verdade não sei
como, quando eu vi já tava que nem um panaca pensando nisso toda hora. Foi por
isso que vim aqui perguntar pessoalmente o que você achou das rosas.”
“Oi?”
Oi?
“Rosas?”
“É, as rosas. Essas aí”, ele aponta para o buquê dentro do vaso,
recém-colocado. O buquê que ganhei há cerca de três horas antes. O mesmíssimo
buquê que eu pensei ter sido enviado pelo Enzo.
“Então foi você... As rosas vieram de você?!”
“Isso, exatamente”
“Mas por quê? O que foi que eu te fiz?”, eu cruzo os braços e nem
me toco que faço uma pergunta a ele como se eu tivesse acabado de ser punida
por algo.
“Eu me apaixonei por você, ué. Olha, espero que tenha gostado das rosas”,
Jean Pierre desfaz o sorriso que costuma levar na face, vira as costas e faz
menção de ir embora.
Eu mal estou dando conta de um
namoro que ando querendo terminar, agora a vida resolve esfregar na minha cara
que ela quer e consegue me sacanear mais ainda. É aí que saio de trás da minha
mesa, puxo Jean Pierre gentilmente pelo braço, olho em seus olhos e digo:
“Jean Pierre, presta bem atenção. Você é gente fina, um cara muito
legal mesmo e não merece ser humilhado por mulher alguma. Lá fora tem alguém
que vai te valorizar pelo que você é, não pelo que você tem ou usa emprestado,
como o carro do seu pai. Eu nunca seria boa pra você. Sabe por quê? Porque eu
não sei administrar um relacionamento. Eu sou um fracasso nisso. Eu finjo que
tá tudo bem, eu fico adiando coisas pra fazer e dizer. Eu engano dizendo que
gosto de algo quando na verdade tenho vontade de rasgar e quebrar todos os
objetos decorativos ridículos que eu concordei que você deveria comprar só pra
você se sentir apoiado. E sabe o que mais, Jean? Eu odeio maratona Star
Wars, eu já vi os seis filmes e me bastou
ter visto cada um apenas uma vez, entendeu? Mas eu fico lá assistindo só pra você
se sentir querido, com uma namorada companheira do lado. E sabe o que mais,
Jean? Eu sinto culpa toda vez que minto dizendo que não dá pra sair com você,
porque nesses tempos até a sua voz me dá um embrulho no estômago. E eu já quero
dar um basta nisso, mas toda vez você faz alguma coisa maravilhosa por mim e me
deixa de mãos atadas, entendeu, Jean?”
Jean Pierre está na minha frente,
boquiaberto. Eu me calo, com a respiração ofegante e realizo que misturei
tantas coisas no meu discurso. Acabei desabafando com ele tudo que eu ando
querendo contar para o Enzo. Que tipo de maluca eu sou?
“Desculpa, Jean Pierre”
“Milena, isso foi muito estranho. Eu nem gosto de Star Wars. Tem certeza que tava falando comigo??”
“É uma longa história. Enfim, o quinto mandamento da minha empresa diz
que eu não poderia me envolver emocionalmente com um cliente. Além do mais, eu
tenho namorado. E além do além do mais, você não me atrai. Mas valeu mesmo
pelas rosas. Posso ficar com elas?”
Espero não ter machucado o
coração frágil do Jean Pierre. Ele se despede numa boa, fala que posso ficar
com as rosas e que a vida é assim mesmo e que o mundo dá voltas (odiei essa
parte, isso indica que ele pode insistir em me conquistar). Sozinha na minha
sala, me deparo com a loucura que se tornou minha vida ultimamente. A ironia de
ser bem eficaz no tipo de trabalho que faço, mas falhar tremendamente ao tentar
aplicar esse trabalho na minha própria vida. Jean Pierre deve estar fazendo o
caminho de volta no carro do pai, enquanto eu ainda estou sem uma solução para
o meu problema com o Enzo. Entretanto, sei lá... Estou me sentindo ligeiramente
melhor pelo desabafo que fiz, mesmo não tendo sido como deveria ser. Para quem
deveria ser. Mas valeu o “ensaio”.
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