(Narrado por Sávio)
“Que tal AnnApp?”
“Odiei”.
“Por quê?”
“Porque, além de feio e parecer nome de um órgão público ou uma
associação, parece uma cópia idiota da sacada do nome WhatsApp.”
Tenho que concordar com Milena. AnnApp. Onde eu estou com a cabeça? É um
nome que não tem uma pegada legal, é sem força. Estamos na casa dela, bebendo
chá gelado e conversando sobre o aplicativo que eu venho desenvolvendo.
Exatamente, um aplicativo da ANNA, com dicas e outras coisinhas legais para
estarem acessíveis na palma de qualquer mão que tenha um celular. Parecemos
dois velhos por adorarmos passar um tempo juntos bebendo chá gelado, mas é que
apesar de estarmos na casa dos vinte e tantos, somos meio cafonas mesmo.
“Ainda não sei se essa ideia de aplicativo é legal”, Milena parece
recuar outra vez na ideia que ela própria teve algumas semanas atrás. Eu já a
conheço bem para não deixar que essa gangorra me influencie, pois daqui a
alguns minutos ela tornará a adorar a ideia, para então voltar a odiá-la e
assim manter o ciclo.
“Seria como uma amostra grátis dos nossos serviços. A gente não
perderia dinheiro, pois o que faz diferença financeiramente é o processo de
desapaixonamento na prática, coisa que não teria como rolar apenas usando o
aplicativo”, eu replico, parecendo um desses nerds de filme cujas funções são entender de computadores e morrer
antes dos protagonistas.
A ideia do aplicativo nasceu de
uma latente vontade de ajudar o mundo. Quero dizer, a própria ANNA nasceu, de
certa forma, da mesma vontade, mas nem todo mundo pode pagar por um serviço
personalizado. Pensando nisso, Milena-coração-de-manteiga resolveu que seria
interessante compartilhar algumas dicas para que, na medida do possível, as
pessoas pudessem dar conta sozinhas de não ir tão fundo numa paixão duvidosa ou
evitar problemas com paixões complicadas ou proibidas. O “cardápio” do
aplicativo e o seu nome são a pauta da reunião na casa da minha sócia.
“É, acho que você tem razão, Sávio. Esse aplicativo vai bombar”,
ela volta a crer na ideia e eu volto a ter certeza de que realmente sei com
quem estou lidando.
Volto para casa de uma reunião não
concluída. Decidimos que não precisamos nos apressar e eu dirijo impressionado
com o fato de que gastamos muito mais tempo falando bobagens do que discutindo
sobre o aplicativo. É duro ser amigo de alguém há séculos como eu sou de Milena
e tentar manter mais de trinta minutos um papo sério, compromissado. Quando eu
vi, já estávamos falando sobre como estamos loucos para ver este ou aquele lançamento
no cinema, emendando num piscar de olhos para outro assunto completamente
diferente. E não importa sobre o que a gente fale, é inevitável que a gente ria
disso em algum momento. Milena é espirituosa, sincera, direta e quase nunca
deixa passar nada, o que a torna incrivelmente divertida também. É, eu sei o
que todo mundo pensa disso. Que deveríamos namorar ou algo do tipo, que somos
almas gêmeas e sei lá mais o quê. Para ser sincero, Milena e eu também rimos
muito quando o assunto vem à tona. Não vou negar: existe uma tensãozinha sexual
no ar de vez em quando ao estarmos juntos, mas ela e eu já tivemos essa
conversa. E sabe o que é ridiculamente curioso? É justamente por nos
conhecermos há tanto tempo que a gente não se apaixona um pelo outro. Existe
algo que anula a possibilidade de um encanto romântico entre nós. O dia-a-dia
de fazer as pessoas se desapaixonarem meio que nos garantiu essa imunidade
contra a paixão que, Deus nos livre, poderia destruir nossa amizade para
sempre. A gente se ama do nosso jeito e estamos muito felizes assim. Ah, sim,
tem o fato de ela namorar o Enzo, é claro. Fim da história.
A secretária anuncia que o
cliente daquela manhã já está aguardando. Eu o chamo de Sr. Moreira. Sujeito
alto, com um andar um tanto encurvado e um rosto com marcas de cravos (pelo
menos eu acho que são de cravos). É até elegante, eu diria. Parece estar na
casa dos trinca e poucos.
“Bom-dia, Sr. Moreira. Eu sou o Sávio, pode se sentar. Em que posso ajudá-lo?”
“Bom-dia. Eu vi o anúncio de vocês no Facebook e decidi vir conferir”.
“Ah, que bacana. O senhor tem um caso pra nós?”
Sr. Moreira entorta um pouco a
boca e já sinto que alguma coisa bem tensa está para sair dos seus lábios. Ele
me diz que está casado há 6 anos, ama a esposa e tal, mas... O nome de seu
problema é Margot. Confesso que eu quis rir e perguntar em que zona ele havia
encontrado tal mulher com esse que parece um nome de guerra. Mas a educação que
meus pais me deram me fez reprimir o riso com uma discreta tossida, um recurso
bastante utilizado por todo mundo.
“A culpa de estar traindo minha mulher com a Margot está me consumindo
aos poucos, Sávio. Definitivamente existe algo muito errado comigo, porque eu
não tenho um motivo real para estar fazendo isso. Eu sei que amo a minha mulher.”
Se a Milena estivesse atendendo
este senhor, ela não pensaria duas vezes antes de interrompê-lo dizendo que
aquilo era na verdade uma grande cachorrada e que se ele chamava de amor aquilo
que sente pela mulher, ele estava precisando nascer de novo para que seu
sistema de moralidade fosse redefinido. Eu não falaria esse tipo de coisa pelo
simples motivo de eu não saber com absoluta certeza o que é o amor.
“Desde que eu comecei a me relacionar com a Margot, não tenho pensado
em outra coisa a não ser nesse lance proibido que a gente tem”, nesse momento
o olhar do Sr. Moreira brilha tanto. Odeio quando o olhar do cliente brilha.
Faz eu me sentir arrasado por ser o carrasco que vai decapitar aquela paixão
tão vívida. Então me lembro que essa paixão pode deixá-lo em apuros. É estranho
lidar com essa dualidade: o homem diante de mim parece radiante, o que deveria
ser bom, mas a razão pela qual ele está assim, do ponto de vista moral, é digno
de um canalha.
O pior é que eu entendo o Sr.
Moreira. Não sei o que é me apaixonar há tanto tempo que acho que sou blindado
contra isso, então eu diria que meu coração é muito leviano. Eu entendo o Sr.
Moreira por duas boas razões: com o coração leviano que eu tenho, me interesso
e desinteresso por alguém numa velocidade absurda; e, por ser um homem que não
compreende as “regras” do amor, não consigo julgá-lo por gostar de duas
mulheres. Tipo, existem tantas pessoas legais no mundo que eu desconfio que
seja meio insano estar atraído apenas por uma. Mas na real, eu queria ter esse
dom, eu queria partilhar dessa insanidade. Não, não é sarcasmo. Deve ser esse
meu senso desequilibrado de fidelidade que afasta qualquer chance de Milena se
apaixonar por mim.
“Não vou mentir, Sávio. Eu só vim aqui
porque vocês falaram na ligação que iam me dar um desconto, mas eu estava com
medo de sair muito caro. Odeio gastar demais”.
Devo dizer que o espírito de
bondade que habita em Milena foi o responsável por esse tal desconto, mas ela
acredita que é válido porque assim captamos clientes que vão divulgar nossos
serviços para outros possíveis clientes. Faz sentido, mas dói um pouquinho.
“Aqui, Sr. Moreira. Preencha este formulário.”
Ele pega o formulário um tanto
hesitante. Lá tem umas perguntas direcionadas sobre o caso, e são as respostas
do cliente que vão me ajudar a trabalhar.
“Espere aí, Sr. Moreira”, algo me chama atenção ao ler o que ele
colocou no formulário. “É da sua mulher
que o senhor quer se desapaixonar?”
Envergonhado, ele baixa a cabeça
e eu entendo que aquilo é um sim. É aí que, na minha mente, soa um apito agudo,
parece um alerta. E eu acho que é a moralidade que ressoa na minha cabeça, me
despertando para o tremendo pepino que foi colocado em minhas mãos. Sr.
Moreira, o senhor é um grande filho da mãe, viu? Pelo menos serve para eu
descobrir que há em mim um radar moral. E que ele funciona.
Em cinco dias levantei alguns
dados muito interessantes sobre dona Adriana, a esposa do Sr. Moreira. Eu a
segui até o shopping, por exemplo.
Ela estava desacompanhada. Notei que ela ri muito sozinha e parece conversar
muito consigo mesma. Filmado e anotado. Vai que é algum tipo de distúrbio mental
que ela tem e que o Sr. Moreira nunca percebeu. Já tivemos clientes que se
desapaixonaram ao saber que o objeto de paixão tinha umas manias bizarras. Ninguém é alguém de verdade até que seu
verdadeiro alguém venha à tona quando ninguém está olhando. Em suma, foi um
saco “acompanhá-la” naquele shopping
por intermináveis três horas e meia. A mulher é uma máquina de comprar. Eu
deveria cobrar um bônus do Sr. Moreira por ter sofrido tanto nesse dia. Se eu
quisesse ser torturado dessa forma, eu arranjaria uma namorada.
Numa outra ocasião, dona Adriana
foi ao cabeleireiro. Fingi ser marido de uma mulher que precisava de
informações sobre aquele salão em particular e, no meio do papo furado,
descobri que dona Adriana havia ido lá para “dar uma repaginada completa”. Estou
a milhas de distância do significado exato de uma repaginada completa, mas
entendi que ia custar uma boa grana.
Falei ao Sr. Moreira que teria
que dar uma olhadinha na vida da Margot também, pois se ele planejava trocar dona
Adriana por ela, eu deveria estar apto a pesar as duas na balança e tentar
favorecer uma em detrimento da outra. Investiguei aqui e ali e descobri que, em
termos financeiros, Margot representava uma economia significativa na vida do
Sr. Moreira. A começar pelo fato de ela ter um bom emprego e a dona Adriana ser
apenas uma dona-de-casa.
Sim, estou me sentindo um lixo
abominável e cheguei até mesmo a considerar acrescentar mais um mandamento na
lista dos cinco que temos na ANNA: não aceitar casos que fazem soar o alarme
moral dos investigadores. Cara, trabalhar em prol do fim de um casamento me faz
ouvir as trombetas do inferno. Mas é meu trabalho e tem alguém pagando por
isso, mesmo que eu me sinta o cocô do verme do zumbi que comeu o cérebro de um
estuprador.
Fiz um apanhado da investigação e
resolvi que ia focar naquilo que poderia ameaçar o bolso do Sr. Moreira, uma
vez que ele parece se importar muito com dinheiro. Já que eu entrei nessa de
fazer uma esposa se tornar desapaixonante para seu marido, então melhor entrar
logo de corpo inteiro. Meu Deus, nunca mais eu pego um caso desses na vida!
Tomei a liberdade de fazer uma
soma dos gastos que presenciei de dona Adriana. Em menos de uma semana, ela
gastou quase dois mil reais. Isso é um pouco menos do que eu ganho trabalhando
na ANNA o mês inteiro.
Finalmente encontro-me com o Sr.
Moreira, já com as fotos e vídeos e o meu comentário para arrematar. Ele está
todo serelepe, até me conta que já reservou na Internet umas passagens para
viajar com Margot. Não sei se eu fico feliz, pois geralmente é a amante quem
fica conhecida como “destruidora de lares”, mas eu é que estou me sentindo
assim.
Ele começa a analisar as fotos,
enquanto eu descrevo o que acontecia durante o momento em que cada uma foi
tirada.
“E aqui é ela na loja de lingerie. Como o senhor pode ver, ela escolheu umas peças muito caras.”
O Sr. Moreira tem um olhar
compenetrado em cada foto, e não deixa margem para interpretações. Portanto,
não tenho como dizer o que ele pode estar pensando neste momento.
“Neste vídeo, como o senhor pode ver, sua esposa está enchendo o carrinho
com vários itens supérfluos. Por exemplo, por que tantos chocolates? E esse
queijo importado? O senhor está vendo? Infelizmente o tempo que o senhor
continuar com essa mulher, será um tempo de muito dinheiro gasto.”
Eu até me impressiono com o meu
profissionalismo, mas em algum lugar o alarme moral ainda retumba com tamanho
vigor que eu só consigo me achar um cara desprezível e nojento.
Após vídeos, fotos e o meu
comentário sobre os prós e contras entre dona Adriana e Margot (mais prós para
Margot e muuuuito mais contras para dona Adriana), o Sr. Moreira vem às lágrimas.
Ok. Agora me sinto infinitamente pior. Ele vai me dar o cheque (com a droga do
desconto dado pela Madre Milena de Calcutá), agradecer pela minha eficiência,
chorar pelo fim do casamento e me fazer sentir um mercenário emocional.
“O que é que estou fazendo, Sávio?”, ele se pergunta e me pergunta,
aos prantos.
“É a vida, Sr. Moreira, acalme-se”, eu falo uma abobrinha qualquer,
pois nem sei o que dizer na hora mas preciso prestar algum tipo de assistência
ao cliente.
“Você não tá entendendo”, diz ele. E com toda razão, pois eu não
estou entendendo mesmo. Ué, o serviço já tinha sido feito. Muito bem, aliás. O
que poderia estar errado?
“Sr. Moreira, o que está acontecendo?”
“Sabe por que ela gastou tanto?”
“Sim, porque ela é uma compradora compulsiva. Aliás, Sr. Moreira,
queria até falar com o senhor. O senhor sabia que ela fala sozinha e ri do nada
também? Sua mulher pode estar apresentando sinais de algum transtorno e...”,
eu estou prestes a concluir minha fala quando ele se levanta da poltrona e me
interrompe, dizendo:
“Eu não sei onde estava com a cabeça, Sávio. Isso que eu estava fazendo
era uma cachorrada e, se eu pensava que o que sinto pela minha mulher é amor,
então eu deveria nascer de novo para assim poder redefinir meu sistema de
moralidade.”
“Oi?”, eu fico mais confuso e até sinto um arrepio quando pareço
sentir o espírito de Milena adentrando o escritório e dizendo aquelas palavras.
“Em alguns dias será meu aniversário de casamento com Adriana. E nas
vésperas ela sempre faz isso: exagera no salão, no shopping, no supermercado...
Ela sempre faz um jantar maravilhoso, veste roupas lindas e deixa o cabelo
fantástico. Mas eu nunca tinha visto os ‘bastidores’ dessa preparação. Tudo
isso que eu vi agora me fez entender que... não existe mulher mais perfeita do
que a minha. Obrigado, Sávio”.
Cara, confesso que me deu vontade
de chorar junto com ele. De repente senti um alívio tão gigantesco, como se mil
sacos de cimento tivessem saído das minhas costas. O Sr. Moreira ali, na minha
frente, confrontando sua própria burrada. E eu, por incrível que pareça,
orgulhoso da minha.
“Vou ligar pra Margot e terminar tudo. Já paguei as passagens da
viagem, mas não tem problema. É a Adriana quem vai comigo.”
Milena e eu rimos um bocado desse
serviço de desapaixonamento, que deu errado ao mesmo tempo que deu certo (o Sr.
Moreira me garantiu que ia esquecer Margot rapidinho). Minha amiga/sócia também
gostou muito de saber que, apesar de eu parecer um cara liberal e descompromissado,
há um tanto de humanidade em mim que grita de vez em quando, e que eu não sou
um psicopata que poderia muito bem ajudar a acabar com um casamento sem um
pingo de remorso. Isso é bem reconfortante, na verdade. E esse meu emprego?
Bem, cada caso é adrenalina pura. Mal posso esperar pelo que ainda vem por aí.
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