A máquina de datilografar jazia
sobre a escrivaninha de madeira gasta. Debruçado na janela em pleno início de
manhã, cigarro entre o indicador e o médio, ele fitava o horizonte purpúreo que
acompanhava o dissipar da neblina. Estava frio. Cabelos desgrenhados, olhos
azuis nada profundos, muito pelo contrário, demasiadamente rasos. Afiados.
Cortantes. Ouviu um latido que vinha de longe e gradualmente se aproximava. Os
cães da rua eram as primeiras criaturas a criar algum tipo de movimento na
vizinhança. Até o tédio se adiantava por ali.
Conforme o céu ia se azulando um pouco
mais, os primeiros carros apareceram, deslocando-se pelas duas mãos da rua num
ritmo moderado. Dona Madá e seu Rubens surgiram, com suas caras avermelhadas evidentes
pela brancura exagerada de suas peles. Toda manhã eles saíam para o cooper. Um fio de sorriso despontou no
rosto de Otho; não que ele gostasse do casal de meia-idade, não mesmo. Havia
uma mesquinharia naquele ensaio de sorriso e ele apenas se deliciava com ela.
Tragou o cigarro com uma empolgação
extra, como o prenúncio por mais daquele breve momento de exultação secreta ao
ver o casal, que acabara de atravessar seu campo de visão e pareciam seguir
alegremente seu rumo dos exercícios matinais. Otho sabia que dona Madá tinha um
cargo de confiança na prefeitura da cidade e que estava mergulhada em
corrupção, embora a cidade em si estivesse alheia a tal situação. Imaginou-a
fazendo planejamento de viagens com os “bônus” que vinha recebendo por sua atuação
profissional. Algum outro país, talvez? Quem sabe algum na Europa, de onde
provavelmente sua família era procedente? Otho sufocou um riso, sentindo-se
imbecil por crer por um momento que o fato de ela ser tão branca tinha de ter
ligação com origens estrangeiras.
Mas os pecadinhos secretos de dona Madá
não tinham muita graça se não fossem somados aos de seu marido, o bom e velho
Rubens. Ninguém jamais comentara, mas Otho sabia que por trás daquela face
eternamente risonha havia um homem com uma implacável sede por abusar da
autoridade. Rubens estava enfrentando, em segredo de justiça, meia dúzia de
processos por assédio sexual e outras infrações afins. Era um patrão generoso,
mas gostava de ser recompensado, e sobrava para algumas funcionárias um pouco mais—digamos—
bem-apessoadas. Dona Madá provavelmente não tinha completa ideia do
comportamento do marido, mas se um dia descobrisse também não seria como a
picada surpresa de uma cobra.
O divertido sobre eles dois, na mente
de Otho, era o quanto podiam fazer uma caminhada nas primeiras horas da manhã
sem o pleno conhecimento do que um aprontava longe do outro. Sim, pois Otho
sabia que o envolvimento da mulher em esquemas de corrupção na prefeitura
estava longe do faro do marido.
Bateu o cigarro no cinzeiro e deu uma
nova tragada. Alguns estudantes começavam a marchar rumo a seus respectivos
colégios. Otho conhecia vários deles: Adriana era a valentona da oitava série e
estava de volta à escola após uma semana de suspensão, mas quanto tempo ela
pegaria se descobrissem de repente que ela era a namoradinha de um traficante e
estava ajudando o dito-cujo a fazer a cabeça da galera na escola?; Denis e
Guilherme eram os amigos inseparáveis que sempre iam juntos, o que todo mundo
estava cansado de ver e saber, mas Otho sentia que apenas ele via nos olhos de
Guilherme a paixão secreta que ele nutria pelo amigo; Brenda era uma repetente
do primeiro ano do ensino médio que todo fim de semana saía com um homem
diferente, a maior parte deles mais velhos e, certa vez, ajudada pela mãe, ela
fez um aborto clandestino para não destruir mais a vida de um dos coroas do que
a sua própria; Melissa e Cláudio eram o casal de irmãos que moravam no fim da
rua, com os avós. Antigamente Cláudio morava em alguma cidade do interior e, um
belo dia, apareceu para somar à família que estava na capital e foi matriculado
na mesma escola da irmã. Aparentemente tudo ia bem desde então, mas Otho
suspeitava que algo poderia mudar drasticamente quando soubessem que o rapaz
veio depressa do interior porque o pai do rapaz que ele quase matou esfaqueado
numa festa não tivera seu apetite por vingança saciado.
Era hora de um bom café. Mas ainda
havia pessoas para passar. O hábito contemplativo de Otho era como um vício, um
ritual a ser religiosamente cumprido todas as manhãs. A cada dia ele vinha
levantando mais cedo, de tanta ansiedade. A rotina da rua era o que determinava
o humor de seu dia. Era capaz de acertar com precisão se teria uma boa manhã ou
mesmo o dia inteiro, simplesmente dependendo do sucesso de uma observada na
vida dos outros.
Otho não se sentia intruso ou algo do
gênero. Que mal havia em se ter informações preciosas e tão comprometedoras
sobre todo mundo? Seria intruso se usasse isto para seu benefício próprio, como
extorquir dinheiro ou garantir favores sexuais. Otho, no entanto, admitia o
quanto era tentador estar ali, do alto do terceiro andar, com destinos inteiros
em suas mãos. O quanto muitas vidas ali mudariam se derrubasse uma peça naquela
fileira de dominós.
Preciso mesmo de café.
Um leve incômodo tomava conta de si,
porque a irritante secretária do escritório de contabilidade ali próximo estava
cinco minutos atrasada. Como ela morava a apenas duas quadras do local de
trabalho e conseguia ser tão estúpida? O tempo de Otho era precioso, ele estava
abarrotado de coisas para fazer no banco, e essazinha achou de escolher justo
aquele dia para demorar tanto a passar. Ela era o último objeto de sua
contemplação, a única de quem ele sabia pouco. Inclusive o nome, Elaide, ele
levara um punhado considerável de tempo para descobrir.
Doze minutos intermináveis se
desmancharam diante de um Otho perplexo, cuja frustração rugia como uma fera
faminta por todo o seu corpo. Sim, ele teria um péssimo dia pela frente, tudo
por causa de algum capricho de uma secretariazinha que, muito provavelmente,
descobrira que pouparia tempo para chegar ao trabalho se pegasse a rua que
passa detrás do prédio de Otho.
Essa tonta não deve ter pensado isso, tem a cara mais idiota que já vi.
Vinte e seis minutos. A boca de Otho
ansiava pelo sabor do café sem açúcar que sua mãe sabia fazer, e se continuasse
a adiar tomá-lo, definitivamente só iria saboreá-lo quando ela preparasse outro
no dia seguinte, pois dali a pouco ficaria com tempo limitado para se arrumar
pro trabalho. Mas a esperança de ver Elaide ainda persistia. E Otho chegou até
mesmo a cogitar se aquilo já não seria obsessivo demais, no que imediatamente
sua cabeça o censurou severamente.
Todos cumpriram seus rituais naquela
manhã, movendo-se para seus respectivos compromissos, exceto a caprichosa
Elaide, o que acarretou em Otho não ter realizado sua observação diária até o
fim também. Ponderou se ela poderia estar doente. Ponderou pegar a lista telefônica
e descobrir o número do escritório de contabilidade, dar uma checada. Hesitou,
é claro. Aquilo estava absolutamente fora de cogitação.
Otho sabia que não tinha Elaide
em suas mãos, como era o caso de todos os outros vizinhos. E isso realmente o
incomodava. Trinta minutos. Aquilo já
era o cúmulo. Se ela passasse ali, com certeza chegaria bastante atrasada ao
trabalho e poderia receber uma inflamada advertência do chefe.
Com um dos punhos cerrados de
ódio, Otho já ia fechar as janelas quando sua mãe entrou frenética em seu
quarto.
“Rápido, Otho! Ligue a TV!”
Ele levou alguns segundos para entender o
que a mãe dissera. Era como se ela falasse outra língua. Otho costumava levar
um tempo para se desligar do seu universo até voltar a interagir com as
normalidades do cotidiano. Um tanto mecanicamente, ligou a televisão para
satisfazer a mãe esbaforida.
“Esse canal não, muda pro 9”, anunciou a mãe, com certa urgência.
Ele estava prestes a estourar com ela e
sua inexplicável tolice em insistir que assistisse a alguma bobagem inútil,
como era de costume dela. Mas o que Otho contemplara na tela do canal 9 foi
estarrecedor. A polícia havia prendido Madalena Sales, sua vizinha com cargo na
prefeitura, por envolvimento num intrincado esquema de corrupção. Ele pôde
vê-la usando a mesma roupa do cooper
de quase duas horas atrás, aos prantos e tentando esconder o rosto das câmeras.
“Bomba,né?”, comentou a mãe.
Uma bomba daquelas!! Com os olhos
pregados nas imagens, o rapaz mal podia acreditar no que se apresentava diante
de si. Naquele momento, Otho soube o que viria. Ele tinha um mau presságio a
respeito daquilo e nem mesmo pôde evitar o arrepio que eriçava os pelos de seus
braços. Estava perdendo o controle. Em poucos meses ou até mesmo dias, uma
cadeia de eventos se sucederiam dali em diante, iniciados por aquela prisão que
ninguém poderia prever, criando um colapso naquele mundo secreto em que ele
tinha pleno domínio. De alguma forma, Elaide tinha culpa de tudo isso. Ela é
quem tinha alterado o curso do universo, a magia do rito de passar por ali todo
santo dia.
Contrariado, Otho virou-se para
fechar as janelas e, depois disso, caminhou perturbado para a cozinha, onde seu
café repousava morno sobre a mesa. Aquele seria um dia longo e com inúmeras
possibilidades desagradáveis.
Enquanto isso, na rua, pairava uma
rotina absurdamente regular. Os carros continuavam se deslocando em ritmo
moderado, as pessoas seguiam suas rotas e o sol prosseguia o curso de escalar o
céu cada vez mais, como um alpinista impetuoso por alcançar o topo de uma
montanha. Em algum lugar naquela manhã, Elaide desembarcava com o marido
algumas caixas de um caminhão de mudanças, no outro extremo da cidade,
totalmente dona de seu destino.
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