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2 de abril de 2015

CONTO: O êxtase da contemplação

       

        A máquina de datilografar jazia sobre a escrivaninha de madeira gasta. Debruçado na janela em pleno início de manhã, cigarro entre o indicador e o médio, ele fitava o horizonte purpúreo que acompanhava o dissipar da neblina. Estava frio. Cabelos desgrenhados, olhos azuis nada profundos, muito pelo contrário, demasiadamente rasos. Afiados. Cortantes. Ouviu um latido que vinha de longe e gradualmente se aproximava. Os cães da rua eram as primeiras criaturas a criar algum tipo de movimento na vizinhança. Até o tédio se adiantava por ali.
        Conforme o céu ia se azulando um pouco mais, os primeiros carros apareceram, deslocando-se pelas duas mãos da rua num ritmo moderado. Dona Madá e seu Rubens surgiram, com suas caras avermelhadas evidentes pela brancura exagerada de suas peles. Toda manhã eles saíam para o cooper. Um fio de sorriso despontou no rosto de Otho; não que ele gostasse do casal de meia-idade, não mesmo. Havia uma mesquinharia naquele ensaio de sorriso e ele apenas se deliciava com ela.
       Tragou o cigarro com uma empolgação extra, como o prenúncio por mais daquele breve momento de exultação secreta ao ver o casal, que acabara de atravessar seu campo de visão e pareciam seguir alegremente seu rumo dos exercícios matinais. Otho sabia que dona Madá tinha um cargo de confiança na prefeitura da cidade e que estava mergulhada em corrupção, embora a cidade em si estivesse alheia a tal situação. Imaginou-a fazendo planejamento de viagens com os “bônus” que vinha recebendo por sua atuação profissional. Algum outro país, talvez? Quem sabe algum na Europa, de onde provavelmente sua família era procedente? Otho sufocou um riso, sentindo-se imbecil por crer por um momento que o fato de ela ser tão branca tinha de ter ligação com origens estrangeiras.
        Mas os pecadinhos secretos de dona Madá não tinham muita graça se não fossem somados aos de seu marido, o bom e velho Rubens. Ninguém jamais comentara, mas Otho sabia que por trás daquela face eternamente risonha havia um homem com uma implacável sede por abusar da autoridade. Rubens estava enfrentando, em segredo de justiça, meia dúzia de processos por assédio sexual e outras infrações afins. Era um patrão generoso, mas gostava de ser recompensado, e sobrava para algumas funcionárias um pouco mais—digamos— bem-apessoadas. Dona Madá provavelmente não tinha completa ideia do comportamento do marido, mas se um dia descobrisse também não seria como a picada surpresa de uma cobra.
        O divertido sobre eles dois, na mente de Otho, era o quanto podiam fazer uma caminhada nas primeiras horas da manhã sem o pleno conhecimento do que um aprontava longe do outro. Sim, pois Otho sabia que o envolvimento da mulher em esquemas de corrupção na prefeitura estava longe do faro do marido.
        Bateu o cigarro no cinzeiro e deu uma nova tragada. Alguns estudantes começavam a marchar rumo a seus respectivos colégios. Otho conhecia vários deles: Adriana era a valentona da oitava série e estava de volta à escola após uma semana de suspensão, mas quanto tempo ela pegaria se descobrissem de repente que ela era a namoradinha de um traficante e estava ajudando o dito-cujo a fazer a cabeça da galera na escola?; Denis e Guilherme eram os amigos inseparáveis que sempre iam juntos, o que todo mundo estava cansado de ver e saber, mas Otho sentia que apenas ele via nos olhos de Guilherme a paixão secreta que ele nutria pelo amigo; Brenda era uma repetente do primeiro ano do ensino médio que todo fim de semana saía com um homem diferente, a maior parte deles mais velhos e, certa vez, ajudada pela mãe, ela fez um aborto clandestino para não destruir mais a vida de um dos coroas do que a sua própria; Melissa e Cláudio eram o casal de irmãos que moravam no fim da rua, com os avós. Antigamente Cláudio morava em alguma cidade do interior e, um belo dia, apareceu para somar à família que estava na capital e foi matriculado na mesma escola da irmã. Aparentemente tudo ia bem desde então, mas Otho suspeitava que algo poderia mudar drasticamente quando soubessem que o rapaz veio depressa do interior porque o pai do rapaz que ele quase matou esfaqueado numa festa não tivera seu apetite por vingança saciado.
        Era hora de um bom café. Mas ainda havia pessoas para passar. O hábito contemplativo de Otho era como um vício, um ritual a ser religiosamente cumprido todas as manhãs. A cada dia ele vinha levantando mais cedo, de tanta ansiedade. A rotina da rua era o que determinava o humor de seu dia. Era capaz de acertar com precisão se teria uma boa manhã ou mesmo o dia inteiro, simplesmente dependendo do sucesso de uma observada na vida dos outros.
        Otho não se sentia intruso ou algo do gênero. Que mal havia em se ter informações preciosas e tão comprometedoras sobre todo mundo? Seria intruso se usasse isto para seu benefício próprio, como extorquir dinheiro ou garantir favores sexuais. Otho, no entanto, admitia o quanto era tentador estar ali, do alto do terceiro andar, com destinos inteiros em suas mãos. O quanto muitas vidas ali mudariam se derrubasse uma peça naquela fileira de dominós.

Preciso mesmo de café.

        Um leve incômodo tomava conta de si, porque a irritante secretária do escritório de contabilidade ali próximo estava cinco minutos atrasada. Como ela morava a apenas duas quadras do local de trabalho e conseguia ser tão estúpida? O tempo de Otho era precioso, ele estava abarrotado de coisas para fazer no banco, e essazinha achou de escolher justo aquele dia para demorar tanto a passar. Ela era o último objeto de sua contemplação, a única de quem ele sabia pouco. Inclusive o nome, Elaide, ele levara um punhado considerável de tempo para descobrir.
        Doze minutos intermináveis se desmancharam diante de um Otho perplexo, cuja frustração rugia como uma fera faminta por todo o seu corpo. Sim, ele teria um péssimo dia pela frente, tudo por causa de algum capricho de uma secretariazinha que, muito provavelmente, descobrira que pouparia tempo para chegar ao trabalho se pegasse a rua que passa detrás do prédio de Otho.

Essa tonta não deve ter pensado isso, tem a cara mais idiota que já vi.

        Vinte e seis minutos. A boca de Otho ansiava pelo sabor do café sem açúcar que sua mãe sabia fazer, e se continuasse a adiar tomá-lo, definitivamente só iria saboreá-lo quando ela preparasse outro no dia seguinte, pois dali a pouco ficaria com tempo limitado para se arrumar pro trabalho. Mas a esperança de ver Elaide ainda persistia. E Otho chegou até mesmo a cogitar se aquilo já não seria obsessivo demais, no que imediatamente sua cabeça o censurou severamente.
        Todos cumpriram seus rituais naquela manhã, movendo-se para seus respectivos compromissos, exceto a caprichosa Elaide, o que acarretou em Otho não ter realizado sua observação diária até o fim também. Ponderou se ela poderia estar doente. Ponderou pegar a lista telefônica e descobrir o número do escritório de contabilidade, dar uma checada. Hesitou, é claro. Aquilo estava absolutamente fora de cogitação.
        Otho sabia que não tinha Elaide em suas mãos, como era o caso de todos os outros vizinhos. E isso realmente o incomodava. Trinta minutos. Aquilo já era o cúmulo. Se ela passasse ali, com certeza chegaria bastante atrasada ao trabalho e poderia receber uma inflamada advertência do chefe.
           Com um dos punhos cerrados de ódio, Otho já ia fechar as janelas quando sua mãe entrou frenética em seu quarto.
“Rápido, Otho! Ligue a TV!”
        Ele levou alguns segundos para entender o que a mãe dissera. Era como se ela falasse outra língua. Otho costumava levar um tempo para se desligar do seu universo até voltar a interagir com as normalidades do cotidiano. Um tanto mecanicamente, ligou a televisão para satisfazer a mãe esbaforida.
“Esse canal não, muda pro 9”, anunciou a mãe, com certa urgência.
        Ele estava prestes a estourar com ela e sua inexplicável tolice em insistir que assistisse a alguma bobagem inútil, como era de costume dela. Mas o que Otho contemplara na tela do canal 9 foi estarrecedor. A polícia havia prendido Madalena Sales, sua vizinha com cargo na prefeitura, por envolvimento num intrincado esquema de corrupção. Ele pôde vê-la usando a mesma roupa do cooper de quase duas horas atrás, aos prantos e tentando esconder o rosto das câmeras.
“Bomba,né?”, comentou a mãe.
        Uma bomba daquelas!! Com os olhos pregados nas imagens, o rapaz mal podia acreditar no que se apresentava diante de si. Naquele momento, Otho soube o que viria. Ele tinha um mau presságio a respeito daquilo e nem mesmo pôde evitar o arrepio que eriçava os pelos de seus braços. Estava perdendo o controle. Em poucos meses ou até mesmo dias, uma cadeia de eventos se sucederiam dali em diante, iniciados por aquela prisão que ninguém poderia prever, criando um colapso naquele mundo secreto em que ele tinha pleno domínio. De alguma forma, Elaide tinha culpa de tudo isso. Ela é quem tinha alterado o curso do universo, a magia do rito de passar por ali todo santo dia.
        Contrariado, Otho virou-se para fechar as janelas e, depois disso, caminhou perturbado para a cozinha, onde seu café repousava morno sobre a mesa. Aquele seria um dia longo e com inúmeras possibilidades desagradáveis.
        Enquanto isso, na rua, pairava uma rotina absurdamente regular. Os carros continuavam se deslocando em ritmo moderado, as pessoas seguiam suas rotas e o sol prosseguia o curso de escalar o céu cada vez mais, como um alpinista impetuoso por alcançar o topo de uma montanha. Em algum lugar naquela manhã, Elaide desembarcava com o marido algumas caixas de um caminhão de mudanças, no outro extremo da cidade, totalmente dona de seu destino.


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