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4 de novembro de 2013

crônica: METAAAALLL !!!!


Aconteceu numa serena tarde de outono. A banda, a convite do empresário, compareceu àquele que supostamente seria o "Almoço Que Mudaria Suas Vidas Para Sempre". Foram todos os quatro componentes a caráter, mais o roadie, que já era praticamente um membro da família Desgraçation Hell. A caráter = de preto da cabeça aos pés (literalmente, ou seja, desde a cor dos cabelos à cor dos coturnos).
O empresário os aguardava numa mesa com vista para o oceano, no melhor restaurante da capital, o "Brisa de Deus".
— Pô, Serjão, não tinha lugar pior pra nos chamar?— indagou Angellus Diabolicus, pseudônimo artístico de Manoel de Freitas, o frontman da Desgraçation. Não estava com cara de muitos amigos, então quando disse “pior”, é porque realmente preferia um lugar pior. Esperava, inclusive, que ninguém jamais soubesse que um dia pisou num ambiente chamado “Brisa de Deus”.
Serjão, o empresário, puxou os óculos escuros para cima e apenas acenou com a cabeça, apontando a mesa e dando a entender que era para a galera ficar à vontade.
— E aí, qual é o lance?— rugiu Angellus Diabolicus, ficando ainda mais furioso ao ver um garçom do Brisa se aproximando. Tinha um trauma infantil de garçons. Mas ninguém sabia, claro.
Serjão explicou que já estava na hora da banda dar uma guinada na carreira. Matérias em revistas especializadas e de renome, turnês pela Europa e Estados Unidos, quem sabe até pela Ásia, esse tipo de coisa... Para tanto, informou ele, pensava em contratar o melhor produtor do ramo, com anos de experiência e um currículo invejável. Alguém que já havia estado no pico do sucesso no cenário heavy metal brasileiro: um tal de Rubenir.
— Mas que porcaria de nome é esse?— rosnou Leopardus Infernarius, o baterista, conhecido como o mal humorado do Desgraçation. Nome de batismo: Vigário Cunha.
— Nunca ouvimos falar nesse imbecil— acrescentou Draculeum Perversus, guitarrista e membro mais pacífico da banda. Pacífico somente até notar que está sem cigarros. Nome real: Rodrigo Esperança.
O caso é que em menos de um minuto apareceu o tal Rubenir. Vestia uma camisa florida cheia de cores do verão, trajava uma bermuda cáqui e calçava havaianas modernas. Tinha uma cara de otimista que desagradou a turma do Desgraçation Hell. Angellus balançava a cabeça, procurando as câmeras escondidas, tinha certeza que aquilo era uma pegadinha. Rubenir foi logo cumprimentando:
— Fala, moçada!! Que tarde maravailhooosa!!!
Raposa de Fogo, o baixista e único membro cujo nome artístico também era nome de batismo (ele era descendente de uma tribo indígena), logo teve vontade de chamar Rubenir de boiola, porque na visão dele só homossexuais prolongam vogais em palavras. Aquele almoço tinha tudo pra dar errado.
Sorte dos músicos que no Brisa de Deus a comida era deliciosa, pois era o que estava salvando enquanto ouviam Rubenir tagarelar sobre seus anos dourados no heavy metal (o termo “anos dourados” foi exatamente o que ele usou).
— Precisamos fazer mudanças urgentemente: tava pensando em mexer no logo da banda, colocar um fundo mais colorido, um tom assim de verde-mata misturado com laranja, lilás e azul-piscina. Calma, calma, vou justificar o verde: é pra dar uma pegada meio ecológica na banda, sabe. Tá super na moda essa coisa de sustentável, consciência ambiental. E sem falar que deixa uma identidade mais brasileira também...                
Angellus Diabolicus quase se engasgou com o purê de batatas, mas não deixou de protestar:
— Mas o nosso lamento é justamente morar nesse país lixo!!!
Serjão pediu:
— Acalma, Manoel, acalma...
Rubenir se defendeu dizendo:
— Nossa, até parece que vocês nunca ouviram o álbum Roots, do Sepultura...
Roots era, justamente, o pior álbum do Sepultura, na concepção do pessoal da Desgraçation. Raposa de Fogo começava a afiar seu punhal discretamente debaixo da mesa, para o caso de precisarem dar um jeito naquele falastrão.
— Outra coisa: consegui uma sessão de fotos e entrevista pra Bloody Metal Magazine, aquela que só cobre os melhores do circuito Rio-São Paulo.
Até que enfim uma notícia melhorzinha. Já era um começo. Rubenir quase conseguiu um sorriso, veja só, até de Leopardus Infernarius. Os olhos de Raposa passaram da fúria incontida à serenidade cintilante; guardou o punhal sob o manto negro.
Rubenir prosseguiu:
— Mas quero fazer uma ressalva: nada, nada, nada de maquiagem. Nada de pancake e desenhos de cruz invertida na cara, aquele exagero de sombra ao redor dos olhos... Nada de colocar os cinco lado a lado, de braços cruzados e caras de malvados. Nada disso!!! Estou aqui para ajudar a vocês a mudar esse conceito retrógrado e machista das bandas de heavy metal. Faremos as fotos na beira da praia. Algum de vocês tem filhos? Caso sim, leve as crianças, vamos fazer umas fotos bem família, com raios de sol ao fundo, pezinho molhando na água do mar, coração desenhado na areia com o nome da banda dentro... Vistam umas roupas confortáveis, de cores sóbrias, leves... Já tenho até sugestão para o título da matéria: SOU FELIZ POR SER METALEIRO.
Ouviu-se um estrondo. Leopardus Infernarius havia dado um soco tão violento na mesa que os outros clientes do restaurante pararam de comer para olhar o que estava acontecendo. O baterista, então, pegou Rubenir pelo colarinho e lhe dirigiu as seguintes palavras:
— Nós... não... somos... felizes!!! Entendeu, seu cretino?? Não vamos nos ajustar a essa sociedade mesquinha e hipócrita. É por causa de gente como você que não vemos nada de bom nesse mundo escroto. Por que acha que somos uma banda de black/death/doom metal??— era impressionante o quanto o ódio de Leopardus o fazia também ter o dom de falar com os dentes cerrados.
“Cretino” e “escroto” são os xingamentos mais suaves que posso publicar nesse texto, mas depois vieram outros palavrões bem mais avantajados.
Raposa voltou a tatear o bolso do manto em busca de seu punhal. Por que se antecipara tanto em guardá-lo? Angellus tinha uma raiva crescendo em seu peito, mas mesmo assim Rubenir foi em frente:
— Tem mais: esse visual de vocês não vende— enfatizou ele, ainda abalado pela reação de Leopardus.— Inclusive queria falar algo muito sério sobre as músicas. Gente, o que é aquilo? Inferno, morte, satã, sangue? E sem falar que ninguém entende nada. Tem umas letrinhas lá que até dão pro gasto, mas o resto eu tive que reformular todas.
Aí já foi o fim da picada. Mas o letrista da banda, que era Draculeum, por ser pacífico, não comprou briga com Rubenir, apenas pediu calma dos amigos para deixá-lo terminar de falar.
— Está contratado, Rubenir— disse Serjão, deixando todos boquiabertos.
O pior era que os caras da Desgraçation Hell dependiam 90% da influência de um empresário como Serjão, pois não sabiam se divulgar sozinhos e muito menos cuidar de assuntos burocráticos e administrativos. Com a contratação de Rubenir, aquele seria definitivamente o fim de uma banda. Foi então que o roadie, calado até o momento, se dirigiu a Draculeum:
— Pode me dar um cigarro, Draco?— sim, ele tinha bastante intimidade com os músicos, a ponto de dar apelidos aos pseudônimos.
— Mas é claro— Draculeum levou a mão ao bolso sagrado dos cigarros, mas nada.
Foi então que viu o seu maço dentro do bolso da camisa de Rubenir, saltando à vista.
— Como ousa roubar os meus cigarros, seu porco maldito???— bradou um transformado Draculeum, e foi a última coisa ouvida por Rubenir naquela tarde, que depois de acordar no hospital no dia seguinte, ainda tentava entender como os cigarros foram parar em sua camisa. Nem sequer fumava.

A confusão no restaurante foi tão grande que a Desgraçation Hell passou a ser a banda mais requisitada em algumas capitais. Depois do escândalo gigantesco que virou manchete nacional, eles se tornaram símbolo da alma heavy metal que não leva desaforo pra casa e nem engole afrontas. O sucesso foi tão alto que deram cartão vermelho para Serjão, antes que ele tivesse mais uma “ideia brilhante”. No entanto, sem dúvida, aquele foi o almoço que mudou suas vidas para sempre.
E nem precisaram de um produtor com currículo invejável, apenas de um roadie, alguns cigarros e uma agilidade ninja para escondê-los no bolso de um cara... Coisas do underground.


2 comentários:

yurgel disse...

Gosto dos laivos latinistas dos metaaaaaals e tals...

Elielson Júnior disse...

Gostei!!! Muiito legal, mas me diz, eles armaram tudo? Hauaha