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20 de janeiro de 2018

DESAPAIXONANTE --- EPISÓDIO 4x15: ASSASSINO



(Sávio)

Valei-me Deus
É o fim do nosso amor
Perdoa, por favor,
Eu sei que o erro aconteceu
Mas não sei o que fez
Tudo mudar de vez
Onde foi que eu errei?
Eu só sei que amei, que amei, que amei, que amei

Será talvez que minha ilusão
Foi dar meu coração
Com toda a força
Pra essa moça
Me fazer feliz
E o destino não quis me ver como raiz
De uma flor-de-lis...

Encontro forças para esticar o braço, pegar o controle remoto e desligar a televisão. Tá passando um especial do Djavan, mas confesso que o clima não é dos melhores pra ficar ouvindo música. Sobretudo, músicas com alguma carga negativa considerável. Lá na sala, o telefone toca.
Já são mais de duas semanas desde que Anna morreu. Seu corpo foi encontrado em plena luz do dia, estirado sobre o gramado de um hotel; uma imagem trágica que me dá arrepios toda vez que imagino, além de um aperto insuportável no peito. Destino que uma pessoa tão maravilhosa como ela jamais mereceria. Ninguém mereceria, é claro, mas Anna significava tanto pra mim. Desde então, sei que eu não tenho sido mais o mesmo.
As sequelas da surra que levei na noite anterior à morte dela ainda persistem. O braço esquerdo é o mais ferrado, e tô usando um imobilizador de pulso nele, mas qualquer pequeno esforço dói. Algumas marcas arroxeadas na testa e um pequeno corte entre o nariz e o olho direito são o meu constante lembrete da minha fragilidade.
“Ligação pra você”, minha mãe entra no meu quarto, sem a menor cerimônia. “É o Denner!”
A indisposição pra levantar da cama é aterrorizante. E me odeio por ter deixado a bateria do celular morrer, fazendo com que Denner ligasse pro telefone convencional, fazendo com que eu tenha agora de sair do quarto para ir atender na sala, fazendo minha mãe ter razão outra ver por jogar na minha cara a importância de manter em casa um aparelho obsoleto.
“Oi, Denner”, atendo.
“Nossa, que bom que você tá em casa! Tentei te ligar no celular e nada”.
“Não tenho como não estar em casa. Tá ruim pra dirigir com esse braço”.
“Ah, sim, verdade! Aliás, foi pra isso que eu liguei. A que horas é pra ir te buscar?”
Afasto o telefone da boca um pouco, cochicho pra minha mãe pra ela me dizer que horas são, mas ela berra como se estivesse fazendo um discurso num auditório sem microfone:
“Duas e meia!!!”
Alguém bate palmas lá fora, e ela caminha até a janela, posicionando-se detrás da cortina para ter uma ideia prévia do que vai encontrar.
Voltando à conversa com Denner, respondo:
“Sei lá, dá pra você passar daqui a uma hora, mais ou menos?”
“Dá sim, chefe. Combinado!”
“Valeu, Denner! Tchau!”
“Tchau!”
Vou até o pátio onde minha mãe está recebendo a visita. É a segunda vez que vejo este homem: um sujeito roliço e de baixa estatura, pele negra, bastante calvo e com óculos de grau. Está de camisa social branca e calça preta. Não me lembro como se chama. Algo entre Gerônimo, Jeremias... Um investigador de polícia. O cara que tá investigando a morte da Anna. Nos primeiros dias que se seguiram depois da tragédia, ele me procurou em busca de informações que pudessem contribuir com o caso.
“O senhor aceita um cafezinho?”, minha mãe oferece, assim que o detetive e eu nos acomodamos no sofá da sala.
Ele balança a cabeça em negativa, declinando educadamente, e ela apenas sorri e olha pra mim.
“Tem chá gelado?”, pergunto.
“É café ou nada, filho”.
“Ahn... Então... Não, obrigado”.
“Tudo bem”, ela diz. “Vou deixar vocês a sós”.
Após ela sair, dirijo um olhar ansioso ao homem.
“Como vai, doutor...? Esqueci seu nome, não me lembro se é Gerônimo ou Jeremias...”
“É João, sr. Miranda. João Henrique Pastana. Mas pode me chamar só de Pastana. E estou bem, obrigado. O senhor?”
“Levando”, minha melancolia se encarrega de responder. Pastana demonstra certa empatia com um aceno de cabeça, desses que as pessoas dão quando lamentam algo mas não tem como fazer nada para ajudar.
“Da última vez que estive aqui”, ele inicia o assunto, “paramos no fato de que o senhor tinha sido a última pessoa de relação mais próxima com a qual a senhorita Anna Munhoz havia tido contato antes do óbito, certo?”
“Sim”.
“Pois bem. Consegui a lista de todos os hóspedes que estavam no hotel naquele dia, pra tentar cruzar as relações entre Anna e algum deles. Imaginei se talvez o senhor conhecesse alguém entre os hospedados no Glory. A lista já foi mostrada aos pais e aos colegas de trabalho da Srta. Anna, mas eles não identificaram ninguém”.
“Tá certo, quero ver essa lista”.
Pastana abre uma pasta que... Nossa, “Pastana abre uma pasta”, que engraçado de dizer! Mas enfim, ele abre uma pasta que trouxe consigo. Encontra uma folha A4 e me entrega.
“Por sorte, havia apenas 23 pessoas hospedadas”, relata ele. “Quero dizer, pelo menos são 23 as pessoas que se registraram no hotel. A lista não tem como incluir os acompanhantes. Mas pode ser que algum nome aí indique uma pista”.
“O senhor descarta totalmente a possibilidade de suicídio?”
“Absolutamente”.
Para ser sincero, até eu descarto. Ou, pelo menos, quero descartar. Anna não teria motivos para isso. Se bem que, na maioria das vezes que nos deparamos com um suicida, ficamos atônitos pela coragem de alguém em tomar uma atitude tão extrema. E então nos pegamos pensando em quais poderiam ser as razões pra essa pessoa se matar. As quais, na maioria das vezes, são incompreensíveis para nós. Infelizmente, tudo o que eu consigo compreender agora é o tanto de dor que ficou depois que Anna se foi.
Começo a ler a lista. Uma porção de nomes que não me dizem nada e... De repente, o nome de um ex-cliente da agência. Processo em questão de milésimos de segundos se esse homem poderia ser tomado como uma ameaça à vida da minha ex-namorada ou se eles sequer poderiam ter tido os caminhos cruzados. Até onde eu posso me recordar, muito provavelmente eles jamais se conheceram. Continuo analisando. Até que, quase no finzinho, encontro um nome: Ivan Castro.
Calafrios percorrem meu corpo tão subitamente que, quando me dou conta, as peças vão se encaixando na minha cabeça, ao mesmo tempo em que não consigo acreditar que elas façam sentido.
“Você encontrou algum nome, não foi?”, percebe o investigador.
Levanto os olhos na direção dele e, quase sem voz, digo:
“Encontrei!”


No carro com Denner, não consigo parar de pensar na conclusão a que o investigador e eu chegamos. Após a minha confirmação de que conhecia o nome de Ivan, ele tentou ali mesmo entrar em contato com o safado e descobriu que anda sumido e nunca mais sequer se comunicou com os funcionários de seu bar. Em seguida, Pastana falou com os responsáveis do hotel e descobriu que Ivan já havia pagado os dias de sua estadia, embora não tivesse feito check-out. Tudo estava se clareando e, para completar, narrei parte de minha rixa com Ivan e algumas consequências disso. Profissional, Pastana disse que provavelmente houve um assassinato ou acidente durante um momento bastante caloroso de conflito entre Anna e Ivan. Quando expus a ele que não tinha a menor ideia do porquê ela iria até ele, Pastana deduziu dois pontos: ou eles eram amantes e tiveram um desentendimento e Ivan acabou empurrando-a ou de alguma forma Anna suspeitava que Ivan tinha pagado aqueles homens pra me espancar e foi confrontá-lo, no que tiveram uma discussão bastante intensa e, farto da intromissão de Anna, Ivan a empurrou. Esta segunda alternativa é a única que faz sentido e em que, dolorosamente, acredito. E com uma revolta se principiando na alma como nunca senti.
Não quero acreditar, mas quanto mais a mente tenta recusar e afastar a probabilidade de Anna ter morrido tentando me defender, isso me enche de uma culpa que eu jamais vou conseguir medir, tampouco lidar.
“Tá tão quieto, chefe”.
“O detetive foi lá em casa de novo”.
“É mesmo? E aí?”
“Tudo indica que a Anna foi assassinada pelo Ivan”.
Denner não contém um gemido de surpresa, e até diminui a velocidade do carro, por conta do estado de choque.
“Isso é horrível!”
“Cara, eu tô com tanto ódio”, confesso, sentindo o rosto quente. Tenho certeza de que, se estivéssemos em nosso automóvel, eu já teria socado o vidro até sangrar. Ivan cretino! Como eu queria poder sair no mano-a-mano com esse escroto, e sufocá-lo até... até... Até matá-lo! Sim, a verdade era essa. Iria pra cadeia feliz.
“Calma, Sávio!”, diz Denner, em vão. Nada vai fazer passar a minha ira. “Se você não se acalmar, pode acabar fazendo alguma besteira”.
“Então vou me manter o mais nervoso possível, porque eu tô doido pra fazer uma besteira”.
O telefone de Denner toca. Ele faz que vai atender, mas aparentemente se lembra de que estou aqui e talvez para não agir com imprudência na minha frente, deixa o celular tocando.
“Pode atender, cara”, autorizo-o. “Eu não tô em condições de censurar ninguém por causa de uma infraçãozinha de trânsito”.
Meio sem-graça, ele aceita e atende. Pelas palavras carinhosas trocadas, deve estar falando com Rita. Ao final, combinam algum horário, se despedem e ligam.
“O seu namoro com a Rita é uma coisa bonita de ver, Denner”, encontro um momento em meio à minha fúria para observar isto. “Vocês nasceram um pro outro”.
“Ah, que é isso, Sávio!”, ele sorri. “Mas obrigado”.
“Vão sair hoje?”
“Sim. Vou passar na casa dela às oito pra gente jantar”.
“Estão comemorando o quê?”
“Nada não. É só uma saída normal de namorados. E também porque no lugar onde a gente vai, a Rita gosta de cantar no karaokê. Ela gosta de cantar aquela música do Morro dos ventos uivantes. Sabe qual é?”
“Sei...”, respondo, com a metade de um sorriso, só porque me cai a ficha de que acho a Rita e a Kate Bush― a intérprete original da música― muito parecidas de alguma forma, especialmente na performance de Kate no clipe de Wuthering Heights.
E então me vem a cara do Ivan na memória, roubando um raro momento em que consigo desanuviar a cabeça. Em minhas lembranças, ele aparece com a cara cínica e ardilosa. Verdadeira cria de satanás. E me enfureço outra vez. Onde será que esse desgraçado tá escondido? Onde você tá, Ivan, que eu quero te socar até deixar tua cara irreconhecível?
Chegamos à sede da ANNA. Dei uns dias de folga para Madonna, nossa secretária, então o lugar está trancado e sem funcionar. Entretanto, meu ânimo me diz que não vou conseguir retomar a rotina dos casos de desapaixonamento tão cedo. Recesso temporário e sem previsão de retorno. O cupido finalmente pode voar livre com suas flechinhas impiedosas.
Peço para Denner me aguardar no carro enquanto entro e pego algumas coisas que vou querer guardar em casa, já que por ora a agência vai ficar desativada. Volto cinco minutos depois, carregando com muita dificuldade uma caixa com meu laptop e outros cacarecos que acredito que precisarei. Denner sai do carro e me acode.
“Valeu, Denner!”
“Eu é que devia ter ido lá buscar. Não é legal você ficar forçando o braço assim”.
“Tudo bem”.
Colocamos a caixa no banco traseiro, entramos de volta no carro e partimos.
“Fica sabendo que não vou te deixar desamparado, viu, Denner?”, solto, assim do nada.
Ele me olha, um tanto confuso.
“Financeiramente falando”, acrescento. “Vou deixar a agência sem funcionar por um tempo, mas tenho uma grana legal e vou te repassar uma parte”.
“Ah, que nada, eu...”
“Não, não, nem tenta teimar comigo. Já tá decidido”.
“Bom... Então tá!”
Denner é um sujeito maravilhoso. Depois de Milena, sem dúvida eu não poderia encontrar um parceiro de trabalho tão incrível como ele.
“Eu gosto de trabalhar na ANNA”, diz ele. “Nesse tempo que ela vai ficar desativada, vou ficar com muita saudade”.
“Você pode aproveitar pra escrever seus contos, seus livros”, encorajo.
Ele abre um sorriso que mostra que concorda com a ideia.
“Mês que vem o meu agente literário vai me apresentar pra uma mulher responsável por uma editora bem legal. Tô empolgado!”
“Uau, sério? Isso é ótimo!”
“Sim. Dependendo da conversa, já posso até me considerar um autor que vai ter o livro vendido no Brasil todo. Não costumo ser muito confiante, mas dessa vez tô botando a maior fé”.
Como se não bastasse eu estar fervendo de raiva de mim mesmo por ter sido responsável pela morte de Anna, mesmo que indiretamente, agora fico com ainda mais raiva por não poder de fato demonstrar alegria pelo meu amigo estar se dando bem em algo que sempre sonhou.
“É uma pena que você vai ter de sair da ANNA quando ficar famoso”, afirmo.
“Sair da ANNA?”, ele repete, como se não entendesse. “Acho que isso pode demorar um bocado pra acontecer. Nem sei como as pessoas vão receber o meu livro. E se ele fracassar?”
“Não vai fracassar”, digo de uma maneira tão dura que nem lhe dou a chance de argumentar. E, de repente, me vem um estalo completamente inesperado. “Denner! Vamos pra casa da Milena agora!”
Outra vez confuso, ele apenas olha para mim querendo compreender minha decisão abrupta.
“Me leva na casa da Milena, Denner. Eu preciso passar lá agora!”


(Milena)

“Compra quatro!”, jogo a carta destruidora de amizades sobre a pilha, enquanto recebo de Juliana um olhar injuriado e surpreso. Por essa ela não esperava.
“Filha da mãe!”, exclama ela. “Eu achando que tava abafando te fazendo comprar duas cartas naquela hora”.
Após essa deliciosa partida, vencida por mim, é claro, cansamos do Uno e Ju reclama de que está com fome. Sugiro que ela pegue sorvete no freezer e sirva a nós duas. A mim, porque mereço ser servida e também porque a derrotei lindamente na partida final. Ela me dá a língua, mas já se levanta animadinha por saber que vai colocar um negócio gelado e doce na boca.
“Hoje eu vou precisar da sua ajuda”, aviso.
“Pra quê?”
“Uma amiga minha quer se arrumar e ficar maravilhosa pro boy. E pediu minha ajuda. Mas eu não sou muito boa com isso, então achei que você pudesse me acompanhar. Que tal?”
“Hum, sério?”, ela se empolga, começando a saborear seu sorvete. “Adoro essas coisas de transformação”.
“O nome dela é Rita. Tá querendo fazer uma surpresa pro namorado dela. Você conhece ele, tava lá naquele dia que a gente foi atrás do Sávio na agência. Ele era aquele rapaz que falou comigo”.
“Ah, legal. Eu topo, vou adorar ajudar”.
Ouço um barulho de carro lá fora. Aproximo-me da janela, olho mas não reconheço o carro. Até que ele para de forma que o lado do passageiro me mostra um Sávio com semblante nada animado. Pelo contrário, ele parece mais abatido desde aquele episódio em que apanhou na rua por homens misteriosos.
Ele vem caminhando na direção da porta. A essa altura eu já estou na varanda acompanhando seus passos.
“A Juliana tá aí?”, ele nem me cumprimenta.
“Tá”, respondo, notando que há algo de errado.
Ele fecha a cara, chega até mim e diz:
“Chama ela, por favor!”
“Ok”, falo, “mas, primeiro, quer me contar o que tá acontecendo?”
Denner desce do carro e vem calmamente cruzando o portão, rumando até nós.
“A sua prima não tava querendo se desapaixonar do Ivan? Então, eu tenho a solução”.
“Como assim?”
Juliana deve ter escutado seu nome e aparece na varanda, encarando Sávio.
“Que solução é essa?”, ela indaga bem baixinho, com uma fisionomia muito séria.
Sávio chega mais perto dela e, igualmente sério e sem enrolação, simplesmente diz:
“Você teria coragem de continuar apaixonada por um assassino?”
“Quê?!”, Ju e eu falamos.
“Acontece que o seu objeto de paixão”, explica Sávio, “jogou a minha ex-namorada do 14º andar. E isso faz dele um assassino. O que acha disso?”
Olho para Denner em busca de alguma explicação, já que Sávio está notadamente descontrolado.
“Do que você tá falando?”, Juliana soa amedrontada.
“Ele falou com o investigador de polícia”, esclarece Denner, como se lesse meu pensamento a respeito de querer entender mais claramente a abordagem de Sávio.
“Ai, meu Deus!”, exclamo, sentindo o abalo da conclusão óbvia.
Sávio continua:
“Descobrimos que o Ivan tava hospedado no hotel de onde a Anna caiu, num quarto no décimo quarto andar, o que indica fortemente que foi dali que a Anna caiu. Aliás, caiu não. Foi empurrada. O filho da puta é um assassino!”
Juliana empalidece na mesma hora.
“Você sabia que ele tava nesse hotel, Ju?”, indago, mas ela está tão perplexa que leva muito mais tempo para processar minha pergunta.
Porém, Sávio é mais incisivo e impaciente:
“Você é namorada dele, não é? Então onde ele tá, Juliana? Você tem alguma ideia de onde ele tá? Você sabe, não sabe? Ele deve ter comentado alguma coisa”.
Com cuidado, tento afastá-lo de perto da minha prima.
“Ei, calma lá! Não tá vendo que a menina ficou abalada. Dá um tempo pra ela!”
“Fala, Juliana!”, Sávio me ignora e insiste. “Você tem ideia de onde ele possa estar escondido?”
“Sávio”, outra vez tento afastá-lo, numa boa.
“Esse cara não merece paixão de ninguém, Juliana. Se você sabe de alguma coisa, a hora de tomar uma atitude é agora. Ele matou a Anna! Ele matou a Anna!”
“SÁVIO!!!”, eu berro e o empurro o mais forte que posso, ele cambaleia e cai perto de uma cadeira.
Sávio faz uma careta e sacoleja levemente o braço que tem um imobilizador.
“Droga!”, percebo que peguei pesado, e estendo a mão pra ele. “Desculpa, amigo. Você tá bem?”
“Eu sei onde ele tá”, a inesperada voz de Juliana nos arranca do pequeno conflito.
Viro-me pra ela, incrédula. Me sinto alvejada por flashes daquele dia no galpão, onde ela deu as costas pra mim, seguindo Ivan e sua pequena comitiva de namoradas.
“Como é que você sabe?”, retruco.
“Aqui”, ela procura alguma coisa no celular e, depois de encontrar, me passa o aparelho. A tela mostra uma conversa entre Ivan e ela. Ao longo do papo, ele insiste para que ela vá ao seu encontro, pois está abrigado com Valéria numa casa e já perdeu Cyntia, mas não quer perder Juliana também. Pelo teor das mensagens, o cara tá quase surtando. Parece que ela leva muito a sério essa alcunha de “colecionador”.
“Aqui diz que ele tá refugiado em alguma casa com a Valéria”, conto para Sávio.
“Você sabe onde fica essa tal casa, Juliana?”, ele pergunta para Juliana.
“Sei”, confirma ela. “Eu vou lá com vocês”, ela diz olhando para Sávio e Denner. “Eu preciso ouvir do próprio Ivan que ele matou alguém”.
“Ah, mas não vai mesmo. O que eu te dei pra comer foi sorvete e não cocô”, oponho-me, daquele meu jeitinho próprio e ligeiramente intimidador. “O máximo que você vai fazer é passar o endereço direitinho pro Sávio e vai ficar aqui. Na última vez que você foi ouvir uma confissão do Ivan, a gente sabe como foi que terminou. Sem falar que a louca da Valéria tá por perto e a gente não sabe do que ela é capaz. Além disso, se o Ivan matou mesmo a Anna, definitivamente ele é uma pessoa ainda mais perigosa do que a gente imaginava”.
Dessa vez, aleluia, ela não parece que vai teimar. Obedientemente, anota o endereço num papel e entrega para Denner, que é quem vai dirigir.
“Sávio, não faça nenhuma besteira”, recomendo. “Leva esse endereço pro investigador e faz a coisa certa, pelo amor de Deus! Já basta de gente apanhando e gente morrendo, por favor!”
E então outro carro aparece, estacionando logo atrás do veículo dos rapazes. Outro carro desconhecido. Meu coração começa a bater acelerado. Será que, de tanto falar no demônio do Ivan, ele resolve me aparecer aqui que nem o Beetlejuice? Já começo a raciocinar se tem alguma arma perdida em casa, enquanto olho ao redor pra ver se tem algum pedaço de madeira que me garanta pelo menos deixá-lo inconsciente, só de leve. Não vou negar que eu ficaria bem satisfeita de quebrar um pedaço de pau bem grosso nas costas da Valéria se pudesse...
Do carro desce um casal, e eu creio que já tenha visto esses dois antes. Denner fica visivelmente nervoso ao vê-los parados ao portão, encarando-nos.
Muito irritado, Denner marcha até eles, de punhos cerrados.
“O que é que vocês querem comigo, hein? Até aqui vocês resolvem me perseguir?”, grita ele, como quem tenta dispersar um bando de urubus.
Contudo, o casal permanece impassível. Um homem de terno e gravata, chapéu cinza, de pele muito branca; a mulher também é branca, loira, elegante e com ar de superioridade.
“Vão embora!”, insiste Denner.
“O que tá acontecendo?”, me dirijo a Sávio, que dá de ombros.
Bom, já que a casa é minha e é minha responsabilidade não chamar atenção de vizinhos xeretas, decido ir até o portão pra entender o que se sucede.
“Pois não?”, digo, com simpatia.
“Boa tarde! Você é Milena Kerber”, estranhamente a mulher afirma em vez de perguntar. “Sou Olívia Dantas e este é meu colega Pedro Bispo. Podemos entrar?”
Denner e eu nos entreolhamos, e então percebo que ele tá mais confuso do que eu, embora seu incômodo esteja longe de ter passado.
“Por que vocês querem entrar?”, pergunto.
“Precisamos conversar com você”, o tal do Pedro responde.
“Sinto muito”, lamento, “mas não estamos num momento muito legal pra receber visitas aqui. Além do mais, o que vocês teriam a falar comigo?”
“O que vocês estão tramando, hein, suas duas cobras?”, provoca Denner. “Milena, não se mete com esses dois. Eles são perigosos. Acho até que estão inventando essa história porque estão querendo me matar. Pois fiquem sabendo...”
“Denner”, a mulher loira, Olívia, o interrompe, “nossa missão não precisa mais da sua colaboração. Houve uma pequena mudança nos planos. Portanto, aquilo que aconteceu na casa da sua namorada não tem mais relevância para nós, muito menos estamos em busca de vingança. Estamos agindo na mais profunda e admirável paz”.
“O que é que tá acontecendo, gente? Tô entendendo nadinha”, reclamo, chateada, cruzando os braços.
Sávio surge bem ao meu lado e fala para Denner:
“Temos que ir embora. Já que eles disseram que vieram ver a Milena, ela vai saber cuidar deles. Vamos!”
Olho para ele surpresa em ver que vai me abandonar para lidar com os recém-chegados misteriosos.
Com o braço bom, Sávio puxa Denner em direção ao caminho da saída. Com desconfiança, Denner passa por Pedro e Olívia, que não devolvem a hostilidade. Denner e Sávio entram no carro e partem, me deixando com o coração apertado. Mas sei que vai dar tudo certo. Eu devia ter feito Sávio me prometer que não faria besteira.
“Olha, eu sei que eles foram embora, mas mesmo assim eu não tô num momento legal aqui em casa. Então, sinto muito, seja lá o que vocês tiverem pra tratar comigo, hoje não dá. Espero que entendam”, encerro o assunto bem categórica, começando a dar passos para trás e forçando-os a entender que não quero papo.
“Suas expressões faciais lembram muito as dela”, comenta Pedro, com admiração no olhar.
Franzo a sobrancelha, porque evidentemente não tenho a mínima noção do que ele tá falando.
“Sua mãe, Milena. Fabiana Kerber. Nós temos notícias dela”, anuncia Olívia, com um sorriso largo. “Se nos deixar entrar, podemos compartilhar essas notícias com você”.
Não sei como, mas não consigo pronunciar uma palavra. É como se eu estivesse cercada por algo invisível que me deixasse paralisada, com energia suficiente apenas para encarar esses dois visitantes enigmáticos. Notícias da minha mãe?!
“Vão embora antes que eu chame a polícia”, esta sou eu perdendo qualquer resquício de humor. “Esse tipo de brincadeira eu não vou tolerar”.
Sem o menor sinal de intimidação, Pedro tira o chapéu, exibindo uma careca brilhosa. Outra vez, sinto-me paralisada. Ele se aproxima do portão até deixar o nariz praticamente enfiado pela grade. E sussurra, num tom de voz que desafia todas as minhas convicções:
“Nós podemos provar que estamos falando a verdade”.
“Minha mãe morreu”, rebato, mas desta vez sem a mesma intensidade que empreguei na ameaça segundos atrás.
Olívia tira de dentro do casaco uma fotografia e me mostra. Na imagem, uma mulher na casa dos 50 anos, muito conservada e bonita, sorridente. Nesse instante, é como se alguém se transformasse numa coisa gelatinosa e molenga, frágil. Não sei que tipo de pegadinha idiota é essa e quem seria capaz de algo tão desumano, mas o que realmente está deixando meu coração inquieto não é a possibilidade de alguém estar pregando uma peça cruel contra mim, mas a perturbadora constatação de que a mulher da foto é muito semelhante à ideia que eu sempre tive da aparência da minha mãe se ela ainda estivesse viva.
“E essa nem sequer é a prova”, completa Olívia.
Como isso pode ser verdade? Como minha mãe pode estar viva? Meu Deus, me sinto tão fraca. Minhas pernas estão bambas. O que devo fazer? Como eles podem provar o que estão dizendo? Queria ter perguntado melhor ao Denner sobre Pedro e Olívia.
“Se nós não provarmos nossa palavra, você pode chamar a polícia e dizer a eles o que quiser”, Olívia propõe, sem a menor sombra de receio.
Ambos trocam um olhar, confiante. Não dá pra ler o que esse olhar significou, mas algo dentro de mim começa a quebrar a resistência. Não é como se eles fossem atentar contra minha vida ou algo assim.
“Droga”, suspiro, me rendendo. “Vocês tem dez minutos, seus esquisitos. Ou vão sair daqui com sérias complicações. Entrem!”


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