(Sávio)
Valei-me Deus
É o fim do nosso amor
Perdoa, por favor,
Eu sei que o erro aconteceu
Mas não sei o que fez
Tudo mudar de vez
Onde foi que eu errei?
Eu só sei que amei, que amei, que amei, que amei
Será talvez que minha ilusão
Foi dar meu coração
Com toda a força
Pra essa moça
Me fazer feliz
E o destino não quis me ver como raiz
De uma flor-de-lis...
Encontro forças para esticar o
braço, pegar o controle remoto e desligar a televisão. Tá passando um especial
do Djavan, mas confesso que o clima não é dos melhores pra ficar ouvindo
música. Sobretudo, músicas com alguma carga negativa considerável. Lá na sala,
o telefone toca.
Já são mais de duas semanas desde
que Anna morreu. Seu corpo foi encontrado em plena luz do dia, estirado sobre o
gramado de um hotel; uma imagem trágica que me dá arrepios toda vez que imagino,
além de um aperto insuportável no peito. Destino que uma pessoa tão maravilhosa
como ela jamais mereceria. Ninguém mereceria, é claro, mas Anna significava
tanto pra mim. Desde então, sei que eu não tenho sido mais o mesmo.
As sequelas da surra que levei na
noite anterior à morte dela ainda persistem. O braço esquerdo é o mais ferrado,
e tô usando um imobilizador de pulso nele, mas qualquer pequeno esforço dói.
Algumas marcas arroxeadas na testa e um pequeno corte entre o nariz e o olho
direito são o meu constante lembrete da minha fragilidade.
“Ligação pra você”, minha mãe entra no meu quarto, sem a menor
cerimônia. “É o Denner!”
A indisposição pra levantar da
cama é aterrorizante. E me odeio por ter deixado a bateria do celular morrer,
fazendo com que Denner ligasse pro telefone convencional, fazendo com que eu
tenha agora de sair do quarto para ir atender na sala, fazendo minha mãe ter
razão outra ver por jogar na minha cara a importância de manter em casa um
aparelho obsoleto.
“Oi, Denner”, atendo.
“Nossa, que bom que você tá em casa! Tentei te ligar no celular e
nada”.
“Não tenho como não estar em casa. Tá ruim pra dirigir com esse braço”.
“Ah, sim, verdade! Aliás, foi pra isso que eu liguei. A que horas é pra
ir te buscar?”
Afasto o telefone da boca um
pouco, cochicho pra minha mãe pra ela me dizer que horas são, mas ela berra
como se estivesse fazendo um discurso num auditório sem microfone:
“Duas e meia!!!”
Alguém bate palmas lá fora, e ela
caminha até a janela, posicionando-se detrás da cortina para ter uma ideia
prévia do que vai encontrar.
Voltando à conversa com Denner,
respondo:
“Sei lá, dá pra você passar daqui a uma hora, mais ou menos?”
“Dá sim, chefe. Combinado!”
“Valeu, Denner! Tchau!”
“Tchau!”
Vou até o pátio onde minha mãe
está recebendo a visita. É a segunda vez que vejo este homem: um sujeito roliço
e de baixa estatura, pele negra, bastante calvo e com óculos de grau. Está de
camisa social branca e calça preta. Não me lembro como se chama. Algo entre
Gerônimo, Jeremias... Um investigador de polícia. O cara que tá investigando a
morte da Anna. Nos primeiros dias que se seguiram depois da tragédia, ele me
procurou em busca de informações que pudessem contribuir com o caso.
“O senhor aceita um cafezinho?”, minha mãe oferece, assim que o
detetive e eu nos acomodamos no sofá da sala.
Ele balança a cabeça em negativa,
declinando educadamente, e ela apenas sorri e olha pra mim.
“Tem chá gelado?”, pergunto.
“É café ou nada, filho”.
“Ahn... Então... Não, obrigado”.
“Tudo bem”, ela diz. “Vou
deixar vocês a sós”.
Após ela sair, dirijo um olhar ansioso
ao homem.
“Como vai, doutor...? Esqueci seu nome, não me lembro se é Gerônimo ou
Jeremias...”
“É João, sr. Miranda. João Henrique Pastana. Mas pode me chamar só de
Pastana. E estou bem, obrigado. O senhor?”
“Levando”, minha melancolia se encarrega de responder. Pastana
demonstra certa empatia com um aceno de cabeça, desses que as pessoas dão
quando lamentam algo mas não tem como fazer nada para ajudar.
“Da última vez que estive aqui”, ele inicia o assunto, “paramos no fato de que o senhor tinha sido
a última pessoa de relação mais próxima com a qual a senhorita Anna Munhoz
havia tido contato antes do óbito, certo?”
“Sim”.
“Pois bem. Consegui a lista de todos os hóspedes que estavam no hotel
naquele dia, pra tentar cruzar as relações entre Anna e algum deles. Imaginei
se talvez o senhor conhecesse alguém entre os hospedados no Glory. A lista já foi mostrada aos pais e aos
colegas de trabalho da Srta. Anna, mas eles não identificaram ninguém”.
“Tá certo, quero ver essa lista”.
Pastana abre uma pasta que...
Nossa, “Pastana abre uma pasta”, que engraçado de dizer! Mas enfim, ele abre
uma pasta que trouxe consigo. Encontra uma folha A4 e me entrega.
“Por sorte, havia apenas 23 pessoas hospedadas”, relata ele. “Quero dizer, pelo menos são 23 as pessoas
que se registraram no hotel. A lista não tem como incluir os acompanhantes. Mas
pode ser que algum nome aí indique uma pista”.
“O senhor descarta totalmente a possibilidade de suicídio?”
“Absolutamente”.
Para ser sincero, até eu
descarto. Ou, pelo menos, quero descartar.
Anna não teria motivos para isso. Se bem que, na maioria das vezes que nos
deparamos com um suicida, ficamos atônitos pela coragem de alguém em tomar uma
atitude tão extrema. E então nos pegamos pensando em quais poderiam ser as
razões pra essa pessoa se matar. As quais, na maioria das vezes, são
incompreensíveis para nós. Infelizmente, tudo o que eu consigo compreender
agora é o tanto de dor que ficou depois que Anna se foi.
Começo a ler a lista. Uma porção
de nomes que não me dizem nada e... De repente, o nome de um ex-cliente da
agência. Processo em questão de milésimos de segundos se esse homem poderia ser
tomado como uma ameaça à vida da minha ex-namorada ou se eles sequer poderiam
ter tido os caminhos cruzados. Até onde eu posso me recordar, muito
provavelmente eles jamais se conheceram. Continuo analisando. Até que, quase no
finzinho, encontro um nome: Ivan Castro.
Calafrios percorrem meu corpo tão
subitamente que, quando me dou conta, as peças vão se encaixando na minha
cabeça, ao mesmo tempo em que não consigo acreditar que elas façam sentido.
“Você encontrou algum nome, não foi?”, percebe o investigador.
Levanto os olhos na direção dele
e, quase sem voz, digo:
“Encontrei!”
No carro com Denner, não consigo
parar de pensar na conclusão a que o investigador e eu chegamos. Após a minha
confirmação de que conhecia o nome de Ivan, ele tentou ali mesmo entrar em
contato com o safado e descobriu que anda sumido e nunca mais sequer se comunicou
com os funcionários de seu bar. Em seguida, Pastana falou com os responsáveis
do hotel e descobriu que Ivan já havia pagado os dias de sua estadia, embora
não tivesse feito check-out. Tudo
estava se clareando e, para completar, narrei parte de minha rixa com Ivan e
algumas consequências disso. Profissional, Pastana disse que provavelmente
houve um assassinato ou acidente durante um momento bastante caloroso de
conflito entre Anna e Ivan. Quando expus a ele que não tinha a menor ideia do
porquê ela iria até ele, Pastana deduziu dois pontos: ou eles eram amantes e
tiveram um desentendimento e Ivan acabou empurrando-a ou de alguma forma Anna
suspeitava que Ivan tinha pagado aqueles homens pra me espancar e foi
confrontá-lo, no que tiveram uma discussão bastante intensa e, farto da
intromissão de Anna, Ivan a empurrou. Esta segunda alternativa é a única que
faz sentido e em que, dolorosamente, acredito. E com uma revolta se
principiando na alma como nunca senti.
Não quero acreditar, mas quanto
mais a mente tenta recusar e afastar a probabilidade de Anna ter morrido
tentando me defender, isso me enche de uma culpa que eu jamais vou conseguir
medir, tampouco lidar.
“Tá tão quieto, chefe”.
“O detetive foi lá em casa de novo”.
“É mesmo? E aí?”
“Tudo indica que a Anna foi assassinada pelo Ivan”.
Denner não contém um gemido de
surpresa, e até diminui a velocidade do carro, por conta do estado de choque.
“Isso é horrível!”
“Cara, eu tô com tanto ódio”, confesso, sentindo o rosto quente.
Tenho certeza de que, se estivéssemos em nosso automóvel, eu já teria socado o
vidro até sangrar. Ivan cretino! Como eu queria poder sair no mano-a-mano com
esse escroto, e sufocá-lo até... até... Até matá-lo! Sim, a verdade era essa. Iria
pra cadeia feliz.
“Calma, Sávio!”, diz Denner, em vão. Nada vai fazer passar a minha
ira. “Se você não se acalmar, pode acabar
fazendo alguma besteira”.
“Então vou me manter o mais nervoso possível, porque eu tô doido pra
fazer uma besteira”.
O telefone de Denner toca. Ele
faz que vai atender, mas aparentemente se lembra de que estou aqui e talvez
para não agir com imprudência na minha frente, deixa o celular tocando.
“Pode atender, cara”, autorizo-o. “Eu não tô em condições de censurar ninguém por causa de uma
infraçãozinha de trânsito”.
Meio sem-graça, ele aceita e
atende. Pelas palavras carinhosas trocadas, deve estar falando com Rita. Ao
final, combinam algum horário, se despedem e ligam.
“O seu namoro com a Rita é uma coisa bonita de ver, Denner”,
encontro um momento em meio à minha fúria para observar isto. “Vocês nasceram um pro outro”.
“Ah, que é isso, Sávio!”, ele sorri. “Mas obrigado”.
“Vão sair hoje?”
“Sim. Vou passar na casa dela às oito pra gente jantar”.
“Estão comemorando o quê?”
“Nada não. É só uma saída normal de namorados. E também porque no lugar
onde a gente vai, a Rita gosta de cantar no karaokê. Ela gosta de cantar aquela música do Morro dos ventos uivantes. Sabe
qual é?”
“Sei...”, respondo, com a metade de um sorriso, só porque me cai a
ficha de que acho a Rita e a Kate Bush― a intérprete original da música― muito
parecidas de alguma forma, especialmente na performance de Kate no clipe de Wuthering Heights.
E então me vem a cara do Ivan na
memória, roubando um raro momento em que consigo desanuviar a cabeça. Em minhas
lembranças, ele aparece com a cara cínica e ardilosa. Verdadeira cria de
satanás. E me enfureço outra vez. Onde será que esse desgraçado tá escondido?
Onde você tá, Ivan, que eu quero te socar até deixar tua cara irreconhecível?
Chegamos à sede da ANNA. Dei uns
dias de folga para Madonna, nossa secretária, então o lugar está trancado e sem
funcionar. Entretanto, meu ânimo me diz que não vou conseguir retomar a rotina
dos casos de desapaixonamento tão cedo. Recesso temporário e sem previsão de
retorno. O cupido finalmente pode voar livre com suas flechinhas impiedosas.
Peço para Denner me aguardar no
carro enquanto entro e pego algumas coisas que vou querer guardar em casa, já
que por ora a agência vai ficar desativada. Volto cinco minutos depois,
carregando com muita dificuldade uma caixa com meu laptop e outros cacarecos que acredito que precisarei. Denner sai
do carro e me acode.
“Valeu, Denner!”
“Eu é que devia ter ido lá buscar. Não é legal você ficar forçando o
braço assim”.
“Tudo bem”.
Colocamos a caixa no banco
traseiro, entramos de volta no carro e partimos.
“Fica sabendo que não vou te deixar desamparado, viu, Denner?”,
solto, assim do nada.
Ele me olha, um tanto confuso.
“Financeiramente falando”, acrescento. “Vou deixar a agência sem funcionar por um tempo, mas tenho uma grana
legal e vou te repassar uma parte”.
“Ah, que nada, eu...”
“Não, não, nem tenta teimar comigo. Já tá decidido”.
“Bom... Então tá!”
Denner é um sujeito maravilhoso.
Depois de Milena, sem dúvida eu não poderia encontrar um parceiro de trabalho
tão incrível como ele.
“Eu gosto de trabalhar na ANNA”, diz ele. “Nesse tempo que ela vai ficar desativada, vou ficar com muita
saudade”.
“Você pode aproveitar pra escrever seus contos, seus livros”,
encorajo.
Ele abre um sorriso que mostra
que concorda com a ideia.
“Mês que vem o meu agente literário vai me apresentar pra uma mulher
responsável por uma editora bem legal. Tô empolgado!”
“Uau, sério? Isso é ótimo!”
“Sim. Dependendo da conversa, já posso até me considerar um autor que
vai ter o livro vendido no Brasil todo. Não costumo ser muito confiante, mas
dessa vez tô botando a maior fé”.
Como se não bastasse eu estar
fervendo de raiva de mim mesmo por ter sido responsável pela morte de Anna,
mesmo que indiretamente, agora fico com ainda mais raiva por não poder de fato
demonstrar alegria pelo meu amigo estar se dando bem em algo que sempre sonhou.
“É uma pena que você vai ter de sair da ANNA quando ficar famoso”,
afirmo.
“Sair da ANNA?”, ele repete, como se não entendesse. “Acho que isso pode demorar um bocado pra
acontecer. Nem sei como as pessoas vão receber o meu livro. E se ele
fracassar?”
“Não vai fracassar”, digo de uma maneira tão dura que nem lhe dou a
chance de argumentar. E, de repente, me vem um estalo completamente inesperado.
“Denner! Vamos pra casa da Milena agora!”
Outra vez confuso, ele apenas
olha para mim querendo compreender minha decisão abrupta.
“Me leva na casa da Milena, Denner. Eu preciso passar lá agora!”
(Milena)
“Compra quatro!”, jogo a carta destruidora de amizades sobre a
pilha, enquanto recebo de Juliana um olhar injuriado e surpreso. Por essa ela
não esperava.
“Filha da mãe!”, exclama ela. “Eu
achando que tava abafando te fazendo comprar duas cartas naquela hora”.
Após essa deliciosa partida,
vencida por mim, é claro, cansamos do Uno
e Ju reclama de que está com fome. Sugiro que ela pegue sorvete no freezer e sirva a nós duas. A mim,
porque mereço ser servida e também porque a derrotei lindamente na partida
final. Ela me dá a língua, mas já se levanta animadinha por saber que vai
colocar um negócio gelado e doce na boca.
“Hoje eu vou precisar da sua ajuda”, aviso.
“Pra quê?”
“Uma amiga minha quer se arrumar e ficar maravilhosa pro boy. E pediu minha ajuda. Mas eu não sou muito
boa com isso, então achei que você pudesse me acompanhar. Que tal?”
“Hum, sério?”, ela se empolga, começando a saborear seu sorvete. “Adoro essas coisas de transformação”.
“O nome dela é Rita. Tá querendo fazer uma surpresa pro namorado dela.
Você conhece ele, tava lá naquele dia que a gente foi atrás do Sávio na
agência. Ele era aquele rapaz que falou comigo”.
“Ah, legal. Eu topo, vou adorar ajudar”.
Ouço um barulho de carro lá fora.
Aproximo-me da janela, olho mas não reconheço o carro. Até que ele para de
forma que o lado do passageiro me mostra um Sávio com semblante nada animado.
Pelo contrário, ele parece mais abatido desde aquele episódio em que apanhou na
rua por homens misteriosos.
Ele vem caminhando na direção da
porta. A essa altura eu já estou na varanda acompanhando seus passos.
“A Juliana tá aí?”, ele nem me cumprimenta.
“Tá”, respondo, notando que há algo de errado.
Ele fecha a cara, chega até mim e
diz:
“Chama ela, por favor!”
“Ok”, falo, “mas, primeiro,
quer me contar o que tá acontecendo?”
Denner desce do carro e vem
calmamente cruzando o portão, rumando até nós.
“A sua prima não tava querendo se desapaixonar do Ivan? Então, eu tenho
a solução”.
“Como assim?”
Juliana deve ter escutado seu
nome e aparece na varanda, encarando Sávio.
“Que solução é essa?”, ela indaga bem baixinho, com uma fisionomia
muito séria.
Sávio chega mais perto dela e,
igualmente sério e sem enrolação, simplesmente diz:
“Você teria coragem de continuar apaixonada por um assassino?”
“Quê?!”, Ju e eu falamos.
“Acontece que o seu objeto de paixão”, explica Sávio, “jogou a minha ex-namorada do 14º andar. E
isso faz dele um assassino. O que acha disso?”
Olho para Denner em busca de
alguma explicação, já que Sávio está notadamente descontrolado.
“Do que você tá falando?”, Juliana soa amedrontada.
“Ele falou com o investigador de polícia”, esclarece Denner, como
se lesse meu pensamento a respeito de querer entender mais claramente a
abordagem de Sávio.
“Ai, meu Deus!”, exclamo, sentindo o abalo da conclusão óbvia.
Sávio continua:
“Descobrimos que o Ivan tava hospedado no hotel de onde a Anna caiu,
num quarto no décimo quarto andar, o que indica fortemente que foi dali que a
Anna caiu. Aliás, caiu não. Foi empurrada. O filho da puta é um assassino!”
Juliana empalidece na mesma hora.
“Você sabia que ele tava nesse hotel, Ju?”, indago, mas ela está
tão perplexa que leva muito mais tempo para processar minha pergunta.
Porém, Sávio é mais incisivo e
impaciente:
“Você é namorada dele, não é? Então onde ele tá, Juliana? Você tem
alguma ideia de onde ele tá? Você sabe, não sabe? Ele deve ter comentado alguma
coisa”.
Com cuidado, tento afastá-lo de
perto da minha prima.
“Ei, calma lá! Não tá vendo que a menina ficou abalada. Dá um tempo pra
ela!”
“Fala, Juliana!”, Sávio me ignora e insiste. “Você tem ideia de onde ele possa estar escondido?”
“Sávio”, outra vez tento afastá-lo, numa boa.
“Esse cara não merece paixão de ninguém, Juliana. Se você sabe de
alguma coisa, a hora de tomar uma atitude é agora. Ele matou a Anna! Ele matou
a Anna!”
“SÁVIO!!!”, eu berro e o empurro o mais forte que posso, ele
cambaleia e cai perto de uma cadeira.
Sávio faz uma careta e sacoleja
levemente o braço que tem um imobilizador.
“Droga!”, percebo que peguei pesado, e estendo a mão pra ele. “Desculpa, amigo. Você tá bem?”
“Eu sei onde ele tá”, a inesperada voz de Juliana nos arranca do
pequeno conflito.
Viro-me pra ela, incrédula. Me
sinto alvejada por flashes daquele
dia no galpão, onde ela deu as costas pra mim, seguindo Ivan e sua pequena
comitiva de namoradas.
“Como é que você sabe?”, retruco.
“Aqui”, ela procura alguma coisa no celular e, depois de encontrar,
me passa o aparelho. A tela mostra uma conversa entre Ivan e ela. Ao longo do
papo, ele insiste para que ela vá ao seu encontro, pois está abrigado com
Valéria numa casa e já perdeu Cyntia, mas não quer perder Juliana também. Pelo
teor das mensagens, o cara tá quase surtando. Parece que ela leva muito a sério
essa alcunha de “colecionador”.
“Aqui diz que ele tá refugiado em alguma casa com a Valéria”, conto
para Sávio.
“Você sabe onde fica essa tal casa, Juliana?”, ele pergunta para
Juliana.
“Sei”, confirma ela. “Eu vou
lá com vocês”, ela diz olhando para Sávio e Denner. “Eu preciso ouvir do próprio Ivan que ele matou alguém”.
“Ah, mas não vai mesmo. O que eu te dei pra comer foi sorvete e não
cocô”, oponho-me, daquele meu jeitinho próprio e ligeiramente intimidador. “O máximo que você vai fazer é passar o
endereço direitinho pro Sávio e vai ficar aqui. Na última vez que você foi
ouvir uma confissão do Ivan, a gente sabe como foi que terminou. Sem falar que
a louca da Valéria tá por perto e a gente não sabe do que ela é capaz. Além
disso, se o Ivan matou mesmo a Anna, definitivamente ele é uma pessoa ainda
mais perigosa do que a gente imaginava”.
Dessa vez, aleluia, ela não
parece que vai teimar. Obedientemente, anota o endereço num papel e entrega
para Denner, que é quem vai dirigir.
“Sávio, não faça nenhuma besteira”, recomendo. “Leva esse endereço pro investigador e faz a coisa certa, pelo amor de
Deus! Já basta de gente apanhando e gente morrendo, por favor!”
E então outro carro aparece,
estacionando logo atrás do veículo dos rapazes. Outro carro desconhecido. Meu
coração começa a bater acelerado. Será que, de tanto falar no demônio do Ivan,
ele resolve me aparecer aqui que nem o Beetlejuice?
Já começo a raciocinar se tem alguma arma perdida em casa, enquanto olho ao redor
pra ver se tem algum pedaço de madeira que me garanta pelo menos deixá-lo
inconsciente, só de leve. Não vou negar que eu ficaria bem satisfeita de
quebrar um pedaço de pau bem grosso nas costas da Valéria se pudesse...
Do carro desce um casal, e eu
creio que já tenha visto esses dois antes. Denner fica visivelmente nervoso ao
vê-los parados ao portão, encarando-nos.
Muito irritado, Denner marcha até
eles, de punhos cerrados.
“O que é que vocês querem comigo, hein? Até aqui vocês resolvem me
perseguir?”, grita ele, como quem tenta dispersar um bando de urubus.
Contudo, o casal permanece
impassível. Um homem de terno e gravata, chapéu cinza, de pele muito branca; a
mulher também é branca, loira, elegante e com ar de superioridade.
“Vão embora!”, insiste Denner.
“O que tá acontecendo?”, me dirijo a Sávio, que dá de ombros.
Bom, já que a casa é minha e é
minha responsabilidade não chamar atenção de vizinhos xeretas, decido ir até o
portão pra entender o que se sucede.
“Pois não?”, digo, com simpatia.
“Boa tarde! Você é Milena Kerber”, estranhamente a mulher afirma em
vez de perguntar. “Sou Olívia Dantas e
este é meu colega Pedro Bispo. Podemos entrar?”
Denner e eu nos entreolhamos, e
então percebo que ele tá mais confuso do que eu, embora seu incômodo esteja
longe de ter passado.
“Por que vocês querem entrar?”, pergunto.
“Precisamos conversar com você”, o tal do Pedro responde.
“Sinto muito”, lamento, “mas
não estamos num momento muito legal pra receber visitas aqui. Além do mais, o
que vocês teriam a falar comigo?”
“O que vocês estão tramando, hein, suas duas cobras?”, provoca
Denner. “Milena, não se mete com esses
dois. Eles são perigosos. Acho até que estão inventando essa história porque
estão querendo me matar. Pois fiquem sabendo...”
“Denner”, a mulher loira, Olívia, o interrompe, “nossa missão não precisa mais da sua
colaboração. Houve uma pequena mudança nos planos. Portanto, aquilo que
aconteceu na casa da sua namorada não tem mais relevância para nós, muito menos
estamos em busca de vingança. Estamos agindo na mais profunda e admirável paz”.
“O que é que tá acontecendo, gente? Tô entendendo nadinha”,
reclamo, chateada, cruzando os braços.
Sávio surge bem ao meu lado e
fala para Denner:
“Temos que ir embora. Já que eles disseram que vieram ver a Milena, ela
vai saber cuidar deles. Vamos!”
Olho para ele surpresa em ver que
vai me abandonar para lidar com os recém-chegados misteriosos.
Com o braço bom, Sávio puxa
Denner em direção ao caminho da saída. Com desconfiança, Denner passa por Pedro
e Olívia, que não devolvem a hostilidade. Denner e Sávio entram no carro e
partem, me deixando com o coração apertado. Mas sei que vai dar tudo certo. Eu
devia ter feito Sávio me prometer que não faria besteira.
“Olha, eu sei que eles foram embora, mas mesmo assim eu não tô num
momento legal aqui em casa. Então, sinto muito, seja lá o que vocês tiverem pra
tratar comigo, hoje não dá. Espero que entendam”, encerro o assunto bem
categórica, começando a dar passos para trás e forçando-os a entender que não
quero papo.
“Suas expressões faciais lembram muito as dela”, comenta Pedro, com
admiração no olhar.
Franzo a sobrancelha, porque
evidentemente não tenho a mínima noção do que ele tá falando.
“Sua mãe, Milena. Fabiana Kerber. Nós temos notícias dela”, anuncia
Olívia, com um sorriso largo. “Se nos
deixar entrar, podemos compartilhar essas notícias com você”.
Não sei como, mas não consigo
pronunciar uma palavra. É como se eu estivesse cercada por algo invisível que
me deixasse paralisada, com energia suficiente apenas para encarar esses dois
visitantes enigmáticos. Notícias da minha mãe?!
“Vão embora antes que eu chame a polícia”, esta sou eu perdendo
qualquer resquício de humor. “Esse tipo
de brincadeira eu não vou tolerar”.
Sem o menor sinal de intimidação,
Pedro tira o chapéu, exibindo uma careca brilhosa. Outra vez, sinto-me
paralisada. Ele se aproxima do portão até deixar o nariz praticamente enfiado
pela grade. E sussurra, num tom de voz que desafia todas as minhas convicções:
“Nós podemos provar que estamos falando a verdade”.
“Minha mãe morreu”, rebato, mas desta vez sem a mesma intensidade
que empreguei na ameaça segundos atrás.
Olívia tira de dentro do casaco
uma fotografia e me mostra. Na imagem, uma mulher na casa dos 50 anos, muito
conservada e bonita, sorridente. Nesse instante, é como se alguém se
transformasse numa coisa gelatinosa e molenga, frágil. Não sei que tipo de
pegadinha idiota é essa e quem seria capaz de algo tão desumano, mas o que
realmente está deixando meu coração inquieto não é a possibilidade de alguém
estar pregando uma peça cruel contra mim, mas a perturbadora constatação de que
a mulher da foto é muito semelhante à ideia que eu sempre tive da aparência da
minha mãe se ela ainda estivesse viva.
“E essa nem sequer é a prova”, completa Olívia.
Como isso pode ser verdade? Como
minha mãe pode estar viva? Meu Deus, me sinto tão fraca. Minhas pernas estão
bambas. O que devo fazer? Como eles podem provar o que estão dizendo? Queria
ter perguntado melhor ao Denner sobre Pedro e Olívia.
“Se nós não provarmos nossa palavra, você pode chamar a polícia e dizer
a eles o que quiser”, Olívia propõe, sem a menor sombra de receio.
Ambos trocam um olhar, confiante.
Não dá pra ler o que esse olhar significou, mas algo dentro de mim começa a
quebrar a resistência. Não é como se eles fossem atentar contra minha vida ou
algo assim.
“Droga”, suspiro, me rendendo. “Vocês
tem dez minutos, seus esquisitos. Ou vão sair daqui com sérias complicações.
Entrem!”
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