Era noite do aniversário de
Milena e Sávio tinha ido visitar a melhor amiga para dedicar um tempo a ela e
jogarem conversa fora. O momento que pode ser considerado o ápice foi quando
esbarraram com “As branquelas” passando em algum canal na TV paga e nem
pensaram duas vezes em assistir. O filme já estava em mais da metade. Milena
sabia um monte de falas de cor e Sávio ficava elogiando as sacadas da dublagem.
Lá pelas 11 e pouco da noite, já
era hora da despedida. Sávio precisava dirigir para voltar para casa, mas já
tinha bebido vinho branco o suficiente para causar ou sofrer um acidente.
Embora Milena tivesse insistido
que ele poderia dormir por lá, ele achou melhor não, pois tinha trabalho a
fazer no dia seguinte e, dormindo em casa, com certeza ia acordar com os
barulhos garantidos da mãe.
“Não tem problema”, argumentou Mile. “Eu posso fazer bastante barulho pra você acordar. Eu tenho umas
panelas muito boas aqui em casa. Me diz aí um barulho insuportável que te
arranca da cama depressinha”.
“Você já ouviu falar em tecnobrega?”
Ambos caíram na risada. Deve-se
admitir que o teor alcoólico ajudou a deixar qualquer bobagem mais risível.
“Ai, ai”, suspirou Sávio. “Até
parece que você também não iria acordar bem tarde amanhã. Melhor não arriscar.
Com a minha mãe não tem erro. Não importa o que aconteça, ela sempre acorda
antes das 6:30 e começa a perambular pela casa reclamando. Melhor do que
qualquer alarme de celular”.
“Tudo bem então”, Mile se rende. “Obrigada por ter vindo aqui no dia do meu aniversário!”
Ele a abraçou apertado, em
seguida recolheu o tabuleiro do jogo Quest
e suas peças componentes e enfiou tudo na caixa própria. As horas que
passaram juntos foram preciosíssimas.
Despediram-se. Milena desejou que
ele tivesse cuidado e Sávio, embora tivesse bebido, sentia-se bastante seguro.
Aviso de notificação no celular.
Já eram 23:55 e havia uma mensagem de Anna no Whatsapp. Sávio a leu com certa preocupação, pois apesar de eles
terem terminado o namoro há meses, ela de vez em quando mandava “ois”,
“bom-dias”, “boas-noites” e emojis bonitinhos. Isso o incomodava um pouco, pois
realmente tinha acreditado que tudo havia terminado bem, sem a menor chance de
reatar. Porém, Anna era insistente. Era como se ficasse dando sinais de que ainda
estava disponível pro caso de ele mudar de ideia. Por fim, ainda naquele fim de
noite, ela acabou ligando para ele.
“Oi, Anna!”, ele atendeu, com cuidado para não soar mal-educado.
“Oooiii!”, ela disse, com voz festiva. “Olha, eu vou direto ao ponto: uma prima minha vai dar um jantar de
noivado no fim de semana e eu tava pensando se a gente podia ir junto. Mas sem
grilo, tá tudo numa boa, eu já expliquei pra ela que não estamos mais namorando
e tudo mais. Seria só um encontro entre amigos, digamos assim. É que eu odeio
ir desacompanhada pra esse tipo de ocasião”.
“Ah, sim...”
Além de provavelmente estar com
um hálito que de longe o reprovaria no bafômetro, Sávio ainda por cima estava
usando o celular enquanto dirigia. Entretanto, o que mais o chateava era não
ter um raciocínio ágil o bastante para dar um fora em Anna sem magoá-la. Ou
será que uma patada seria mais eficaz? Não, as coisas não precisavam ir por
aí... As circunstâncias do rompimento já tinham sido muito chatas, ele
reconhecia. E agora, ela vinha com esse papo de não gostar de comparecer
desacompanhada a um evento. Como lidar com isso?
“Olha, Anna, não sei se vai dar... Eu... Eu posso precisar sair no
sábado... Sei lá, talvez pra investigar alguém pra algum caso da empresa. É bem
complicado, sabe... me comprometer com qualquer coisa e...”, justificou-se
ele, transmitindo uma péssima impressão com as gaguejadas.
“Hummm... Sei...”
“Mas qualquer coisa eu te aviso”.
“Tudo bem, querido”, conformou-se ela, com sua típica elegância de
não querer perseverar num assunto.
“Pois é, desculpa mesmo”.
“Relaxa. Qualquer coisa, me liga então, Beijo!”
“Outro. Tchau!”
Sávio desligou a chamada com a
certeza de que é mais fácil acreditar em fadas e duendes do que na desculpa
esfarrapada que dera. E o que mais lhe doía era saber que Anna era madura
demais pra não ver que ele só estava lhe mantendo de escanteio. Porém, por mais
egoísta que pudesse parecer, Sávio se perguntava por que ela simplesmente não parava
de se iludir desse jeito e lhe deixar em paz e sem aquela sensação amarga de
remorso.
Quando deu por si, um sedan lhe
deu uma fechada brusca e se colocou em sua frente. Foi tudo bem rápido: três
homens muito fortes, com porte de seguranças de boate, desceram do carro e
marcharam de cara zangada rumo ao carro de Sávio. Um deles segurava uma barra
de ferro e sem qualquer cerimônia investiu contra o vidro da frente, rachando-o
com uma violência descomunal, golpeando repetidamente.
Outro brutamontes abriu a porta
do carro antes de Sávio sequer ter tempo de travá-la, e arrancou-o de dentro do
veículo com a mão no colarinho de sua camisa.
“Que é isso, cara? Pode levar o que quiser, leva o que quiser!”
Sávio não se recordava quando
fora a última vez em que sentira tanto medo. A garganta logo secou e o calor do
nervosismo foi se alastrando por todo seu corpo, sufocando-o.
O homem que o arrancara do carro
o arremessara contra uma lata de lixo na calçada. Um quarto cara, que deveria
ser o motorista da gangue, surgiu com um celular em punho, aparentemente
filmando e fotografando toda a ação.
Sávio tentou se levantar, zonzo
pelo vinho e agora ainda mais por conta do baque. O que estava acontecendo?
Aquilo não estava parecendo um assalto. Parecia que ele era um alvo proposital.
Os três homens fortes caminharam
em sua direção, enquanto o quarto ficava com o celular apontado para não perder
nenhuma imagem, e a pancadaria começou. Muitos chutes e muitos socos,
entremeados por gritos de dor e pedidos agoniados de Sávio para que parassem.
Aquele pedaço da rua era extremamente deserto e, se alguém estivesse escutando
tudo, preferiu não se intrometer.
Sávio apanhou tanto que apagou e,
mesmo assim, a surra não cessou. E é isso que explica o fato dele não estar
podendo narrar esses relatos.
Foi Sávio quem, muitos anos
atrás, apresentou para Anna Munhoz aquela que viria a se tornar a música
favorita dela. Uma canção dos Beatles com
o conveniente nome de... “Anna”!!
“Ah, é sério?”, ele não acreditara na época. “Mas a letra nem tem a ver com você. Só é sua favorita porque tem seu
nome, né?”
“É isso mesmo!”, assumira ela sem o menor problema. “Bom, mas a música é bonita e tem um embalo muito
legal”.
“Mas é sua favorita de todas as músicas do mundo ou é só sua favorita
dos Beatles?”
“De todas do mundo”, respondeu ela, prontamente.
Eles estavam na casa dela nesse
dia, no quarto dela. Os pais de Anna estavam em casa fazendo qualquer coisa na
sala e tanto ela quanto Sávio estavam plenamente cientes de que, se tentassem
qualquer “gracinha” (leia-se “transar”), eles dariam um jeito de descobrir e
dar um belo basta naquele namoro. Mal sabiam o Senhor e Senhora Munhoz que,
apesar da forte atração que tinham um pelo outro, o casalzinho queria ir com
calma. Achavam que apenas quatro meses de namoro ainda era cedo demais e, a bem
da verdade, a obsessão de Sávio com coisas nerds atrapalhavam qualquer clima
sexual de nascer. Volta e meia ele aparecia com músicas, jogos e séries e
conseguia fazer a namorada se apaixonar perdidamente por essas novidades. De
tanto que esses dois “se preservavam”, seria mais capaz a mãe de Anna chegar
com a filha e lhe dar umas aulas de como se insinuar sexualmente para o
namorado, só para poder enquadrar a filha no que ela considerava mais normal do
que ficar vendo episódios de Dragon Ball
Z incansavelmente.
Anna tinha um micro-system no quarto. Caminhou até
ele, pegou uma fita cassete e colocou para tocar. A música dos Beatles já
estava no ponto. Começou a se espalhar pelo ambiente, enquanto Anna, em pé,
virou-se de costas para Sávio, que jazia sentado sobre a cama dela. Anna, que
sempre foi talentosa para a dança, começou a se mover ao som da música, de um
jeito gracioso e, de certa forma, um tanto infantil, mas com a sensualidade
fácil de se ver numa garota de quinze anos.
Sávio soube ali, naquele momento,
que essa seria uma das imagens mais marcantes que ele guardaria dela para
sempre, não importa o que viesse a acontecer aos dois. Enquanto John, Paul,
Ringo e George os conduziam naquela jornada apaixonada em forma de canção, Sávio
contemplava tudo quieto, com o coração sendo mais e mais envolvido pelos encantos
de sua jovem paixão. Até que, lentamente, ela se virou para ele e lhe jogou um
beijinho, seguido de uma piscadela e finalizando com um sorriso doce, só para
fechar os olhos e continuar se mexendo ao som de sua música favorita.
Sávio não sabia dizer o porquê,
mas essa música estava tocando lá no fundo de sua mente, enquanto era trazido
de volta à consciência. A memória dos Beatles
cantando essa melodia tão significativa e de Anna dançando no quarto...
Tudo parecia tão vívido. Até que ele abriu os olhos e a primeira coisa que viu
foi um teto esbranquiçado, e o mais puro silêncio ao redor. A dor veio depois,
muita dor.
Quando tentou virar a cabeça pro
lado, a dor foi excruciante. Então, desistiu, fazendo uma careta.
Um vulto se levantou de alguma
cadeira por perto, indo em sua direção. Ainda pensando que estava tendo
alucinações com o passado, Sávio não compreendeu o que Anna Munhoz estava
fazendo ali.
“Nossa, você acordou! Que bom!”, ela demonstrou alívio genuíno.
“O que... O que você... Ai!”, ele balbuciou, sentindo a mandíbula
arder e o hálito com gosto meio ferroso. Tipo como se tivesse experimentado
bastante sangue.
“Calma, meu bem, calma. Tá tudo bem agora, viu?”
Sávio percebeu que ela estava
usando jaleco e um crachá.
“Eu tô no hospital?!”
“Sim”, confirmou ela. “Mas
fica calmo, você vai ficar bom, é só não fazer muito esforço, ok?”
Sávio soltou um gemido de dor. As
costelas latejavam. Piscando por conta da confusão da ocasião, percebeu que um
dos olhos estava mais fechado do que o outro. Como se um deles estivesse
consideravelmente inchado. E realmente estava.
“O que houve?”, indagou ele, com dificuldade.
Anna olhou para ele com ternura e
um pouco de preocupação.
“Você ficou desacordado por doze horas, Sávio. Encontraram você na rua
completamente espancado”.
A menção da palavra “espancado”
foi como um gatilho que ele precisava para se lembrar de toda a situação que
sofrera na noite passada. Sua reação imediata foi rememorar em cada centímetro
do corpo todo o ataque gratuito.
Quando Anna voltou quarenta
minutos depois de Sávio ter acordado, as dores dele já estavam mais amenas,
graças à medicação que o médico administrara. Quando ela entrou no quarto,
carregava uma bandeja com um prato grande, um pequeno e um copo descartável.
“A gente tá no mesmo hospital que você trabalha?”, interessou-se
ele, degustando da ironia que se configurava. Dera um jeito de dispensar Anna
na noite passada, mas viera parar sob seus cuidados. A famosa justiça poética.
“Aham!”, confirmou ela, pondo a bandeja sobre uma pequena mesa ao
lado da cama. “Duas pessoas te
encontraram na rua, pegaram seu celular e viram que o último número na memória
era o meu, então me ligaram”.
“Caramba! Sério? E por que não ligaram pra polícia?”
“Não faço ideia”, Anna deu de ombros. “Mas você tem que reconhecer que foi sorte terem ligado pra mim, né?
Quero dizer, eu trabalho num hospital, sou médica e... bem, já fomos
namorados”.
Sávio fez o possível para não dar
uma de Denner e acabar expelindo oralmente o primeiro pensamento que lhe veio à
cabeça: será que Anna não tinha armado tudo para colocá-lo em suas mãos? Que
tipo de maníaca ela seria a ponto de contratar homens para lhe dar uma coça tão
brutal? Ele decidiu afastar o pensamento, apesar de parecer tudo muito planejado.
E que história é essa de duas pessoas o encontrarem na rua e ligarem para Anna
em vez de informar à polícia?
“Eu imagino o que você tá pensando”, ela não se intimidou. “Mas eu definitivamente não seria uma
escrota e fazer você ser espancado até quase morrer. Eu sou melhor do que isso.
É até chato se isso estiver passando pela sua cabeça, mas eu tava falando sério
quando disse que só queria te ver bem. Lembra? Naquele dia em que conversamos
você, Milena e eu”.
“Eu me lembro”, atestou ele.
Uma ligeira busca em suas
lembranças fez Sávio perceber que Anna jamais mentira para ele. Ou melhor, na
única vez em que fizera isso, ainda na adolescência, foi para poupá-lo das
agruras que ela estava tendo de lidar. Portanto, concluiu ele, não havia motivo
para suspeitar que ela tinha sido a responsável pelo ocorrido da noite
anterior.
“E a polícia já tá sabendo que você acordou e em breve vem alguém pra
conversar com você”, continuou ela. “Trouxe
seu almoço”, ela apontou para a bandeja. “Vamos, vou te ajudar a se sentar pra comer. Enfermeiro!”
“Tá tudo doendo”, queixou-se Sávio. “Sinceramente, não sei como não morri. Teve uma hora que eu apaguei e
não vi mais nada”.
Anna se aproximou dele, ajudada
pelo enfermeiro que chamara, e os dois cuidadosamente foram auxiliando Sávio a
se acomodar na cama, de forma que pudesse ter um mínimo de conforto para
almoçar.
“Obrigada, Luís!”, ela agradeceu ao enfermeiro, que saiu. Em
seguida, voltou-se ao ex-namorado: “E
então, tem alguma ideia do porquê fizeram isso com você? Ou de quem? A polícia
disse que não levaram nada, só quebraram o vidro do seu carro e te bateram.
Então não foi assalto”.
“Não faço a mínima ideia”, lamentou Sávio. “No ramo que eu trabalho, daria pra acusar um monte de gente. Sei lá,
algum psicopata pode não ter gostado nada de saber que sua namorada pagou pra
se desapaixonar dele. Coisas assim, sabe...”
Anna abriu a embalagem de
plástico com os talheres, parecendo serena. Acompanhando-a com o olhar, Sávio
teve outro vislumbre daquele dia em que ela estava dançando lindamente ao som
dos Beatles.
“Hum... Faz sentido”, concordou ela.
“Faz sentido e é assustador também”.
“Muito”.
“Droga!”, bufou ele. “Eu
tenho que avisar lá na agência...”
“Pode deixar comigo. Assim que você almoçar, eu vou dar uma ligadinha
pra lá”.
Sávio tentou movimentar o braço
para pegar a colher, mas não conseguiu disfarçar a careta de dor. Vendo isso,
Anna não comentou coisa alguma e apenas tomou para si a responsabilidade de
alimentá-lo.
Mastigar doía. A comida estava
gostosa, mas cada mordida era um sacrifício doloroso. A atividade aconteceu em
silêncio. Até que, enquanto ela preparava outra colherada, Sávio resolveu tocar
num assunto:
“Você se lembra da sua música favorita?”
“O quê?”
“Sua música favorita”.
Ela riu, tentando entender por
quê ele de repente resolveu falar nisso.
“Claro que eu lembro. É a ‘Anna’,
dos Beatles. Imagina se eu ia esquecer!”
“Eu não sei porquê, mas... acho que eu me lembrei dela durante meu
pequeno coma”.
“Sério?”, ela continuou rindo. “Falando
em coma...”, ela se interrompeu de propósito, fazendo sinal pra ele abrir a
boca pra engolir a comida.
Enquanto ele mastigava, Anna teve
uma ideia.
“Eu tenho essa música no meu celular, sabia? Quer escutar?”
“Nossa!”, pela primeira vez ele sorriu desde que acordara do coma,
inundado de nostalgia. “Eu quero sim.
Coloca aí!”
Ela deixou o prato quase vazio
sobre a mesa e foi até sua bolsa, de onde sacou o celular. Parecia bastante
entusiasmada, enquanto se ocupava mexendo no aparelho em busca da música. E,
então, deu o play.
Foi só a música começar que Sávio
se sentiu transportado para 2001, para aquele quarto de menina adolescente. Ele
foi até capaz de ver a penteadeira com perfumes e itens de maquiagem, e
diversos pôsteres decorando as paredes, de astros pop a cartazes de filmes. E
ela dançando. Ah, sim, uma imagem tão clara como se fosse hoje... Como se
fossem aquele casal nos primórdios do romance, desfrutando de uma intimidade
velada, que não viria a se consumir, mas que dava um quentinho no coração― e em
outras partes também, se é que estou sendo claro.
No entanto, estava realmente
acontecendo, não era só uma recordação distante projetada por uma cabeça
pulsando de dor. Não era 2001. Era ali, naquele quarto de hospital. Sávio todo
avariado e confuso por não ter a menor pista de quem o quisera naquele estado,
e Anna dançando com a leveza que sempre lhe foi peculiar. O ruivo de seus
cabelos, ainda que já meio desbotados, capturando a ternura no olhar de Sávio. Anna
Munhoz, aquela que carregava em si a perturbadora dicotomia de ser apaixonante
e desapaixonante.
Sávio soube ali que,
provavelmente, ela nunca deixaria de amá-lo, mesmo que encontrasse um cara
sensacional futuramente. E, no meio de todo aquele sofrimento físico que estava
passando, Sávio compreendeu que o que mais lhe doía era saber que não tinha
capacidade para retribuir tanto amor. No auge de suas considerações, pensou: “Por que aqueles filhos da mãe não me
mataram logo?”
Aproveitando a distância do
quarto do ex-namorado, Anna ligou para ANNA (o que lhe fez querer rir enquanto
discava, pelo quanto isso parecia deliciosamente insano), explicou rapidamente
o que tinha acontecido, deixando Madonna apreensiva. Segundo a secretária,
Denner não estava na agência, saíra com um casal bem-vestido e misterioso.
Após essa ligação, Anna estava
nervosa. Mas precisava tirar essa história a limpo, e sua suspeita era muito
forte. Então, discou para outro número.
“Você tá em casa? Preciso falar com você, mas tem de ser pessoalmente”,
disse ela, tentando soar o mais casual possível, mas mantendo um certo ar de
urgência para que a pessoa a levasse a sério.
“Não tô em casa”, disse a pessoa do outro lado da linha, bastante
relaxada. “O que aconteceu?”
“Desculpa, mas tem de ser pessoalmente”.
Silêncio. A pessoa provavelmente
estava pensando numa alternativa. Uns 15 segundos depois, a pessoa respondeu:
“Eu tô passando uns dias num hotel, vou te passar um endereço. Você se
incomoda se não estivermos sozinhos?”
“Humm... É que eu preferia ter uma conversa particular”.
“Ah... Acho que não vai ser possível. Pode até rolar, mas não posso te
garantir nada”.
“Então tudo bem, pode ter gente por perto, não tem problema”.
“Uau! Você quer mesmo falar comigo, hein!”
“Sim. Preciso!”
A pessoa passou o endereço e Anna
memorizou meticulosamente. Hoje mesmo ia tentar entender o que estava
acontecendo.
Era pouco mais de cinco da tarde
quando Anna desceu do carro e averiguou o celular, preparando-o para lhe servir
de ajuda. O hotel Glory era um
edifício opulento de fachada muito chique e repleto de janelas de vidro muito
compridas nos apartamentos. Anna presumiu que o prédio tivesse mais de 20
andares. Logo na entrada, havia um jardim com um gramado bonito e bem cuidado
na frente, pelo qual ela atravessou ao longo de uma passarela de concreto que
se estendia por quase seis metros do portão até a entrada do saguão.
Anunciou-se na recepção, e o
atendente só precisou confirmar com o hóspede que a estava aguardando. Liberada
para subir, Anna tentou manter a calma. Ela não sabia bem o porquê, mas sua
desconfiança beirava o desespero.
O quarto era no 14º andar. O
elevador se abriu, ela foi marchando tranquilamente até o quarto 1404. Anna
tomou o último fôlego, ensaiando mentalmente como levaria a conversa. Por que
fora até ali? Valia mesmo a pena? Dane-se, já estava ali mesmo...
Para sua não tão grande surpresa,
quem lhe recebeu foi uma das namoradas de Ivan. Era uma morena de cabelos
ondulados e olhos pequenos, de nome Cyntia.
“Oi, tudo bem?”, cumprimentou Anna. “O Ivan está?”
“Só um momentinho”, Cyntia virou-se para uma direção que Anna não
podia visualizar muito bem da porta. Pela cara não muito contente de Cyntia,
sua visita estava atrapalhando algo.
Ivan aproximou-se delas, vestindo
apenas um robe de seda verde-escuro com detalhes dourados e com uma taça de
champanhe numa das mãos.
“Boa tarde, Anna!”, cumprimentou ele, estendendo a mão desocupada
ao redor, indicando que ela poderia entrar.
Anna começava a se arrepender,
graças ao olhar de desprezo de Cyntia, mas foi entrando. Decidiu que não ia se
preocupar com esses detalhes.
“Pode ficar à vontade, sente-se aí no sofá. Quer beber alguma coisa?
Esse champanhe é delicioso!”, disse Ivan.
“Não quero nada, obrigada. Eu ficaria mais à vontade se você estivesse
vestido com... roupas”, confessou Anna.
Ivan riu, assentindo.
“É mesmo! Mas é que resolvi me dar uns dias de folga do trabalho pra
ficar com as meninas. Por isso estou me dando ao luxo de ficar no Glory”.
Anna observou ao redor, detendo o
olhar em Cyntia, que estava sentada à bancada do bar do apartamento, olhando
qualquer coisa em seu smartphone.
“Parece que você não poupou mesmo, hein!”, admirou-se Anna, que
preferiu ficar caminhando pelo cômodo. Estava nervosa demais para se sentar.
“Quem tá aí, amor?”, surgiu Valéria, vindo do exterior do
apartamento. Estava com os cabelos molhados e uma toalha pendurada no ombro,
então Anna deduziu que ela tivesse acabado de aproveitar a piscina do hotel.
Anna, simpática, fez um aceno com
os dedos. Valéria apenas balançou a cabeça lentamente, devolvendo a saudação,
porém deixando bem claro que sua presença não era bem-vinda.
“Falta a Ju”, acrescentou Ivan. “Ela
deu uma saidinha, mas deve estar voltando. Mas enfim, Srta. Anna Munhoz, o que
lhe traz aqui?”
“Elas precisam mesmo estar aqui?”
“Desculpa, Anna, mas eu tenho tido pouco tempo pra elas, então cada
minuto é valioso. Na verdade, você que tá com sorte por elas terem concordado
em ceder um pouco desse tempo pra você”.
Anna resistiu à tentação de
revirar os olhos, passando por cima da enorme sensação de nojo que sentia.
Outrora, ela e Ivan eram muito amigos. Mas ela conseguia encarar com surpresa o
tanto que ele era sujo, então já não fazia tanta questão dessa amizade.
“Muito bem”, ela respirou fundo. “Em nome da amizade que nós sempre tivemos, não mente pra mim, Ivan.
Foi você quem mandou espancar o Sávio?”
Se foi fingimento ou não, ninguém
sabe, mas ele tossiu ao escutar isso. Provavelmente engasgando-se com o
champanhe, e prontamente acudido por Valéria.
“Que é isso, garota? Quem você pensa que é pra vir aqui e falar isso
pro meu namorado? Tá maluca?”, doeu-se Valéria, deixando a toalha cair no
chão.
Mas Ivan ergueu a mão,
sinalizando que estava tudo bem e que ele tinha tudo sob controle. Cyntia
continuou mexendo em seu celular, mas agora prestava mais atenção à conversa na
sala do apartamento, que, a propósito, era bastante espaçosa.
“Anna!”, exclamou Ivan, surpreso (ou fingindo surpresa, quem sabe).
“Como é que você pode me acusar de uma
coisa dessas? Espancaram o Sávio? Meu Deus, quando foi isso? Como ele está?”
“Eu não tô te acusando, Ivan”, defendeu-se Anna. “Eu estou perguntando se foi você. Tanto que
eu pedi pra você me dizer se fez isso, em nome da nossa amizade”.
“Negão, é sério que essa mulher tá dizendo que é sua amiga?”,
Valéria se meteu novamente; sua ira em contínuo crescimento.
“Valéria, por favor!”, Ivan pediu para ela se calar, todo gentil.
Então, voltou a atenção para Anna: “Olha,
eu tô realmente confuso aqui. Como é que você chega e me pergunta um absurdo
desses? Anna, sinceramente, se você diz que nós somos amigos, acho que tem
alguma coisa errada nessa amizade aí”.
Mas Anna não se deixava
convencer.
“Por que eu faria isso?”
“Porque ele ajudou a Milena a expor você. Ele descobriu sobre o seu
harém particular e contou tudo pra Milena, que depois reuniu todas as suas
namoradas pra acabar com a sua festinha. Conhecendo você, eu sei que ficaria
muito puto. Poderia até não demonstrar, mas é do seu feitio preparar uma
vingancinha em silêncio”.
Valéria arregalou os olhos e
abriu a boca em estarrecimento.
“Que audácia!”, esbravejou.
Cyntia continuava acompanhando
tudo calada, mas dessa vez sem se distrair com o telefone.
“Eu poderia chamar a polícia agora, Anna”, insinuou Ivan, cruzando
as pernas e bebendo de seu champanhe. “Poderia
te acusar de calúnia e difamação, já que você se deu ao trabalho de vir até
aqui e atrapalhar meu momento com as minhas namoradas, e não tem prova nenhuma
do que tá falando. Mas, como você mesma disse, em nome da nossa amizade, vou
deixar você ir embora numa boa”.
“Negão!?”, Valéria quis protestar, mas foi censurada pelo olhar do
namorado.
“Ele foi quase morto, Ivan”, persistiu Anna. “Bateram tanto nele, praticamente quebraram as pernas e as costelas
dele. Foi muito cruel. Olha, se eu descobrir que você teve algum envolvimento
nisso, eu sou capaz de fazer uma loucura”.
“Ivan, se você não chamar a polícia, eu vou”, ameaçou Valéria,
apanhando seu celular numa cômoda por perto. “Essa mulherzinha aí passou dos limites. Além de te acusar de mandar
bater em alguém, fica fazendo ameaça. Ah, mas eu não posso deixar isso barato”.
Anna viu em Valéria uma fúria se
desenhando como nunca viu em ninguém. Conhecia a péssima fama dela de
psicótica, então resolveu adotar uma postura diferente.
“Tudo bem, desculpa. Não precisa ligar pra ninguém”, ela tentou
anuviar a situação, não podia deixar que tudo se arruinasse agora. “Mas, por favor, Ivan, entende o meu lado.
Eu tô desesperada”.
Valéria acatou, mas ficou com o
celular em mãos.
“Por quê?”, Ivan perguntou para Anna. “Esse cara não tá nem aí pra você, Anna. Nós já tentamos, não foi? Eu
fiz a minha parte e consegui que você reconquistasse ele, mas você perdeu o
sujeito. Poxa, será que vale a pena ficar se importando tanto assim com uma
pessoa que não quer saber de você?”
Anna ajeitou a bolsa no ombro com
cautela, onde seu celular estava gravando toda a conversa. Sua esperança era
que arrancasse algo que confirmasse que Ivan era o culpado de tudo. Precisava
atiçá-lo de alguma maneira, mas não contava com um desagradável revés chamado
Valéria.
“Quer saber qual é o problema, Anna?”, instigou Ivan, enchendo a
taça com mais champanhe.
Ela ficou esperando ele
continuar.
“Você é o problema!”, ele afirmou, categórico e afiado, o que
pareceu agradar muito Valéria, que deixou escapar um sorrisinho cínico.
Anna sentiu o impacto, mas não
quis deixar transparecer.
“Você já era, Anna”, prosseguiu Ivan, sua voz num tom mais grave e
rancoroso. “Em vez de você sair de cena
decentemente, fica aí dando uma de boa-moça defensora dos pobres idiotas
espancados em vias escuras e sem movimento tarde da noite”.
“Eu não disse onde e nem quando ele foi espancado”, retrucou ela,
sentindo crescer em seu peito o ódio pela conclusão dos fatos. Sim, só podia
ter sido Ivan o culpado. Agora não restava mais dúvida. Ele se entregara. Mas
algo lhe dizia que isso não foi uma falha, ele o fizera por estar cansado de
negar, talvez até tivesse apenas brincado com a cara dela esse tempo todo ao
bancar o inocente.
“Se fui eu ou não, Anna, não era pra fazer diferença alguma na sua
vida. Você deveria achar merecido que aquele enxerido tenha levado uma boa
surra, isso sim. Afinal, ele te usou como bem quis e te largou assim que voltou
às boas com a amiguinha dele. Você achando que era a estrela principal do show,
quando sempre foi só a coadjuvante. Você nunca passou de uma mera coadjuvante,
Anninha!”
“Foi você”, sussurrou ela, porém audível o suficiente para que Ivan
escutasse e ficasse registrado na gravação do celular.
“Fui eu sim!”, confirmou Ivan, saboreando cada palavra.
Nem Valéria nem Cyntia pareceram
se abalar. A primeira não via problema algum nisso; a segunda estava começando
a ficar com medo, pois era pra estar curtindo um momento com o homem que ama,
mas esse homem a estava deixando amedrontada.
“Sabe, Anna”, Ivan passou a usar um tom mais zombeteiro, “cada bombadão que eu paguei pra dar porrada
no Sávio pediu uma merrequinha de nada pra fazer o serviço. Pra você ver como é
barato quebrar a cara daquele intrometido babaca. E sabe o que mais? Eu tenho o
vídeo mostrando tudinho. Tá a fim de ver?”
Anna não conseguiu mais controlar
as lágrimas. Já estava querendo chorar faz tempo. Ivan atingira seu âmago. Para
disfarçar, ela começou a se afastar e andar até a janela comprida de vidro,
espiando o mundo lá fora e deixando-se tocar pelos fracos raios de sol que
incidiam sobre a vidraça. Uma coisa era suspeitar que ele tivesse sido a mente
maligna por trás de tudo; outra, muito diferente e muito mais revoltante, era
lidar com a confirmação disso.
“Eu pensei que você fosse mais forte e mais inteligente, Anna”,
Ivan continuou provocando.
De repente, uma chamada no
celular de Anna fez ativar sua música favorita, a dos Beatles. Ela era o toque de seu telefone. A música tocava bem
baixinha, só Anna podia escutá-la. Atordoada, Anna tentou enfiar a mão na bolsa
para recusar a chamada, com receio de que isso atrapalhasse o registro em áudio
que vinha fazendo.
“A vadia tá gravando a conversa”, Valéria suspeitou e cochichou
para si mesma, atingindo o auge de sua impaciência e indignação com a presença
de Anna, e rumou em passos largos até ela.
Ivan e Cyntia mal tiveram tempo
de processar o que Valéria dissera.
Anna não reconheceu o número que
estava ligando para ela, e quando finalmente conseguiu recusar a chamada e
fazer cessar a música dos Beatles,
Valéria já estava a centímetros dela, fuzilando-a com um olhar diabólico e com
as duas mãos prontas para empurrá-la contra a janela.
“Valéria!”, gritou Cyntia, em vão.
Mal tendo tempo para se desviar,
a última coisa que Anna sentiu foram as mãos violentas de Valéria, que empregou
toda a força do próprio corpo contra ela. Os olhos endiabrados da namorada mais
perigosa de Ivan também foram a última imagem que Anna registrou, porque seu
raciocínio se desligou assim que percebeu que seu corpo atravessava a vidraça
prédio afora e despencava, rasgando o ar suave do fim de tarde, atirado do 14º
andar, indo encontrar a morte inevitável sobre o gramado bem-cuidado do hotel.
Enquanto isso, Ivan e Valéria
partiam em fuga do apartamento 1404, deixando para trás uma Cyntia aos berros e
completamente tomada pelo pânico.
Nenhum comentário:
Postar um comentário