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7 de janeiro de 2018

DESAPAIXONANTE --- EPISÓDIO 4x14: A MÚSICA FAVORITA




Era noite do aniversário de Milena e Sávio tinha ido visitar a melhor amiga para dedicar um tempo a ela e jogarem conversa fora. O momento que pode ser considerado o ápice foi quando esbarraram com “As branquelas” passando em algum canal na TV paga e nem pensaram duas vezes em assistir. O filme já estava em mais da metade. Milena sabia um monte de falas de cor e Sávio ficava elogiando as sacadas da dublagem.
Lá pelas 11 e pouco da noite, já era hora da despedida. Sávio precisava dirigir para voltar para casa, mas já tinha bebido vinho branco o suficiente para causar ou sofrer um acidente.
Embora Milena tivesse insistido que ele poderia dormir por lá, ele achou melhor não, pois tinha trabalho a fazer no dia seguinte e, dormindo em casa, com certeza ia acordar com os barulhos garantidos da mãe.
“Não tem problema”, argumentou Mile. “Eu posso fazer bastante barulho pra você acordar. Eu tenho umas panelas muito boas aqui em casa. Me diz aí um barulho insuportável que te arranca da cama depressinha”.
“Você já ouviu falar em tecnobrega?”
Ambos caíram na risada. Deve-se admitir que o teor alcoólico ajudou a deixar qualquer bobagem mais risível.
“Ai, ai”, suspirou Sávio. “Até parece que você também não iria acordar bem tarde amanhã. Melhor não arriscar. Com a minha mãe não tem erro. Não importa o que aconteça, ela sempre acorda antes das 6:30 e começa a perambular pela casa reclamando. Melhor do que qualquer alarme de celular”.
“Tudo bem então”, Mile se rende. “Obrigada por ter vindo aqui no dia do meu aniversário!”
Ele a abraçou apertado, em seguida recolheu o tabuleiro do jogo Quest e suas peças componentes e enfiou tudo na caixa própria. As horas que passaram juntos foram preciosíssimas.
Despediram-se. Milena desejou que ele tivesse cuidado e Sávio, embora tivesse bebido, sentia-se bastante seguro.


Aviso de notificação no celular. Já eram 23:55 e havia uma mensagem de Anna no Whatsapp. Sávio a leu com certa preocupação, pois apesar de eles terem terminado o namoro há meses, ela de vez em quando mandava “ois”, “bom-dias”, “boas-noites” e emojis bonitinhos. Isso o incomodava um pouco, pois realmente tinha acreditado que tudo havia terminado bem, sem a menor chance de reatar. Porém, Anna era insistente. Era como se ficasse dando sinais de que ainda estava disponível pro caso de ele mudar de ideia. Por fim, ainda naquele fim de noite, ela acabou ligando para ele.
“Oi, Anna!”, ele atendeu, com cuidado para não soar mal-educado.
“Oooiii!”, ela disse, com voz festiva. “Olha, eu vou direto ao ponto: uma prima minha vai dar um jantar de noivado no fim de semana e eu tava pensando se a gente podia ir junto. Mas sem grilo, tá tudo numa boa, eu já expliquei pra ela que não estamos mais namorando e tudo mais. Seria só um encontro entre amigos, digamos assim. É que eu odeio ir desacompanhada pra esse tipo de ocasião”.
“Ah, sim...”
Além de provavelmente estar com um hálito que de longe o reprovaria no bafômetro, Sávio ainda por cima estava usando o celular enquanto dirigia. Entretanto, o que mais o chateava era não ter um raciocínio ágil o bastante para dar um fora em Anna sem magoá-la. Ou será que uma patada seria mais eficaz? Não, as coisas não precisavam ir por aí... As circunstâncias do rompimento já tinham sido muito chatas, ele reconhecia. E agora, ela vinha com esse papo de não gostar de comparecer desacompanhada a um evento. Como lidar com isso?
“Olha, Anna, não sei se vai dar... Eu... Eu posso precisar sair no sábado... Sei lá, talvez pra investigar alguém pra algum caso da empresa. É bem complicado, sabe... me comprometer com qualquer coisa e...”, justificou-se ele, transmitindo uma péssima impressão com as gaguejadas.
“Hummm... Sei...”
“Mas qualquer coisa eu te aviso”.
“Tudo bem, querido”, conformou-se ela, com sua típica elegância de não querer perseverar num assunto.
“Pois é, desculpa mesmo”.
“Relaxa. Qualquer coisa, me liga então, Beijo!”
“Outro. Tchau!”
Sávio desligou a chamada com a certeza de que é mais fácil acreditar em fadas e duendes do que na desculpa esfarrapada que dera. E o que mais lhe doía era saber que Anna era madura demais pra não ver que ele só estava lhe mantendo de escanteio. Porém, por mais egoísta que pudesse parecer, Sávio se perguntava por que ela simplesmente não parava de se iludir desse jeito e lhe deixar em paz e sem aquela sensação amarga de remorso.
Quando deu por si, um sedan lhe deu uma fechada brusca e se colocou em sua frente. Foi tudo bem rápido: três homens muito fortes, com porte de seguranças de boate, desceram do carro e marcharam de cara zangada rumo ao carro de Sávio. Um deles segurava uma barra de ferro e sem qualquer cerimônia investiu contra o vidro da frente, rachando-o com uma violência descomunal, golpeando repetidamente.
Outro brutamontes abriu a porta do carro antes de Sávio sequer ter tempo de travá-la, e arrancou-o de dentro do veículo com a mão no colarinho de sua camisa.
“Que é isso, cara? Pode levar o que quiser, leva o que quiser!”
Sávio não se recordava quando fora a última vez em que sentira tanto medo. A garganta logo secou e o calor do nervosismo foi se alastrando por todo seu corpo, sufocando-o.
O homem que o arrancara do carro o arremessara contra uma lata de lixo na calçada. Um quarto cara, que deveria ser o motorista da gangue, surgiu com um celular em punho, aparentemente filmando e fotografando toda a ação.
Sávio tentou se levantar, zonzo pelo vinho e agora ainda mais por conta do baque. O que estava acontecendo? Aquilo não estava parecendo um assalto. Parecia que ele era um alvo proposital.
Os três homens fortes caminharam em sua direção, enquanto o quarto ficava com o celular apontado para não perder nenhuma imagem, e a pancadaria começou. Muitos chutes e muitos socos, entremeados por gritos de dor e pedidos agoniados de Sávio para que parassem. Aquele pedaço da rua era extremamente deserto e, se alguém estivesse escutando tudo, preferiu não se intrometer.
Sávio apanhou tanto que apagou e, mesmo assim, a surra não cessou. E é isso que explica o fato dele não estar podendo narrar esses relatos.


Foi Sávio quem, muitos anos atrás, apresentou para Anna Munhoz aquela que viria a se tornar a música favorita dela. Uma canção dos Beatles com o conveniente nome de... “Anna”!!
“Ah, é sério?”, ele não acreditara na época. “Mas a letra nem tem a ver com você. Só é sua favorita porque tem seu nome, né?”
“É isso mesmo!”, assumira ela sem o menor problema. “Bom, mas a música é bonita e tem um embalo muito legal”.
“Mas é sua favorita de todas as músicas do mundo ou é só sua favorita dos Beatles?”
“De todas do mundo”, respondeu ela, prontamente.
Eles estavam na casa dela nesse dia, no quarto dela. Os pais de Anna estavam em casa fazendo qualquer coisa na sala e tanto ela quanto Sávio estavam plenamente cientes de que, se tentassem qualquer “gracinha” (leia-se “transar”), eles dariam um jeito de descobrir e dar um belo basta naquele namoro. Mal sabiam o Senhor e Senhora Munhoz que, apesar da forte atração que tinham um pelo outro, o casalzinho queria ir com calma. Achavam que apenas quatro meses de namoro ainda era cedo demais e, a bem da verdade, a obsessão de Sávio com coisas nerds atrapalhavam qualquer clima sexual de nascer. Volta e meia ele aparecia com músicas, jogos e séries e conseguia fazer a namorada se apaixonar perdidamente por essas novidades. De tanto que esses dois “se preservavam”, seria mais capaz a mãe de Anna chegar com a filha e lhe dar umas aulas de como se insinuar sexualmente para o namorado, só para poder enquadrar a filha no que ela considerava mais normal do que ficar vendo episódios de Dragon Ball Z incansavelmente.
Anna tinha um micro-system no quarto. Caminhou até ele, pegou uma fita cassete e colocou para tocar. A música dos Beatles já estava no ponto. Começou a se espalhar pelo ambiente, enquanto Anna, em pé, virou-se de costas para Sávio, que jazia sentado sobre a cama dela. Anna, que sempre foi talentosa para a dança, começou a se mover ao som da música, de um jeito gracioso e, de certa forma, um tanto infantil, mas com a sensualidade fácil de se ver numa garota de quinze anos.
Sávio soube ali, naquele momento, que essa seria uma das imagens mais marcantes que ele guardaria dela para sempre, não importa o que viesse a acontecer aos dois. Enquanto John, Paul, Ringo e George os conduziam naquela jornada apaixonada em forma de canção, Sávio contemplava tudo quieto, com o coração sendo mais e mais envolvido pelos encantos de sua jovem paixão. Até que, lentamente, ela se virou para ele e lhe jogou um beijinho, seguido de uma piscadela e finalizando com um sorriso doce, só para fechar os olhos e continuar se mexendo ao som de sua música favorita.


Sávio não sabia dizer o porquê, mas essa música estava tocando lá no fundo de sua mente, enquanto era trazido de volta à consciência. A memória dos Beatles cantando essa melodia tão significativa e de Anna dançando no quarto... Tudo parecia tão vívido. Até que ele abriu os olhos e a primeira coisa que viu foi um teto esbranquiçado, e o mais puro silêncio ao redor. A dor veio depois, muita dor.
Quando tentou virar a cabeça pro lado, a dor foi excruciante. Então, desistiu, fazendo uma careta.
Um vulto se levantou de alguma cadeira por perto, indo em sua direção. Ainda pensando que estava tendo alucinações com o passado, Sávio não compreendeu o que Anna Munhoz estava fazendo ali.
“Nossa, você acordou! Que bom!”, ela demonstrou alívio genuíno.
“O que... O que você... Ai!”, ele balbuciou, sentindo a mandíbula arder e o hálito com gosto meio ferroso. Tipo como se tivesse experimentado bastante sangue.
“Calma, meu bem, calma. Tá tudo bem agora, viu?”
Sávio percebeu que ela estava usando jaleco e um crachá.
“Eu tô no hospital?!”
“Sim”, confirmou ela. “Mas fica calmo, você vai ficar bom, é só não fazer muito esforço, ok?”
Sávio soltou um gemido de dor. As costelas latejavam. Piscando por conta da confusão da ocasião, percebeu que um dos olhos estava mais fechado do que o outro. Como se um deles estivesse consideravelmente inchado. E realmente estava.
“O que houve?”, indagou ele, com dificuldade.
Anna olhou para ele com ternura e um pouco de preocupação.
“Você ficou desacordado por doze horas, Sávio. Encontraram você na rua completamente espancado”.
A menção da palavra “espancado” foi como um gatilho que ele precisava para se lembrar de toda a situação que sofrera na noite passada. Sua reação imediata foi rememorar em cada centímetro do corpo todo o ataque gratuito.


Quando Anna voltou quarenta minutos depois de Sávio ter acordado, as dores dele já estavam mais amenas, graças à medicação que o médico administrara. Quando ela entrou no quarto, carregava uma bandeja com um prato grande, um pequeno e um copo descartável.
“A gente tá no mesmo hospital que você trabalha?”, interessou-se ele, degustando da ironia que se configurava. Dera um jeito de dispensar Anna na noite passada, mas viera parar sob seus cuidados. A famosa justiça poética.
“Aham!”, confirmou ela, pondo a bandeja sobre uma pequena mesa ao lado da cama. “Duas pessoas te encontraram na rua, pegaram seu celular e viram que o último número na memória era o meu, então me ligaram”.
“Caramba! Sério? E por que não ligaram pra polícia?”
“Não faço ideia”, Anna deu de ombros. “Mas você tem que reconhecer que foi sorte terem ligado pra mim, né? Quero dizer, eu trabalho num hospital, sou médica e... bem, já fomos namorados”.
Sávio fez o possível para não dar uma de Denner e acabar expelindo oralmente o primeiro pensamento que lhe veio à cabeça: será que Anna não tinha armado tudo para colocá-lo em suas mãos? Que tipo de maníaca ela seria a ponto de contratar homens para lhe dar uma coça tão brutal? Ele decidiu afastar o pensamento, apesar de parecer tudo muito planejado. E que história é essa de duas pessoas o encontrarem na rua e ligarem para Anna em vez de informar à polícia?
“Eu imagino o que você tá pensando”, ela não se intimidou. “Mas eu definitivamente não seria uma escrota e fazer você ser espancado até quase morrer. Eu sou melhor do que isso. É até chato se isso estiver passando pela sua cabeça, mas eu tava falando sério quando disse que só queria te ver bem. Lembra? Naquele dia em que conversamos você, Milena e eu”.
“Eu me lembro”, atestou ele.
Uma ligeira busca em suas lembranças fez Sávio perceber que Anna jamais mentira para ele. Ou melhor, na única vez em que fizera isso, ainda na adolescência, foi para poupá-lo das agruras que ela estava tendo de lidar. Portanto, concluiu ele, não havia motivo para suspeitar que ela tinha sido a responsável pelo ocorrido da noite anterior.
“E a polícia já tá sabendo que você acordou e em breve vem alguém pra conversar com você”, continuou ela. “Trouxe seu almoço”, ela apontou para a bandeja. “Vamos, vou te ajudar a se sentar pra comer. Enfermeiro!”
“Tá tudo doendo”, queixou-se Sávio. “Sinceramente, não sei como não morri. Teve uma hora que eu apaguei e não vi mais nada”.
Anna se aproximou dele, ajudada pelo enfermeiro que chamara, e os dois cuidadosamente foram auxiliando Sávio a se acomodar na cama, de forma que pudesse ter um mínimo de conforto para almoçar.
“Obrigada, Luís!”, ela agradeceu ao enfermeiro, que saiu. Em seguida, voltou-se ao ex-namorado: “E então, tem alguma ideia do porquê fizeram isso com você? Ou de quem? A polícia disse que não levaram nada, só quebraram o vidro do seu carro e te bateram. Então não foi assalto”.
“Não faço a mínima ideia”, lamentou Sávio. “No ramo que eu trabalho, daria pra acusar um monte de gente. Sei lá, algum psicopata pode não ter gostado nada de saber que sua namorada pagou pra se desapaixonar dele. Coisas assim, sabe...”
Anna abriu a embalagem de plástico com os talheres, parecendo serena. Acompanhando-a com o olhar, Sávio teve outro vislumbre daquele dia em que ela estava dançando lindamente ao som dos Beatles.
“Hum... Faz sentido”, concordou ela.
“Faz sentido e é assustador também”.
“Muito”.
“Droga!”, bufou ele. “Eu tenho que avisar lá na agência...”
“Pode deixar comigo. Assim que você almoçar, eu vou dar uma ligadinha pra lá”.
Sávio tentou movimentar o braço para pegar a colher, mas não conseguiu disfarçar a careta de dor. Vendo isso, Anna não comentou coisa alguma e apenas tomou para si a responsabilidade de alimentá-lo.
Mastigar doía. A comida estava gostosa, mas cada mordida era um sacrifício doloroso. A atividade aconteceu em silêncio. Até que, enquanto ela preparava outra colherada, Sávio resolveu tocar num assunto:
“Você se lembra da sua música favorita?”
“O quê?”
“Sua música favorita”.
Ela riu, tentando entender por quê ele de repente resolveu falar nisso.
“Claro que eu lembro. É a ‘Anna’, dos Beatles. Imagina se eu ia esquecer!”
“Eu não sei porquê, mas... acho que eu me lembrei dela durante meu pequeno coma”.
“Sério?”, ela continuou rindo. “Falando em coma...”, ela se interrompeu de propósito, fazendo sinal pra ele abrir a boca pra engolir a comida.
Enquanto ele mastigava, Anna teve uma ideia.
“Eu tenho essa música no meu celular, sabia? Quer escutar?”
“Nossa!”, pela primeira vez ele sorriu desde que acordara do coma, inundado de nostalgia. “Eu quero sim. Coloca aí!”
Ela deixou o prato quase vazio sobre a mesa e foi até sua bolsa, de onde sacou o celular. Parecia bastante entusiasmada, enquanto se ocupava mexendo no aparelho em busca da música. E, então, deu o play.
Foi só a música começar que Sávio se sentiu transportado para 2001, para aquele quarto de menina adolescente. Ele foi até capaz de ver a penteadeira com perfumes e itens de maquiagem, e diversos pôsteres decorando as paredes, de astros pop a cartazes de filmes. E ela dançando. Ah, sim, uma imagem tão clara como se fosse hoje... Como se fossem aquele casal nos primórdios do romance, desfrutando de uma intimidade velada, que não viria a se consumir, mas que dava um quentinho no coração― e em outras partes também, se é que estou sendo claro.
No entanto, estava realmente acontecendo, não era só uma recordação distante projetada por uma cabeça pulsando de dor. Não era 2001. Era ali, naquele quarto de hospital. Sávio todo avariado e confuso por não ter a menor pista de quem o quisera naquele estado, e Anna dançando com a leveza que sempre lhe foi peculiar. O ruivo de seus cabelos, ainda que já meio desbotados, capturando a ternura no olhar de Sávio. Anna Munhoz, aquela que carregava em si a perturbadora dicotomia de ser apaixonante e desapaixonante.
Sávio soube ali que, provavelmente, ela nunca deixaria de amá-lo, mesmo que encontrasse um cara sensacional futuramente. E, no meio de todo aquele sofrimento físico que estava passando, Sávio compreendeu que o que mais lhe doía era saber que não tinha capacidade para retribuir tanto amor. No auge de suas considerações, pensou: “Por que aqueles filhos da mãe não me mataram logo?”


Aproveitando a distância do quarto do ex-namorado, Anna ligou para ANNA (o que lhe fez querer rir enquanto discava, pelo quanto isso parecia deliciosamente insano), explicou rapidamente o que tinha acontecido, deixando Madonna apreensiva. Segundo a secretária, Denner não estava na agência, saíra com um casal bem-vestido e misterioso.
Após essa ligação, Anna estava nervosa. Mas precisava tirar essa história a limpo, e sua suspeita era muito forte. Então, discou para outro número.
“Você tá em casa? Preciso falar com você, mas tem de ser pessoalmente”, disse ela, tentando soar o mais casual possível, mas mantendo um certo ar de urgência para que a pessoa a levasse a sério.
“Não tô em casa”, disse a pessoa do outro lado da linha, bastante relaxada. “O que aconteceu?”
“Desculpa, mas tem de ser pessoalmente”.
Silêncio. A pessoa provavelmente estava pensando numa alternativa. Uns 15 segundos depois, a pessoa respondeu:
“Eu tô passando uns dias num hotel, vou te passar um endereço. Você se incomoda se não estivermos sozinhos?”
“Humm... É que eu preferia ter uma conversa particular”.
“Ah... Acho que não vai ser possível. Pode até rolar, mas não posso te garantir nada”.
“Então tudo bem, pode ter gente por perto, não tem problema”.
“Uau! Você quer mesmo falar comigo, hein!”
“Sim. Preciso!”
A pessoa passou o endereço e Anna memorizou meticulosamente. Hoje mesmo ia tentar entender o que estava acontecendo.


Era pouco mais de cinco da tarde quando Anna desceu do carro e averiguou o celular, preparando-o para lhe servir de ajuda. O hotel Glory era um edifício opulento de fachada muito chique e repleto de janelas de vidro muito compridas nos apartamentos. Anna presumiu que o prédio tivesse mais de 20 andares. Logo na entrada, havia um jardim com um gramado bonito e bem cuidado na frente, pelo qual ela atravessou ao longo de uma passarela de concreto que se estendia por quase seis metros do portão até a entrada do saguão.
Anunciou-se na recepção, e o atendente só precisou confirmar com o hóspede que a estava aguardando. Liberada para subir, Anna tentou manter a calma. Ela não sabia bem o porquê, mas sua desconfiança beirava o desespero.
O quarto era no 14º andar. O elevador se abriu, ela foi marchando tranquilamente até o quarto 1404. Anna tomou o último fôlego, ensaiando mentalmente como levaria a conversa. Por que fora até ali? Valia mesmo a pena? Dane-se, já estava ali mesmo...
Para sua não tão grande surpresa, quem lhe recebeu foi uma das namoradas de Ivan. Era uma morena de cabelos ondulados e olhos pequenos, de nome Cyntia.
“Oi, tudo bem?”, cumprimentou Anna. “O Ivan está?”
“Só um momentinho”, Cyntia virou-se para uma direção que Anna não podia visualizar muito bem da porta. Pela cara não muito contente de Cyntia, sua visita estava atrapalhando algo.
Ivan aproximou-se delas, vestindo apenas um robe de seda verde-escuro com detalhes dourados e com uma taça de champanhe numa das mãos.
“Boa tarde, Anna!”, cumprimentou ele, estendendo a mão desocupada ao redor, indicando que ela poderia entrar.
Anna começava a se arrepender, graças ao olhar de desprezo de Cyntia, mas foi entrando. Decidiu que não ia se preocupar com esses detalhes.
“Pode ficar à vontade, sente-se aí no sofá. Quer beber alguma coisa? Esse champanhe é delicioso!”, disse Ivan.
“Não quero nada, obrigada. Eu ficaria mais à vontade se você estivesse vestido com... roupas”, confessou Anna.
Ivan riu, assentindo.
“É mesmo! Mas é que resolvi me dar uns dias de folga do trabalho pra ficar com as meninas. Por isso estou me dando ao luxo de ficar no Glory”.
Anna observou ao redor, detendo o olhar em Cyntia, que estava sentada à bancada do bar do apartamento, olhando qualquer coisa em seu smartphone.
“Parece que você não poupou mesmo, hein!”, admirou-se Anna, que preferiu ficar caminhando pelo cômodo. Estava nervosa demais para se sentar.
“Quem tá aí, amor?”, surgiu Valéria, vindo do exterior do apartamento. Estava com os cabelos molhados e uma toalha pendurada no ombro, então Anna deduziu que ela tivesse acabado de aproveitar a piscina do hotel.
Anna, simpática, fez um aceno com os dedos. Valéria apenas balançou a cabeça lentamente, devolvendo a saudação, porém deixando bem claro que sua presença não era bem-vinda.
“Falta a Ju”, acrescentou Ivan. “Ela deu uma saidinha, mas deve estar voltando. Mas enfim, Srta. Anna Munhoz, o que lhe traz aqui?”
“Elas precisam mesmo estar aqui?”
“Desculpa, Anna, mas eu tenho tido pouco tempo pra elas, então cada minuto é valioso. Na verdade, você que tá com sorte por elas terem concordado em ceder um pouco desse tempo pra você”.
Anna resistiu à tentação de revirar os olhos, passando por cima da enorme sensação de nojo que sentia. Outrora, ela e Ivan eram muito amigos. Mas ela conseguia encarar com surpresa o tanto que ele era sujo, então já não fazia tanta questão dessa amizade.
“Muito bem”, ela respirou fundo. “Em nome da amizade que nós sempre tivemos, não mente pra mim, Ivan. Foi você quem mandou espancar o Sávio?”
Se foi fingimento ou não, ninguém sabe, mas ele tossiu ao escutar isso. Provavelmente engasgando-se com o champanhe, e prontamente acudido por Valéria.
“Que é isso, garota? Quem você pensa que é pra vir aqui e falar isso pro meu namorado? Tá maluca?”, doeu-se Valéria, deixando a toalha cair no chão.
Mas Ivan ergueu a mão, sinalizando que estava tudo bem e que ele tinha tudo sob controle. Cyntia continuou mexendo em seu celular, mas agora prestava mais atenção à conversa na sala do apartamento, que, a propósito, era bastante espaçosa.
“Anna!”, exclamou Ivan, surpreso (ou fingindo surpresa, quem sabe). “Como é que você pode me acusar de uma coisa dessas? Espancaram o Sávio? Meu Deus, quando foi isso? Como ele está?”
“Eu não tô te acusando, Ivan”, defendeu-se Anna. “Eu estou perguntando se foi você. Tanto que eu pedi pra você me dizer se fez isso, em nome da nossa amizade”.
“Negão, é sério que essa mulher tá dizendo que é sua amiga?”, Valéria se meteu novamente; sua ira em contínuo crescimento.
“Valéria, por favor!”, Ivan pediu para ela se calar, todo gentil. Então, voltou a atenção para Anna: “Olha, eu tô realmente confuso aqui. Como é que você chega e me pergunta um absurdo desses? Anna, sinceramente, se você diz que nós somos amigos, acho que tem alguma coisa errada nessa amizade aí”.
Mas Anna não se deixava convencer.
“Por que eu faria isso?”
“Porque ele ajudou a Milena a expor você. Ele descobriu sobre o seu harém particular e contou tudo pra Milena, que depois reuniu todas as suas namoradas pra acabar com a sua festinha. Conhecendo você, eu sei que ficaria muito puto. Poderia até não demonstrar, mas é do seu feitio preparar uma vingancinha em silêncio”.
Valéria arregalou os olhos e abriu a boca em estarrecimento.
“Que audácia!”, esbravejou.
Cyntia continuava acompanhando tudo calada, mas dessa vez sem se distrair com o telefone.
“Eu poderia chamar a polícia agora, Anna”, insinuou Ivan, cruzando as pernas e bebendo de seu champanhe. “Poderia te acusar de calúnia e difamação, já que você se deu ao trabalho de vir até aqui e atrapalhar meu momento com as minhas namoradas, e não tem prova nenhuma do que tá falando. Mas, como você mesma disse, em nome da nossa amizade, vou deixar você ir embora numa boa”.
“Negão!?”, Valéria quis protestar, mas foi censurada pelo olhar do namorado.
“Ele foi quase morto, Ivan”, persistiu Anna. “Bateram tanto nele, praticamente quebraram as pernas e as costelas dele. Foi muito cruel. Olha, se eu descobrir que você teve algum envolvimento nisso, eu sou capaz de fazer uma loucura”.
“Ivan, se você não chamar a polícia, eu vou”, ameaçou Valéria, apanhando seu celular numa cômoda por perto. “Essa mulherzinha aí passou dos limites. Além de te acusar de mandar bater em alguém, fica fazendo ameaça. Ah, mas eu não posso deixar isso barato”.
Anna viu em Valéria uma fúria se desenhando como nunca viu em ninguém. Conhecia a péssima fama dela de psicótica, então resolveu adotar uma postura diferente.
“Tudo bem, desculpa. Não precisa ligar pra ninguém”, ela tentou anuviar a situação, não podia deixar que tudo se arruinasse agora. “Mas, por favor, Ivan, entende o meu lado. Eu tô desesperada”.
Valéria acatou, mas ficou com o celular em mãos.
“Por quê?”, Ivan perguntou para Anna. “Esse cara não tá nem aí pra você, Anna. Nós já tentamos, não foi? Eu fiz a minha parte e consegui que você reconquistasse ele, mas você perdeu o sujeito. Poxa, será que vale a pena ficar se importando tanto assim com uma pessoa que não quer saber de você?”
Anna ajeitou a bolsa no ombro com cautela, onde seu celular estava gravando toda a conversa. Sua esperança era que arrancasse algo que confirmasse que Ivan era o culpado de tudo. Precisava atiçá-lo de alguma maneira, mas não contava com um desagradável revés chamado Valéria.
“Quer saber qual é o problema, Anna?”, instigou Ivan, enchendo a taça com mais champanhe.
Ela ficou esperando ele continuar.
“Você é o problema!”, ele afirmou, categórico e afiado, o que pareceu agradar muito Valéria, que deixou escapar um sorrisinho cínico.
Anna sentiu o impacto, mas não quis deixar transparecer.
“Você já era, Anna”, prosseguiu Ivan, sua voz num tom mais grave e rancoroso. “Em vez de você sair de cena decentemente, fica aí dando uma de boa-moça defensora dos pobres idiotas espancados em vias escuras e sem movimento tarde da noite”.
“Eu não disse onde e nem quando ele foi espancado”, retrucou ela, sentindo crescer em seu peito o ódio pela conclusão dos fatos. Sim, só podia ter sido Ivan o culpado. Agora não restava mais dúvida. Ele se entregara. Mas algo lhe dizia que isso não foi uma falha, ele o fizera por estar cansado de negar, talvez até tivesse apenas brincado com a cara dela esse tempo todo ao bancar o inocente.
“Se fui eu ou não, Anna, não era pra fazer diferença alguma na sua vida. Você deveria achar merecido que aquele enxerido tenha levado uma boa surra, isso sim. Afinal, ele te usou como bem quis e te largou assim que voltou às boas com a amiguinha dele. Você achando que era a estrela principal do show, quando sempre foi só a coadjuvante. Você nunca passou de uma mera coadjuvante, Anninha!”
“Foi você”, sussurrou ela, porém audível o suficiente para que Ivan escutasse e ficasse registrado na gravação do celular.
“Fui eu sim!”, confirmou Ivan, saboreando cada palavra.
Nem Valéria nem Cyntia pareceram se abalar. A primeira não via problema algum nisso; a segunda estava começando a ficar com medo, pois era pra estar curtindo um momento com o homem que ama, mas esse homem a estava deixando amedrontada.
“Sabe, Anna”, Ivan passou a usar um tom mais zombeteiro, “cada bombadão que eu paguei pra dar porrada no Sávio pediu uma merrequinha de nada pra fazer o serviço. Pra você ver como é barato quebrar a cara daquele intrometido babaca. E sabe o que mais? Eu tenho o vídeo mostrando tudinho. Tá a fim de ver?”
Anna não conseguiu mais controlar as lágrimas. Já estava querendo chorar faz tempo. Ivan atingira seu âmago. Para disfarçar, ela começou a se afastar e andar até a janela comprida de vidro, espiando o mundo lá fora e deixando-se tocar pelos fracos raios de sol que incidiam sobre a vidraça. Uma coisa era suspeitar que ele tivesse sido a mente maligna por trás de tudo; outra, muito diferente e muito mais revoltante, era lidar com a confirmação disso.
“Eu pensei que você fosse mais forte e mais inteligente, Anna”, Ivan continuou provocando.
De repente, uma chamada no celular de Anna fez ativar sua música favorita, a dos Beatles. Ela era o toque de seu telefone. A música tocava bem baixinha, só Anna podia escutá-la. Atordoada, Anna tentou enfiar a mão na bolsa para recusar a chamada, com receio de que isso atrapalhasse o registro em áudio que vinha fazendo.
“A vadia tá gravando a conversa”, Valéria suspeitou e cochichou para si mesma, atingindo o auge de sua impaciência e indignação com a presença de Anna, e rumou em passos largos até ela.
Ivan e Cyntia mal tiveram tempo de processar o que Valéria dissera.
Anna não reconheceu o número que estava ligando para ela, e quando finalmente conseguiu recusar a chamada e fazer cessar a música dos Beatles, Valéria já estava a centímetros dela, fuzilando-a com um olhar diabólico e com as duas mãos prontas para empurrá-la contra a janela.
“Valéria!”, gritou Cyntia, em vão.
Mal tendo tempo para se desviar, a última coisa que Anna sentiu foram as mãos violentas de Valéria, que empregou toda a força do próprio corpo contra ela. Os olhos endiabrados da namorada mais perigosa de Ivan também foram a última imagem que Anna registrou, porque seu raciocínio se desligou assim que percebeu que seu corpo atravessava a vidraça prédio afora e despencava, rasgando o ar suave do fim de tarde, atirado do 14º andar, indo encontrar a morte inevitável sobre o gramado bem-cuidado do hotel.

Enquanto isso, Ivan e Valéria partiam em fuga do apartamento 1404, deixando para trás uma Cyntia aos berros e completamente tomada pelo pânico. 

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