(Milena)
Por muito tempo na minha vida,
desde que eu “aceitei” a morte da minha mãe, decidi seguir a vida dignamente e
focada nos meus objetivos. Minha mãe sempre foi a maior e melhor amiga que eu
poderia querer, e apenas no início da adolescência eu dei uma afastada dela,
mas nada grave. Eu tava entrando naquela fase em que todo adolescente resolver
virar xarope e não precisar da mãe por perto, mas no fundo era sempre ela a
primeira a quem eu recorria. A decisão de continuar vivendo sempre tentando
esquecer sua morte veio do tanto que esse acontecimento impactou na minha vida.
Desde então, eu sei que mudei demais, a ponto de me tornar alguém cheia de
reservas ao lidar com pessoas e criando cascas ao meu redor. Vesti uma
armadura. Porém, como um belo plano fadado a falhar quando alguém descobrisse
um ponto fraco, minha dor, outrora silenciosa, voltou com força total nos
últimos tempos.
Mamãe era professora de Física,
mas nos últimos dois anos de sua vida trocou as salas de aula por um cargo bem
maneiro num centro de pesquisas científicas, onde auxiliava outros cientistas
em coisas com as quais jamais fui familiarizada.
Perdê-la aos 13 anos revirou todo
o meu universo. E justo no período em que eu mais precisei tê-la por perto.
Para me dar aqueles toques de mãe, sabe. Sempre tivemos uma relação maravilhosa
e eu tenho a mais plena certeza de que, se ela ainda estivesse viva, minha vida
seria consideravelmente diferente do que é hoje.
Ao longo dos anos encontrei
formas de mantê-la comigo, mas de modos que me trouxessem alegria, paz e
confiança― ou seja, tudo que ela era capaz de me garantir. O diário que ela me
dera poucos meses antes de falecer é um exemplo. Dei a ele o nome da minha mãe.
Ou melhor, o apelido. Fabi. As lágrimas querem aparecer só pelo simples ato de
recordar meu pai abraçando-a e beijando-a, chamando-a com a voz doce por esse
apelido. Foi por vê-lo chamando assim que os amigos e colegas de trabalho dela
passaram a tratá-la por Fabi também.
Outro exemplo, talvez o mais caro
a mim nos últimos 17 anos, é o Sávio. O bom companheiro de viagem, o amigo mais
incrível que eu poderia sonhar em ter. Percebe a semelhança? Uso para ele a
mesma designação que uso para minha mãe, apesar das óbvias diferenças entre os
dois. No entanto, foi no Sávio que encontrei aquele refúgio que eu achei que
houvesse perdido para sempre. Mesmo eu tendo um pai amoroso, nunca foi a mesma
coisa. Meu pai se casou de novo, mudou de cidade, teve outras filhas... E o
Sávio sempre esteve aqui. É como se fosse uma espécie de “reencarnação emocional”.
Por conta de tudo isso, sempre
procurei manter uma aparência de mais forte do que eu realmente sou. Quero
dizer, eu sou tudo isso que as pessoas veem, de fato, porém eu me esforço para
imprimir uma imagem um pouco mais aprimorada. Como se nunca tivesse havido a
dor da ausência. Como se nunca tivesse havido a trágica sensação do luto e da
mais avassaladora saudade. Ah, quanta saudade!
Sempre me orgulhei de ter as
coisas sob controle. Essa foi uma das coisas que veio com o luto, com os
inúmeros aprendizados que eu precisei lidar sem uma mãe por perto. Mas... eu
estava preparada pro caso de perder esse controle? Os últimos acontecimentos na
minha vida deixam bem claro que não.
Olívia e Pedro se sentam nas
poltronas que eu aponto para eles.
“Vocês querem uma água? É só o que tem”, ofereço, comportando-me de
um jeito ríspido.
Nem a pau que vou oferecer
sorvete ou outra coisa gostosa para esses dois. A pessoa precisa conquistar minha
confiança pra que eu lhe ofereça um sorvete. O seguro morreu de velho, e eu não
pretendo vacilar com gente que eu não conheço.
“Não, não, a gente tá bem”, recusa Olívia. “Mas, se puder reconsiderar, achamos que dez minutos não vai bastar pra
nossa conversa”.
“Vocês têm dez minutos!”, replico, sem a menor cogitação de ceder.
Para irritá-los, pego o celular e
inicio o cronômetro.
Juliana volta da varanda, onde
havia estado pensativa após Sávio e Denner saírem daqui atrás de Ivan. Ela faz
um sinal de “quem são esses?” e, antes que eu responda qualquer coisa, Olívia
toma a palavra, como se tivesse adivinhado a dúvida da minha prima. Bom, e a
minha também.
“Bem, Milena, como já disse antes, eu sou Olívia Dantas. Meu colega
Pedro Bispo e eu trabalhamos em missões secretas para departamentos governamentais,
empresas e outros clientes privados. Fazemos desde investigações até busca e
apreensão de objetos de interesse dos nossos clientes”.
Ela para e eu fico esperando que
continue. Até agora não tô impressionada.
“Vou tomar um remédio e me deitar. Tô com dor de cabeça”, retira-se
Juliana, vendo que não tem nada para ela aqui.
“Para deixar tudo às claras, saiba que eu também sou assassina
profissional”, prossegue Olívia. Ok, isso sim é mais impressionante. E nada
reconfortante, dadas as circunstâncias atuais. “Estamos aqui por conta de uma dessas nossas variadas funções. Mas não
é a de matar”.
Ela se justifica com um sorriso
meio sem-jeito, como se fosse uma pena que a melhor habilidade de seu currículo
não pudesse ser aproveitada.
Pedro dá um pigarro, indicando
que vai dizer algo.
“Se serve pra te dar uma tranquilizada, eu não sou assassino
profissional. Apesar de que as pessoas se intimidam um pouco com a minha
aparência austera. Mas isso não vem ao caso. A questão é que, no momento, fomos
contratados pela sua mãe”.
Resolvo me sentar para mastigar pacientemente o que eles vão dizer.
Passo os olhos rapidamente por dois vasos em forma de sereia que há na estante
da sala. Se eu me emputecer com esses esquisitos, já sei ao que me agarrar.
Hoje eu não me sinto nem um pouco intimidada em rachar a cabeça de quem vier
tirar onda com a minha cara a respeito de um assunto tão delicado.
“Você está bem, Milena?”, observa Pedro. “Não está fazendo nenhum comentário”.
“Falem tudo o que tiverem pra
falar. Comentários depois”.
“E aí? Direto ao ponto?”, ele se vira para a loira.
Ela assente, mantendo um sorriso plácido.
“Viemos de uma realidade paralela”, diz Pedro. “Um mundo, por assim dizer, com as mesmas características básicas deste
em que estamos agora. Só que com algumas diferenças. Algumas ínfimas, outras
totalmente discrepantes”.
Confesso que estava cogitando que
esses dois tivessem sido enviados por Ivan para me azucrinar, mas agora começo
a considerar a possibilidade de eles terem sido enviados pela Rita Lina. Só que
não faz sentido. A Rita é doidinha, mas não teria a crueldade de aprontar uma
brincadeira assim, embora tenha uma relação exuberante com o contexto das
coisas que ela fala.
“Já ouviu falar na teoria dos universos paralelos, Milena? Ou dos
multiversos?”, incita Olívia.
“Por alto”, digo, balançando a mão com certa indiferença.
“O que você sabe?”, ela insiste em me fazer interagir.
“Ahn... Sei lá. Já ouvi falar alguma coisa, talvez em filmes, séries...
Mas eu sou péssima pra explicar esse tipo de maluquice, então aproveitem pra
destrinchar tudo porque já se passaram três minutos”.
“Sabe, Milena”, é Pedro quem vai em frente, “já parou pra pensar como estaria sua vida se você não tivesse feito
determinadas escolhas? Não estou falando só de escolher um pastel ao invés de
uma coxinha numa padaria ou de um filme em vez de outro na Netflix, embora qualquer uma dessas coisas poderia
tranquilamente exercer grande influência no futuro de alguém. Mas pense bem: se
você tivesse optado por outra carreira, por outro curso universitário, será que
você estaria vivendo na mesma cidade? Será que uma escolha crucial não teria
determinado um rumo completamente diferente? Você poderia estar casada agora e
até mesmo ser mãe”.
“Não, obrigada”, a grosseria me escapa, ante à minha animação zero
em cogitar a maternidade ou o casamento. Mas mesmo assim, estou atenta a cada
palavra desse arremedo de roteiro de filme sci-fi.
“Todos nós temos alguns ‘e ses’ nas nossas vidas”, segue Pedro. “São aquelas ponderações que nos vêm à mente
quando analisamos nossa vida do ponto de vista em que ela está. Por exemplo: ‘e
se eu tivesse ficado uma hora a mais naquele lugar, teria encontrado o grande
amor da minha vida?’ ou ‘e se eu não tivesse perdido aquele ônibus que sofreu
aquele terrível acidente, será que eu teria sobrevivido?’. Entende o que eu
quero dizer?”
“Vocês disseram que tinham notícias da minha mãe”, agora a
grosseria é de propósito, porque esse lenga-lenga tá enchendo o saco. “Olha aqui, não conheço nenhum de vocês, e
tá batendo um arrependimento danado por ter deixado vocês entrarem, só pra
começar um papo bizarro de ‘e se isso, e se aquilo’. Estão pensando que eu sou
alguma trouxa? O que é que vocês querem? Por que não desembucham logo? Eu vi o
jeito que o Denner ficou quando viu vocês. E foi muito diferente daquele dia lá
na agência. Naquele dia, ele tava mais ameno, mas hoje ele tava muito irritado.
Alguma coisa vocês aprontaram. Então, se vocês têm algo pra me dizer, parem de
mimimi e falem logo, droga!”
Pedro demonstra decepção por ter
sido interrompido na sua aulinha de
o-que-quer-que-ele-esteja-tentando-explicar, e Olívia apenas testemunha minha
reação.
“A minha mãe está morta!”, esbravejo. “Poxa, quem são vocês, hein? Seja lá de que inferno vieram, não é legal
aparecer aleatoriamente na casa das pessoas e tocar num assunto tão sério e tão
delicado. Isso não se faz. Eu vi a minha mãe no caixão. Eu vi quando fecharam a
tampa do caixão. Eu vi as marcas de queimadura no rosto, no pescoço e nos
braços. Eu vi quando enterraram o caixão. Eu vi!! Droga!!”
Por mais que essas lembranças me
tragam dores extremas, não estou sentindo vontade de chorar.
“Não existe a menor chance de minha mãe estar viva. Eu sou uma idiota
iludida que na verdade nunca aprendeu a aceitar isso e seguir em frente. Por
isso que eu deixei vocês entrarem”.
Que show é esse que eu tô dando? Pai
amado do céu!! Desnecessária toda essa exposição diante de pessoas com quem não
tenho um pingo de intimidade. Eu costumo ser mais comedida, mas quando os
nervos estão por um triz, não tem hora e nem lugar pra explodir, mesmo que isso
me custe deixar meus sentimentos à mostra para estranhos.
“Tem razão, Milena”, pronuncia-se Olívia. “A sua mãe está morta mesmo. Fabiana Kerber faleceu numa explosão num
centro de pesquisas científicas em Fevereiro de 1999. Nós não duvidamos disso.
Também não duvidamos de que você viu as marcas de queimadura, de que viu quando
fecharam o caixão e nem de quando o cobriram de terra logo depois”.
“Então o que é que vocês querem?”, provoco, a raiva tomando forma
em meu olhar.
“Você olhou bem pra foto que te mostramos lá no portão, certo?”,
pergunta ela.
“E daí? Montagem! Dá pra fazer qualquer coisa num photoshop da vida”.
“E por que a gente faria isso?”
“Sei lá”.
“O que faz de você tão especial pra que nós deixemos nossa missão
original de lado por enquanto, só pra vir até a sua casa e te dizer que temos
notícias da sua mãe? Por que a gente faria isso?”
“Missão original?!”
“Nós não viemos aqui atrás de você, Milena”, responde Pedro. “Nossa vinda do lado de lá pra cá era tão-somente
uma missão de resgate. A gente só veio aqui pra levar a Rita Lina de volta pros
pais dela”.
Esse negócio tá cada vez mais
confuso. Como é que a Rita Lina se encaixa nessa história? Caramba! Isso
explica o Denner tão zangado ante à presença deles. Ok, não explica exatamente.
Mas me dá uma certa noção do motivo. Só que deixa o troço ainda mais
emaranhado.
“Naquele dia que te vimos na agência, ficamos surpresos”, relata
Olívia. “Eu tinha uma ideia completamente
diferente da sua existência, mas ali, quando vi você, foi como presenciar um
milagre. E olha que eu tenho o coração muito duro pra esse tipo de coisa”.
“É verdade, o coração dela é bem duro mesmo. Mas é pra qualquer tipo de
coisa, não só pra milagres”, ressalta Pedro, parecendo realizado em poder
dar essa alfinetada.
“Eu não tô entendendo nada”, resmungo.
“É simples”, diz Olívia. “Sua
mãe morreu, isso é um fato. Só que ela morreu aqui. Nesta realidade. Em outra
realidade, ela está viva. Ou melhor, na nossa realidade, de onde Pedro e eu
viemos, ela está bem viva. E é uma mulher saudável, bem-sucedida, casada com o
seu pai e nunca esteve naquela explosão no centro de pesquisas científicas.
Naquele dia, a explosão aconteceu, mas sua mãe não estava lá”.
A menção ao fato de que minha mãe
está viva em algum lugar e ainda por cima casada com meu pai me toca de alguma
forma. É como se eu estivesse ouvindo a descrição de um desses sonhos bons que
nos fazem acordar patetas e passar o dia todo aos suspiros.
Encaro-os com toda a
incredulidade, tentando detectar algum fio de zombaria em seus rostos. Nada.
Olívia prossegue:
“Fabiana Kerber nos contratou para vir atrás de Rita Lina porque é
amiga próxima dos pais da moça, e a Rita desapareceu há vários anos
misteriosamente. Após algumas investigações, foi proposta a hipótese de que ela
poderia ter vindo parar nesta realidade, de alguma maneira. Talvez tenha
passado por um portal sem querer, não sabemos. E quando descobrimos que ela
realmente estava aqui, tentamos nos aproximar do Denner para que ele
convencesse a namorada a voltar conosco. Mas no meio do caminho as coisas não
saíram como esperado. Então, quando voltamos pro hotel em que estamos
hospedados, contei para sua mãe que havia visto você no mesmo dia do nosso
fracasso em convencer a Rita a nos seguir. Sua mãe ficou muito esperançosa por
saber disso e, para compensar o fato de que a missão de resgatar a Rita estava
indo mal, propusemos um ‘presente’ para nossa chefe: um reencontro com a
filha”.
Levanto da minha poltrona, cruzo
os braços e franzo as sobrancelhas. Estou ficando sem ar. É informação demais
para processar, num amontoado de coisas sem nexo: Rita Lina veio de outra
realidade? Portal? Reencontro?
“Como é possível que a minha mãe esteja morta aqui nesta realidade e em
outra esteja viva? Sendo assim, essa mulher pra quem vocês trabalham não é
minha mãe. A minha morreu!”
“Veja bem”, fala Pedro, “infelizmente
não somos especialistas no assunto e confesso que essa coisa de múltiplos
universos é complexa e confusa, mas vou tentar colocar de outra forma pra você.
Tem uma folha de papel?”
“Vocês só tem três minutos”, ignoro-o, espiando o cronômetro e
ficando cada vez mais cheia dessa conversa.
“Droga!”, ele pragueja, estalando os dedos como quem pensa em algum
jeito rápido de resolver a situação. “Bom,
vou tentar resumir. Imagine uma folha de papel: ela tem dois lados, certo?
Vamos dizer que cada lado representaria uma dimensão. É mais ou menos assim que
trabalha o conceito de universos paralelos, eles não coexistem na mesma
dimensão. No entanto, ainda usando a analogia da folha de papel, o que há de um
lado também há de outro, ou seja, existe uma versão de mim, de você e de seus
amigos em cada um desses lados, tá entendendo? Com os mesmos nomes, mesmas
características, enfim. Porém, algumas atitudes que tomamos em um universo não
são as mesmas que tomamos em outro, causando assim essas disparidades que
estamos expondo pra você. Neste universo, você é uma psicóloga que em algum momento
da vida abriu uma agência de desapaixonamento com seu amigo. Mas, em outra
realidade, você, a mesma Milena, rejeitou essa ideia e preferiu desenvolver um
trabalho um pouco mais tradicional. Então, voltamos ao exemplo do ‘e se’. Todo
‘e se’ é uma hipótese que se desenha na mente de uma pessoa, uma opção que
poderia ter acontecido e a realidade paralela nada mais é do que essas
hipóteses tomando forma, se concretizando. Em todos os universos em que uma
pessoa existe, ela se depara com duas ou mais opções a respeito de uma
determinada decisão. Em um universo, ela escolhe a opção A, em outro ela escolhe
a opção B, e assim vai. Mas vai haver decisões que serão as mesmas em todos os
universos”.
“Então, segundo isso que você tá me falando, não existem só dois
universos. Existem mais".
“Sim!”, ele sorri feito um professor contente com uma aluna que
está acompanhando o raciocínio. “E
continuando a usar a tal folha de papel como exemplo, se você dobrá-la ao meio,
agora você tem quatro dimensões. E se dobrá-la de novo, terá oito! Não é o
máximo? Cada novo desdobramento dramático da nossa vida dá origem a uma nova
realidade paralela. Bom, não que isso seja uma regra, pois como eu disse, não
sou nenhum especialista. Mas agora você já tem uma noção melhor”.
“Minha cabeça tá toda bugada”, volto a me sentar, me afundando na
poltrona, abraçando uma almofada.
Então, me dou conta de um
detalhe.
“Se existe uma Milena aqui e em
vários outros universos, por que vocês estão querendo promover um reencontro
entre mim e a minha mãe? Tipo, por que eu especificamente? Qual é o problema
das ‘outras Milenas’?”, indago, com ar de brincadeira.
“Aí é que está, Milena”, Olívia suspira. “No dia da explosão no centro de pesquisas, lá em 1999, você saiu da
escola e foi pro trabalho da sua mãe, pra fazer uma surpresa pra ela, não foi?”
“É... Sim, foi isso que aconteceu. Lá na sua realidade aconteceu assim
também?”
“De certo modo”, afirma ela, seus olhos azuis penetrando minha alma
com ímpeto, ao mesmo tempo em que suas palavras tentam ser cuidadosas. “Porém, Milena, alguns detalhes mudaram o
destino por inteiro. Na nossa realidade, sua mãe saiu mais cedo do centro de
pesquisas. Mas ela não sabia que você estava indo até lá pra encontrá-la. E
você foi”.
“Ai, meu Deus...”, murmuro, antevendo o horror. Já sei o que Olívia
vai dizer.
“Na nossa realidade, Milena”, segue ela, dando um tom adocicado à
voz, talvez para amenizar o impacto do que vem a seguir, “quem morreu naquela explosão foi você”.
E então me sinto coberta
repentinamente por um véu de puras trevas. Mas ainda não faz o menor sentido.
Por que estou me importando com essas informações? Será que eu estou comprando
toda essa história absurda?
“Quer saber por que a Olívia disse que te ver foi como um milagre?”,
instiga Pedro, tirando o chapéu e revelando um careca lustrosa. “Nós já visitamos todas as outras realidades
possíveis, já investigamos tudo. Esta é a única realidade em que você está
viva, Milena. É por isso que tanto nós quanto sua mãe ficamos surpresos ao saber
disso. É por essa razão que nós queremos te dar a chance de falar com ela de novo.
Porque sabemos da sua solidão. Nós sabemos da sua dor. Porque a sua dor é a
mesma da Fabi”.
“Agora”, levanta-se Olívia, pegando a bolsa na mesa de centro e
tirando de dentro uma espécie de aparelhinho que não reconheço, “se pudermos provar nossas palavras,
gostaríamos de usar sua TV”.
(Sávio)
Desde que saímos da casa da Mile,
Denner e eu não estamos trocando praticamente qualquer palavra. O silêncio
impera no carro. Minha tensão em ir atrás do Ivan, esse maldito assassino,
deixa o meu corpo em total estado de apreensão. Parece que a qualquer momento
vou entrar em combustão espontânea.
“Será que o Sávio quer que eu coloque uma música? Sei lá, músicas são
uma boa pedida até pra momentos tensos”, diz Denner, de um jeito meio estranho,
convenhamos.
“Isso foi um pensamento oral?”
“Ah!”, surpreende-se ele. “Pois
é, desculpa, eu...”
“Não, tá tudo bem”, tento manter um tom de voz controlado. “Pelo menos você pensa em coisas legais. Se
os meus pensamentos vazassem, o ambiente ia ficar contaminado com essa obsessão
de matar o Ivan. Eu nunca quis matar tanto uma pessoa na minha vida!”
“É”, ele concorda, sem muita convicção. “Mas eu não sou muito feliz com essa coisa de falar e achar que era só
um pensamento na minha mente. Me sinto meio exposto, sabe... Bom, mas e aí?
Posso colocar uma musiquinha?”
“Coloca aí”.
“Tô sem pendrive”, lamenta ele. “Bora
ver se tem alguma coisa bacana no rádio”.
O sol já vai se pondo quando
Denner encontra alguma estação tocando “New Born”, do Muse. Grande pedida! Uma
melodia que começa ponderada, delicada, mas que depois explode em velocidade e
certa agressividade. É como minha alma se sente rumo ao acerto de contas com
aquele patife; controlada no momento, mas cheia de ira a se revelar. Eu vou te matar, Ivan!
“Não quero parecer um chato aqui”, diz Denner, “mas você não devia ter ligado pra polícia e compartilhado esse
endereço que conseguiu? Você tá com o braço ruim, e eu vou ser bem sincero:
nunca fui um cara de me meter em briga, então existe uma grande possibilidade
de eu não ser útil nisso tudo. Já a polícia...”
“Eu vou chamar a polícia sim, mas só quando eu estiver quase entrando
na casa. Quero ter tempo de dar uma boa surra nele antes”.
“Sávio, como você pode estar tão confiante? Que parte você não entendeu
de ‘seu braço tá ruim’?”, protesta Denner. “O Ivan tem vantagem sobre você, chefe. E eu já tô dizendo que eu sou
péssimo em bater em alguém, portanto, você tem que elaborar um plano melhor”.
“Você não precisa se preocupar com isso, Denner”, retruco,
começando a perder a paciência com ele. “Não
precisa ser bom de briga. Se quiser, pode só tacar alguma coisa dura e pesada
na cabeça dele. Ou nas costelas, sei lá. Não precisa ir pro mano a mano. Deixa
que eu me viro com isso. Eu sei que o meu braço tá uma bosta, mas não tem nada
que me faça desistir desse confronto. E você tem que parar de ser cagão, mano!
Se estivessem fazendo algum mal pra Rita Lina, você ia ficar parado só porque
não sabe brigar?”
Denner assente, finalmente se
rendendo aos meus argumentos.
“É, olhando por esse lado... Eu realmente daria um jeito de revidar”.
“Essa é a palavra, Denner. Revidar. Agora você tá entendendo o
propósito da coisa toda. Esse desgraçado acabou com a vida da Milena e matou a
Anna. É meu dever ir atrás dele e revidar. É uma questão de honra. E mesmo
fazendo isso, ainda é pouco. Esse cara merece ser apagado do planeta”.
Denner reduz a velocidade.
“De acordo com o endereço, a casa fica nesse quarteirão”, anuncia
ele.
Depois de quase uma hora nessa
jornada, enfim encontramos o covil do satanás.
Estacionamos alguns metros antes
da casa de fato. A vizinhança é muito quieta e a rua é pouquíssimo movimentada,
mesmo sendo um horário típico em que as pessoas estão retornando do trabalho.
Só agora me dou conta que eu deveria ter trazido uma arma. Em seguida, me dou
conta de que eu sequer tenho uma em casa. Acho que estou levando essa sede de
vingança além dos limites.
Avançamos pela rua em passos
curtos, silenciosos, sem chamar a menor atenção. Já são pouco mais de seis da
tarde. Rajadas de vento frio se espalham, fazendo as folhas das árvores dançarem,
ao mesmo tempo em que dão o tom necessário para a ocasião. A sombra que se
assenta conforme vai anoitecendo prepara o cenário ideal.
Vejo uma coisa no chão e detenho
o passo, abruptamente.
“Sávio?”, Denner também para.
Agacho-me e recolho uma pedra
pouco maior do que a extensão da minha mão totalmente aberta. Sorrio, mesmo meu
coração me condenando pela ideia terrível que se passa na minha cabeça.
Denner me olha, cobrando uma
explicação, mas logo seu semblante muda ao perceber o que eu tenho em mente.
“Você já pintou uma pedra, Denner?”, pergunto, com um sorriso que
beira a psicopatia. “Essa aqui eu vou
pintar de vermelho. Sabe de onde eu vou tirar esse vermelho, né?”
“Por favor, Sávio!”, ele estende a mão para que eu lhe entregue a
pedra. “Você já tá saindo muito de
controle. Me dá isso!”
“Vou arrebentar a cabeça daquele escroto com isso aqui, Denner. E a
pedra vai ficar vermelhinha de sangue”, levanto-me e guardo a pedra debaixo
da camisa, prendendo-a à calça, ignorando totalmente a tentativa de Denner em
me dissuadir.
“Droga!”, irrita-se ele. “Bom,
parece que eu deveria encontrar uma pedra pra mim também, né?”
Dá até vontade de rir, mas a
raiva é tanta que qualquer outro sentimento é mero coadjuvante. Então,
determinado, sigo em frente. Denner não vê outra opção a não ser continuar, sem
pedra ou qualquer outra arma improvisada.
Há um Jeep renegade cor de vinho na garagem. Aparentemente, não há
ninguém na casa. Entretanto, sendo um cara cujo cérebro só é usado para
maquinações malignas, Ivan sabe que um bom esconderijo exige que seus
habitantes atraiam pouca ou nenhuma atenção. Se eu fosse um assassino
provavelmente já descoberto da minha culpa, não veria o menor problema em passar
um tempão em casa preso a uma rotina que não me permitisse sair ou interagir
com os vizinhos. Se bem que... É como se o quarteirão inteiro fosse de
assassinos escondidos sob tetos que não despertam suspeitas. Nunca vi um bairro
tão tranquilo. Em outras circunstâncias, eu com certeza tentaria procurar uma
casa por aqui, mas no momento eu tenho uma missão mais importante.
A residência é de madeira. Lembra
um pouco aquelas casas americanas que vemos em filmes; tem dois andares e um
pequeno jardim em frente. Porém, há um muro e um portão. Cuidadosamente, Denner
e eu pulamos o muro. Graças a Deus nada de cachorros para nos denunciar. E o
silêncio continua.
Ivan está tão empenhado em se
manter oculto que as luzes da frente nem mesmo estão acesas. Mas isso é muito
bom. Me dá ainda mais facilidade para continuar com minha invasão e não ser
pego.
“Eu vou pelos lados até chegar aos fundos”, sibilo para Denner.
Ele balança a cabeça concordando
e sinaliza que vai continuar lá pela frente.
Sigo meu caminho, pego o lado
esquerdo da casa, aguçando meus ouvidos para tentar escutar algum ruído que
possa me comprometer ou mesmo me ajudar a chegar ao meu alvo. Há uma luz acesa
num dos cômodos do fundo, escapando por uma janelinha à frente. Ouço o barulho
de colher batendo em panela. Ivan deve estar provavelmente preparando o jantar
na cozinha. Excelente! Nada melhor do que surpreender uma pessoa em pleno
momento de refeição, porque assim, além de quebrar sua cabeça com uma pedra,
ainda consigo arruinar uma ocasião tão importante. Eu e essa minha mania
doentia de conseguir fazer piada em momentos inapropriados...
Alcanço o quintal. Pouco
espaçoso, mas muito confortável pelo que avalio. A porta da cozinha, que dá
imediatamente para o quintal, está aberta. A lâmpada aqui fora tem uma luz
relativamente fraca, então não preciso me preocupar com a exposição. Um vulto
vai de um lado a outro na cozinha, e eu não consegui acompanhá-lo direito
porque estou escondido atrás de um lençol estirado no varal. Mas deu pra ver
muito bem que é o cretino.
Mentalizo a posição da pedra
dentro da minha calça, ao passo em que também programo na mente o movimento
certo para tirá-la de lá numa agilidade considerável para atacá-lo antes que
ele consiga investir contra mim.
O corpo negro e sem camisa de
Ivan surge diante de meus olhos. Ele está de costas, segurando o que talvez
seja a panela que ouvi ainda há pouco, assobiando. Está realmente levando uma
vida normal, enquanto deixou para trás pessoas devastadas com perdas
irreparáveis. Um cara desses não merece perdão.
Aos poucos vou saindo do
esconderijo, mas ainda não vou usar a pedra. Quero socar a cara dele primeiro,
dar chutes, agredi-lo o quanto eu puder, com a carga mais violenta que eu puder
(se possível, deixar seus braços em condições deploráveis também) antes de
poder olhar nos olhos dele enquanto lhe parto a cabeça e assisto o sangue deixando
sua cara ainda mais imunda do que já é.
A primeira ideia brilhante que
tive, ainda no carro, e que eu não esperava que fosse ter a chance tão linda de
pôr em prática, é chegar dando logo uma voadora nas costas do pilantra. E é
assim que eu entro, pegando um pouquinho de impulso ainda do quintal. Só não dá
muito certo de acertar as costas porque, assim que eu me encaminho para o
interior da cozinha, Ivan se vira para minha direção e minha voadora pega entre
as costas e as costelas.
Minha fúria é tão vigorosa que o
corpo do filho da mãe é atirado contra uma parede com várias panelas
penduradas, fazendo-as balançarem.
“Te achei, filho da puta!”, esbravejo, com a voz gutural. O coração
pulsa num ritmo inacreditável.
Ele faz uma careta de dor e
arregala os olhos totalmente surpreso em ver meu rosto.
No entanto, como eu não sou um
personagem dos Cavaleiros do Zodíaco,
não tô aqui pra ficar de papinho e já parto pra cima. Começo a dar socos em
lugares aleatórios, mas me esforçando para manter a região do rosto e das
costelas. Só que acerto poucos; o safado começa a se esquivar colocando o braço
na frente, e isso me lembra que apenas um dos meus braços está em condições de
executar os golpes, mas que se dane! O braço ferrado começa a latejar, mas a
adrenalina é incrivelmente maior.
Ivan me empurra com muita força,
o que lhe dá tempo de se levantar. A panela que ele segurava quando eu cheguei
está no chão. A sopa que ela continha está toda esparramada.
Quando noto que ele está tentando
encontrar algo para usar contra mim, volto a avançar em sua direção. Com o
braço bom, consigo acertar um murro em seu peito, só que não aplico muita
força, então é praticamente inútil.
Volto a desferir um soco, que
desta vez acerta o ar, graças ao reflexo dele em desviar para o lado certo. Em
contrapartida, Ivan me dá um soco bem no estômago. Gemo de imediato, mas não
posso gastar tempo para experimentar qualquer dor, então me concentro em
revidar. Ele me acerta um chute na altura da virilha, mas não tem muita sorte
com a força do golpe, então só faz incomodar um pouco.
Vendo que um dos meus braços está
com um imobilizador, Ivan decide enfiar um soco bem em cima, mas sou mais
rápido e o afasto com um empurrão. Então ele se atira contra meu corpo com um
chute pouco acima do joelho. Dessa vez, não consigo me equilibrar. E ele se
aproveita disso e se senta sobre meu peito e imobiliza o único braço com o qual
eu posso contar de verdade.
Respirando sôfrego, ele me encara
com os olhos mais diabólicos e alucinados, e o suor escorrendo pela cara.
Devolvo com um olhar ávido por querer liquidar com a raça dele. Estou arfante,
com os dentes cerrados e tentando me mexer para voltar a brigar. Mas agora o
desgraçado tá com vantagem sobre mim. Como é que eu pude ter sido tão fraco e
permitir isso?
(Milena)
Olívia escolhe um canal onde tudo
que se tem é estática e chiado. Após plugar numa entrada USB o aparelho desconhecido
que trouxera em sua bolsa, ela posiciona uma micro-câmera na parte superior da
TV. Depois, ela e Pedro ficam diante do objeto aguardando algo acontecer.
“Falta menos de um minuto agora”, digo, mais para manter a
implicância do que por estar realmente me importando com o tempo.
De repente, na tela, aparece uma
logo de uma empresa que eu conheço muito bem: TechnoCorp. A empresa da minha
ex-cliente, Aurora Souto. Que estranho! É a primeira coisa familiar no meio
dessa enxurrada toda de informações insólitas que eles me empurraram até agora.
“Por que tá aparecendo a logo da TechnoCorp?”
“Você conhece?”, Pedro pergunta, meio retoricamente, com ar de
satisfação. “Essa foi a empresa que
desenvolveu a tecnologia que possibilita a comunicação entre o lado daqui e o
lado de lá”.
“Hum, entendi, É como uma mistura de Skype com mesa branca”, brinco.
“O problema é que a tecnologia ainda não tá avançada o bastante, aí a conexão
não dura mais de três minutos”, queixa-se Pedro.
Olívia se mantém alheia a mim.
Sua atenção está toda voltada para a tela da televisão. Após quase quinze
segundos, o nome da empresa de Aurora some da tela, dando lugar a uma imagem do
que parece ser um escritório com uma ótima iluminação. Há uma estante de livros
atrás de uma escrivaninha.
“Está preparada?”, finalmente Olívia se volta para mim.
“Para o quê, exatamente?”
“Você vai falar com a sua mãe agora”, diz ela, estranhamente muito
simpática.
“O quê?”, tento parecer não muito chocada.
Pedro se aproxima de mim e toca
meu ombro, com delicadeza. Não sei dizer a razão, mas tá começando a dar um nó
na garganta, só que não era pra esse nó estar aqui. De repente, percebo o
estado em que minhas mãos se encontram: suadas e geladas. Semelhantemente a uma
adolescente que enfim descolou a chance de falar com o crush, me sinto como se estivesse prestes a ter a chance da minha
vida para algo que eu vinha desejando muito. Isso é loucura demais. É loucura
demais!
E é quando ela surge na tela, de
cabeça levemente abaixada, caminhando em direção ao centro da tela, onde está a
escrivaninha. Tem os cabelos como se fossem castanhos muito escuros. Está bem arrumada,
com uma blusa branca muito bonita. Uma mulher com aparência entre 50, não mais
que 54 anos. Uma mulher de beleza notável.
Ela procura se sentar de maneira
bem acomodada à escrivaninha, onde pousa os braços para se sentir mais confortável.
E aí ergue o rosto para encarar a câmera do tal dispositivo.
“Meu Deus!”, suspiro, contemplando a visão mais inimaginável de
toda a minha vida.
Essa mulher do outro lado da tela
é simplesmente idêntica à figura que eu imaginava da minha mãe quando ela
chegasse a essa idade.
“Milena”, ela diz, também visivelmente comovida.
A sala da minha casa ganha uma
atmosfera nova. É como se o mundo inteiro coubesse aqui dentro, mas ao mesmo
tempo fosse pequenininho. Não há Pedro e Olívia. Nem Juliana deitada no quarto.
Não há Sávio e Denner indo à caça de Ivan. Não há nada. Eu estou diante de um
momento que parece mágico, que parece uma alucinação de tão insano. Bastou ela
dizer uma só palavra. Uma só! Meu nome. Uma palavra foi o suficiente para eu
começar a deixar as lágrimas rolarem. A voz é a mesma. O olhar carinhoso. O
jeito de sorrir e de se dirigir a mim. Meu Deus! Meu Deus!
“Mãe...”, mal sai a palavra, estrangulada pela emoção e pela
reviravolta que tá dando na minha cabeça nesse exato momento. Minhas mãos
tremem e meus pés estão prestes a me deixar fora do chão. E o coração, se
remexendo desesperado aqui, nem se fala...
Uma leveza inesperada me cerca.
Meu coração é massageado por um calor tão bem-vindo, um calor que me enche
daquela saudade de tempos antigos. Um calor que eu havia esquecido como era.
Que eu sei que tentara substituir de outras maneiras, mas que nunca tivera
êxito real.
“Mas... mas como?”, gaguejo, ainda sem conseguir entender a
dimensão de tamanha maravilha.
Ando lentamente até a tela, com a
mão levemente esticada. Feito uma menina boboca, deslizo os dedos pela tela da
televisão, como se isso pudesse me fazer sentir o toque da pele de minha mãe, e
comprovar que essa mulher é de verdade, não é uma ilusão, não é uma pegadinha
sem graça. Mas como é possível?
“Filha, eu tô com tanta saudade de você. Eu te procurei tanto”,
confessa ela, embargada pela emoção, e rapidamente se levantando de seu lugar
para repetir o mesmo gesto que eu.
“Minha mãe”, é só o que consigo balbuciar, a voz levemente trêmula.
“Minha mãezinha! Minha mãezinha! Você tá
viva, minha mãezinha. Você tá viva! Ai, meu Deus!”
Ouço um som de choro discreto
vindo de trás de mim. Não sei se é Pedro ou Olívia, mas é certo que a emoção
aqui está incontrolável.
“Eu estou viva sim, meu amor!”, ela confirma, e ri porque sou
apenas uma garota que, mesmo adulta, ainda sou capaz de ser tão boba.
Ambas estamos próximas de nossos
respectivos monitores. Palavras não conseguem ser suficientes. Tudo o que
fazemos é chorar. E rir. E depois chorar de novo. A última coisa que eu podia
imaginar nessa vida, mas também a que eu mais ansiei com o coração mais cheio
de ardor. Poder saber que ela existe além das páginas daquele diário e das
minhas noites angustiantes em que sua falta machucou mais do que tudo, e eu
lutava para dormir e ter fé nos dias vindouros. Minha mãe está viva. Minha mãe
está viva.
Então me ajoelho e fico admirando
cada detalhe do seu rosto lindo, porque se eu só tenho três minutos, é
primordial que eu aproveite apreciando aquela que sempre foi a minha verdadeira
razão de viver.
“Meu Deus, eu sinto tanto a sua falta!”, me despejo em lágrimas,
que jorram de uma fonte infinita na minha alma.
“Você tá tão linda!”, elogia ela, também mesclando entre falar e
chorar.
Eu rio, como sempre ri quando ela
me elogiava e eu não dava crédito. Sussurro um “obrigada” meio tímido,
assinalado com um sorriso igualmente contido.
“Você está bem, meu amor?”, pergunta ela.
Confirmo com a cabeça, ainda
imersa na visão à minha frente.
“E a senhora?”
“Eu estou muito bem, minha filha. E com certeza estou muito melhor
agora podendo ver você de novo. Eu nunca te esqueci, Milena. Faz tanto tempo
que eu sonhava em te ver de novo”.
“A senhora não tem ideia do tanto que eu me sinto sozinha. Eu nunca lhe
esqueci também. Nunca”, desabafo, mesmo sabendo que é a primeira vez que
falo com ela em anos. Contudo, é como se nunca tivéssemos nos separado. A
relação de cumplicidade está intacta. Pode até ser minha mãe de um universo
alternativo, mas é definitivamente a mesmíssima pessoa.
Trocamos mais algumas palavras,
informações extremamente triviais, mas com um significado gigantesco. Mesmo
tendo de nos despedir porque o aparelho vai se desconectar, nós duas estamos
dividindo uma alegria tão imensurável que isso nem chega a ser um problema.
“Se cuida, Mile! Eu te amo muito e tô com muita, muita saudade”,
despede-se.
“Eu também morro de saudade, mãe. Se cuida também!”
Ela não se afasta da câmera até a
tela ficar toda preta. E eu permaneço olhando para a tela, com cara de idiota,
mas uma idiota plenamente feliz. Caramba, eu falei com a minha mãe! O quão
maravilhosamente louco isso pode ser?
Não sei quanto tempo se passa até
que eu me vire para encarar Pedro e Olívia, enquanto enxugo o rosto com as
mãos.
“Acredita em nós agora?”, Olívia pergunta, com um sorriso sincero.
Sorrio de volta, balançando a
cabeça por conta da contradição disso ter sido tão bizarro porém tão
fantástico.
“Ainda tô sem entender nada, mas acredito!”
Caminho até eles e puxo os dois
para um abraço em conjunto. Estranham no início, mas logo se rendem. E aí eu
percebo que o choro que eu ouvira pouco tempo atrás não foi apenas de um deles,
mas dos dois. Queria que o Denner estivesse presenciando isto, ele
provavelmente cairia pra trás ao descobrir que Pedro e Olívia têm coração.
(Sávio)
“É assim que você me retribui por eu ter tido pena de você, seu merda?”,
cospe Ivan com todo ódio. “Você teve sorte
de eu não ter mandado eles te matarem, isso sim”.
“Seu... Filho da...”, a perna dele sobre meu peito começa a me
sufocar.
“Como é que você tem a audácia de vir me enfrentar, hein?”
“Você... Matou... Aaah... Você matou a... Anna...”, digo, com
dificuldade.
“Anna?!”, ele se faz de desentendido, então pega o meu braço
danificado, inclina pra cima e depois joga com tudo contra o assoalho.
Vejo estrelas e urro de dor.
“Eu não matei a Anna, idiota. Droga, foi por isso que você veio aqui?”
Não respondo, apenas tento
disfarçar a dor.
“Como você me achou?”
“Vai se foder!”, encontro fôlego e cuspo a frase de uma só vez.
“Como foi que você me achou, Sávio? Hein?”
O olhar demoníaco se transforma
em um olhar de quem está se dando conta de algo. De repente, tudo fica claro na
mente dele. Ora, a única solução viável para o enigma de como cheguei aqui é
absurdamente óbvia.
“Juliana”, diz ele, como se estivesse se deliciando com a pronúncia
do nome. “Eu quero ela de volta, Sávio.
Cadê ela? Eu quero recuperar a minha namorada. A coleção já tá muito
desfalcada”.
“Eu vou... acabar com vo... com... você, Ivan”, ameaço, mais para
manter a classe do que outra coisa. Não posso me deixar humilhar assim.
“Me fala onde a Juliana tá, senão eu vou fazer mais do que machucar
esse seu braço todo bichado”, sua ameaça é muito mais intimidadora, não só
porque estou sob seu domínio, mas porque esse homem parece estar possuído. Ou então
só está sendo quem sempre foi e resolveu largar as atuações de bom moço. Sua
cólera é genuína.
Ele força a perna ainda mais
contra meu pescoço, enquanto pressiona um dos braços contra o meu braço doente.
Tento me mexer de todo jeito para tirá-lo de cima de mim, mas acaba que com
isso só estou desperdiçando a pouca energia que tenho.
“Por que você foi se meter comigo, hein? Por que não ficou na sua? Quer
morrer, Sávio? Quer morrer? Então eu vou te matar!”, vocifera ele, e a
saliva raivosa goteja contra meu rosto, e eu me mantenho resistente.
Ivan imprime mais força contra
meu pescoço e contra meu braço.
“Aaaaaaaaaaaiiiii!!!!”, ele grita e se afasta. O som de algo
atingindo e surrando sua pele ecoa retumbante.
Quase sem força nenhuma, me movo
com o máximo de habilidade para me levantar e o empurro. Ele cede. Mas é atingido
de novo.
Quando consigo entender o que
está acontecendo, vejo Denner com uma longa mangueira de jardim azul enrolada
na mão, mas com alcance suficiente para usá-la como um chicote. Ele deu umas
boas mangueiradas nas costas nuas de Ivan.
“Foi o que eu consegui encontrar, Sávio”, desculpa-se ele.
“Você é ótimo!”, parabenizo sorrindo e com o polegar pra cima. Eu
amo esse cara!
Num milésimo de segundo que Ivan
se distrai outra vez buscando com o olhar por uma faca ou algo que lhe sirva de
arma, aproveito para lhe dar uma rasteira. Com ele no chão, vou logo matar
minha vontade de usar a pedra. Não posso errar um único movimento sequer, tenho
de ser preciso pra realizar tudo com sucesso.
Acerto um soco bem no nariz dele,
que sangra. Ele estava tentando se reerguer antes disso, e agora está tombado.
Enquanto ele faz um pequeno esforço para se levantar de novo, apanho a pedra e,
com a boca aberta como quem vai degustar um pomposo banquete, sinto o calor da
maldade no ato que vou cometer, além de experimentar um prazer que vai
crescendo. É quando escuto Denner falar, sem mais nem menos:
“Logo isso acaba e a gente vai tranquilizar a Milena e a Juliana”.
E tudo acontece em menos de dois
segundos. Troco um olhar com o Denner, confuso pelo que ele acaba de dizer, mas
ele me olha com tanta inocência que entendo que ele teve outro de seus
pensamentos orais. Mas não tenho tempo de avisá-lo que o pensamento vazou. E,
então, um tiro do mais absoluto nada atravessa a cabeça do meu amigo. Em cheio.
O elemento-surpresa com o qual
ninguém contou. Valéria, uma das namoradas de Ivan, aparece ainda com a arma
empunhada contra o corpo de Denner, fumaça saindo do cano, enquanto meu
funcionário desaba inerte feito um saco vazio.
“DEEENNEERRRR!!!”, grito, desesperado, a pedra caindo de minha mão
e uma sensação pesada de terror me inebriando.
Valéria aponta o revólver para
mim também, o olhar mais carregado do que o de Ivan. Mas ele me derruba antes
dela atentar contra minha vida. Ele agora está de posse da pedra e, antes de
usá-la para barbarizar contra mim, meu olhar se depara com a aterradora visão
de Denner sangrando sobre o chão sujo de sopa, sem demonstrar o menor sinal de
vida. Ele se foi. E agora sou eu quem vai também.
Entretanto, ouço as sirenes de
polícia ao longe. Denner com certeza ligara para eles antes de entrar na casa e
salvar a minha vida.
Ivan se toca do perigo de ser pego
na mesma hora. Então ele se levanta, me dá um chute vigoroso na barriga e se
volta para a namorada/cúmplice:
“Vamos pegar o carro e fugir. Rápido!”
“Mas, negão, esse cara tem que morrer!”
“Não, Valéria!! Você já matou dois. Chega! Vamos embora, corre! Eu sei
onde a Juliana tá. Rápido!”, ele ordena e ao mesmo vai empurrando a
namorada para ambos se mandarem depressa.
Tremendo e com os olhos
esbugalhados, percebo que não consigo me levantar. O ar me falta, o corpo está
praticamente imprestável. A barriga dói insuportavelmente, e o braço com o
imobilizador parece totalmente podre depois de ter sido forçado e agredido além
da conta. O som das sirenes persiste, aproximando-se cada vez mais. Mas,
infelizmente, há tempo suficiente para Ivan e Valéria fugirem.
Com o mínimo de energia que me
resta, me arrasto pelo piso emporcalhado de sangue e pedaços de frango e
macarrão, até Denner. Seus olhos ainda estão abertos, mas não piscam, nem
demonstram qualquer expressão, não emitem qualquer mensagem. Mesmo sabendo que
é inútil, tento sentir sua respiração, mas é claro que ela já desfaleceu. Apoio
a cabeça sobre seu corpo morto, me deixando invadir pelo remorso e mergulho em
um choro desconsolado e sem fim.
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