(Do diário de Milena Kerber, 11
de Outubro de 2016, registrado às 10:34)
Bom dia, Fabi!
Como vai?
E finalmente os 30 anos chegaram, né? Ontem foi a data que eu sempre me
peguei imaginando por um tempão como seria. Mas foi tão diferente do que eu
esperava... Todas as últimas circunstâncias em que eu me meti acabaram
estragando as expectativas. Acabou que, apesar do Sávio ter vindo me visitar e
de eu ter falado com meu pai e as gêmeas no Skype, foi apenas mais um dia qualquer. Vale lembrar que ganhei um
presentinho bem peculiar da Rita Lina, coisa que eu definitivamente não tava
esperando. Ela agora tá atacando de tatuadora num estúdio de um amigo dela e me
ofereceu uma tatuagem grátis. Sem medo do perigo, aceitei, mas com a condição
de que o tal amigo fosse o responsável por tudo, já que ele tinha mais cara de
manjar dos paranauês do que ela... Enfim, saí de lá com a parte interna do
braço direito com o desenho de uma garota segurando um livro de onde folhas
voavam e eram levadas pelo vento. Toda trabalhada nos significados profundos,
uma coisa bem cabeça e poética mesmo, algo que eu achei que fizesse sentido na
minha vida atualmente... Confesso que depois fiquei pensando que uma tatoo da Úrsula teria sido uma boa pedida. Ou da
Mafalda, que eu amo demais. Aproveitei que tava na rua e mexi no cabelo
também... Pequenos presentes que a gente se dá quando tá na vibe de chutar o balde.
Sei que soa muito melancólico e afundado no drama (e é! É melancólico e
dramático pra cacete!), mas aqui é o único lugar onde eu posso ser totalmente
aberta e me sentir abrigada. É que tem momentos na vida que, mesmo você
recebendo carinho das pessoas e sabendo que tem gente que te ama, você
simplesmente se sente pra baixo e até mesmo dispensável. Mas o pior de tudo é
quando você sabe que tudo isso vem depois de você sair de um relacionamento
tóxico. Existe vida pós-desapaixonamento? Bom, o que eu sei é que existe
esperança, mas até pra alimentar esperança a gente acaba experimentando
bastante dor...
(Milena)
A campainha toca. Interrompo os
relatos no diário, fecho-o e vou verificar quem é. Só agora me dou conta da
ressaca, a cabeça molenga e pesada. Ainda no clima da chutação de balde, ontem
eu bebi quase uma garrafa inteira de vinho branco sozinha, assistindo uma
seleção de vídeos aleatórios na internet. Só me dei conta de que eu tava indo
longe demais quando, quase dormindo em frente ao computador, percebi que tava
rodando um vídeo de um canal que conta as “tretas do mundo dos youtubers”, falando de gente que eu
sequer conheço e continuo sem a menor vontade de conhecer. Essa foi a gota
d´água que eu precisava pra decidir que o melhor a fazer era ir dormir pra
aproveitar melhor meu tempo.
“Bom dia! Milena Maia Kerber, por favor?”
É o carteiro, carregando um
pacote.
Assino e recebo a encomenda. Sei
o que é. São uns livros que comprei na internet enquanto tava de bobeira dias
atrás. Uns clássicos da Jane Austen, um livro de receitas de sobremesas (me deu
uma doida e eu resolvi que ia me permitir aprender pelo menos a fazer um pudim
até o fim do ano) e uma porção de livros para colorir (ninguém é perfeito, ué,
e quem sabe essa não seja uma nova e maravilhosa forma de terapia pra
desestressar?).
Deixo os livros sobre a estante
da sala, conecto um pendrive à TV e
escolho uma pasta do Nando Reis pra tocar. O carteiro quebrou um pouco o clima
de confissões no diário, então vou continuar a “conversar” com Fabi mais tarde.
Passo pela cozinha pra pegar um copo d´água, olho de relance pra louça suja
acumulada de uma semana e me encho de coragem para lavá-la. Só que mais tarde.
Lidar com a preguiça é como travar uma batalha contra uma pessoa com a qual
você nem mesmo considera uma inimiga.
Enquanto Nando vai tornando o
ambiente mais aprazível com “All star”, a campainha toca de novo. Que estranho,
para uma casa que não costuma receber muitos visitantes. Deus, me perdoa por eu
estar pensando numa boa desculpa pra dar pro caso de ser minha vizinha tagarela
que vende Jequiti. Seria muito constrangedor dispensá-la pela décima sexta vez
esse mês.
Mas eis que a porta se abre e,
por meio segundo, tenho a clara certeza de que lidar com a vizinha seria
fichinha.
“Oi, Milena!”
“Ju?!”
“Tudo bem? Será que a gente pode conversar?”
Além de recebê-la em minha casa
depois daquele papelão imperdoável de se juntar ao time do Ivan, Juliana ainda
aceitou quando eu ofereci café. Será que ela não aprendeu a recusar as coisas
que são oferecidas por educação, principalmente quando sabe que as coisas entre
nós estão péssimas? Claro que facilitaria bastante se o café já estivesse pronto, mas desde que acordei eu nem
tinha me dado ao trabalho de me atarefar com isso. Mais louça pra lavar...
“Seu cabelo ficou legal de verde”, ela elogia minhas mechas novas.
“Valeu”, balbucio, sem disfarçar minha cara amarrada, colocando
água na cafeteira.
“Olha, eu sei que você deve estar com raiva de mim”.
“E tô mesmo”.
“Nossa!”
“Que foi? Ah, você me conhece, Juliana!”
“É, é verdade, eu sei... Só que isso ainda me surpreende, sei lá”.
“Não mais do que você me surpreendeu naquele dia no sítio dos meus
avós”.
Essa cravou tão fundo que ela
prefere não responder nada, pois sabe que é uma grande verdade. Como eu poderia
imaginar que, entre todas as mulheres do mundo com quem o Ivan poderia me
trair, haveria uma prima de 1º grau? E, pior, que ela também era uma traidora e
o Ivan, seu amante. História absurda demais, até sinto a ressaca crescer.
“Sobre o que você quer conversar?”
“Sobre as minhas escolhas erradas”.
“Huuummm, é mesmo, é?”
“Por favor, não debocha. Antes tarde do que nunca, você não acha?”
“É. Concordo. Mas o que foi que deu em você pra perceber que fez
escolhas erradas?”
“Desde que eu traí meu antigo namorado com o Ivan, eu percebi que algo
havia mudado em mim”, diz ela, deixando evidenciar certo remorso. “E depois de ter decidido que eu queria
continuar com o Ivan, mesmo depois de você ter exposto ele daquele jeito, é
como se eu não fosse mais eu, entende? Sei lá. Mas mesmo assim, alguma coisa
dentro de mim me dizia que eu tava irreconhecível, e fazendo coisas que antes
eu jamais faria. Imagina só, até me submeti a dividir um cara com outras duas
mulheres”.
“Odeio concordar com aquele traste do Ivan, mas isso é mais comum do
que parece”.
“Pode até ser, mas não pra mim”, contraria ela. “Eu descobri que nunca vou abrir mão de
algumas coisas tradicionais, sabe, embora eu goste de ser descolada e à frente
do meu tempo. Dividir homem ainda não é a minha praia. E também tem outra
questão.”
“Sim, aquele seu canal no Youtube. Se quiser excluir, te dou todo o apoio, você só tava perdendo seu
tempo mesmo”.
“Peraí, o quê??”, ela abre a boca como que profundamente ofendida. “Claro que não!! Meu canal é minha vida.
Aliás, tô malzona porque não posto vídeo novo há três semanas. E tudo por causa
desse arrependimento que tá me matando. Meus seguidores já me mandaram uma
porção de mensagens preocupados”.
Eu sempre pecando por falar
demais, mas não me arrependo de ter dado o recado.
“Desculpa, Ju, eu bebi muito ontem e amanheci com muita ressaca. Fora
que eu fiquei um pouco traumatizada com esse negócio de Youtube. Então não leva em consideração tudo que eu disser, tá? Mas, deixa pra lá,
qual é a outra questão?”
“É a Valéria. Ela é extremamente possessiva. Finge que não tem ciúmes
de mim e da Cyntia, mas vez ou outra fica tentando jogar o Ivan contra a
gente”.
“Quem te ouve falar com essa naturalidade, até esquece por um momento
que vocês estão num relacionamento de poliamor, onde na verdade só o safado do
Ivan que tá se dando bem. Credo!”, me sinto enojada. “Como assim, vocês vivem juntos, os quatro? Me explica isso direito”.
“Não exatamente. Mas muitas vezes ele sai com duas de nós e tal”.
“Que nojo! Nem quero imaginar esse tipo de situação ridícula”.
“Pois é, eu também acho ridículo, mas eu pensei que a solução ideal
seria vir aqui e falar com você, pra você me ajudar. Mas você acabou de dizer
pra não levar em consideração o que você disser”.
Desligo a cafeteira, pego umas
xícaras, sirvo o café e coloco uma das xícaras diante dela.
“E que ajuda é essa que você tá querendo?”
“Eu quero me desapaixonar do Ivan”.
“Como assim? Mas você já não tá desapaixonada? O que é que tá
faltando?”
“Se eu soubesse, eu não teria vindo te procurar”.
“Nossa!”
“Essa grosseria deve ser de família, desculpa”.
“Tudo bem”, tomo um gole do café. “Bom, eu só tô surpresa por você ainda não ter se desapaixonado por ele
pelo simples fato de que você, minha querida prima, está num relacionamento
abusivo, com aquele tipo de homem mais conhecido como ‘macho escroto’. Isso
deveria ser motivo suficiente. Mas você ainda tá encantada por ele. Um homem
que não mede esforços pra usar você e as outras duas que foram levadas pela
lábia dele”.
“Você sabe que essas coisas de paixão são complicadas, né, Milena?”
“Eu sei, Juliana, eu sei. Mas você foi criada numa boa família, eu sei
que te ensinaram a ter bom senso com certas coisas. E sair desse relacionamento
coletivo e abusivo seria o mínimo de bom senso que você poderia ter, né?”
“Eu sei...”
A cara dela de menina triste me
deixa com pena. E até me sinto disposta a deixar pra trás a mágoa de ter sido
apunhalada por alguém do meu próprio sangue.
“Olha, eu posso te ajudar, mas não como você tá pensando”, falo com
um resquício de sorriso.
“Não entendi”.
“Bom, é que eu não sou mais agente do desapaixonamento desde ano
passado, e as minhas habilidades pra isso estão meio capengas, sem falar que
nós temos um parentesco, então não é legal quando o envolvimento é muito
pessoal, mas eu tenho um amigo que pode dar uma força”.
“Você acha que ele toparia?”
“Sim”, deixo agora um sorriso maior aparecer. “Porque foi ele quem me ajudou a me desapaixonar do Ivan”.
(Denner)
Concentrado digitando um
relatório sobre um caso recém-encerrado em minha sala na ANNA, quando Madonna
liga da recepção.
“É o Hektor Casanova, seu Denner! Posso passar a ligação?”
“Sim, sim, Madonna”.
Estou surpreso e bastante
empolgado, porque depois da conclusão do caso do meu escritor favorito, jamais
imaginei que tão cedo voltaríamos a nos falar. Espero que ele não tenha se apaixonado
por mais um personagem, porque só de pensar em encontrar os anões no mundo dos
sonhos de novo me deixa arrepiado.
“Denner!”, exclama ele, com entusiasmo.
“Alô, Hektor? Que surpresa! Como é que vai?”
“Eu vou muito bem, meu amigo. E com ótimas notícias pra te dar!”
“Certo... Pode falar!”
“Acabei de terminar o volume nove de Detetives da Noite. Ou seja, a série está concluída. Acabou!
Pra sempre! Não é uma maravilha?”
Bom, tendo em vista que eu sou um
tremendo fã da história, não é uma maravilha pra mim. Mas olhando pela sua
perspectiva, Hektor, lidando com esse universo da história há tantos anos, você
merece um descanso.
“Alôôô!! Denner!! Tá aí?”
“Ué, eu não respondi?”
“Só se foi em pensamento”, ri ele.
Nossa, é cômico, mas foi isso
mesmo que aconteceu. Eu pensei na resposta e achei que tivesse verbalizado, o
oposto do que eu tô acostumado.
“Ah, tá, me desculpa. Bom, eu sou fã, então por mim a história podia
durar pra sempre, mas você deve estar precisando de um descanso depois de
tantos anos se dedicando aos Detetives da Noite, né?”
“Sim, sim, exatamente. Tem razão. Olha, mas a melhor notícia não é
essa, Denner. Meu agente leu os seus textos e simplesmente adorou. Ele quer te
agenciar”.
“O quê?”
“Ele tá tão interessado nos seus contos que tá querendo te colocar no
começo da fila dos originais pra apresentar pras editoras. E aí? Boa notícia ou
não é? Segundo ele, você tem um potencial enorme! E quer saber do que mais? Eu
li alguns dos textos e concordo com ele”.
“Caramba, isso... Uau! Isso é uma notícia ótima, Hektor”.
“Se tudo der certo, até o início de 2017 você vai ter um contrato lindo
com uma editora boa, meu amigo”.
Por mais que eu seja um escritor,
me faltam palavras.
“Poxa, Hektor, muito obrigado. Sério, muito obrigado mesmo”.
“Que nada! Eu é que vou ser pra sempre grato a você. Preciso desligar,
ok? O agente vai entrar em contato em breve. Tchau!”
“Tchau!”
Um dia, eu fui um garoto que
sonhava e nem se preocupava se iria realizar meus sonhos. Na verdade, eu mais
pendia pro lado que acreditava que os sonhos não iriam se realizar. Eu já
desejei diversas coisas, as quais quase todas nunca alcancei. Eu quis ter um
Gugu equilibrista, e um tio me iludiu dizendo que ia me dar, mas acabei ficando
com sua coleção incompleta de cartas de baralho; Eu implorei pra fazer curso de
inglês, mas meu pai me colocou pra treinar capoeira no centro comunitário do
bairro. Até hoje eu sinto inveja de quem consegue manter uma comunicação
fluente em inglês, e mesmo eu tentando compensar dizendo que, ao contrário de
uma parcela gigantesca de pessoas, pelo menos eu sei alguns movimentos de
capoeira, caio em mim e vejo que esse tipo de conhecimento nunca me serviu de
nada. Até o meu antigo berimbau já nem existe mais, porque o Lucas uma vez o
levou para uma competição na escola dele sobre “invenções inúteis da humanidade”
e ganhou o primeiro lugar, o que envolvia se livrar do objeto no fim da
competição. Quando descobri o que ele tinha feito, fingi que tava morrendo de
ódio, tudo para disfarçar o quanto, na realidade, eu me sentia grato.
Eu já quis até mesmo ter catapora,
numa época em que metade da minha turma na 6ª série pegou, e quando todo mundo
se curou e retornou pra escola, eu era um dos únicos a não ter assunto pra
conversar com a galera. E era uma época em que eu tentava me entrosar. A mim só
restaram alguns resfriados que duravam dois dias no máximo, algumas vezes
caindo no fim de semana, o que era totalmente sem-graça para quem queria ter
algo empolgante para compartilhar.
Eu sempre quis ser alguém. Eu
sempre quis ter a sensação de que existe algo pra mim no mundo, algo grande,
algo especial. Então, o Sávio me notou e eu entrei pra ANNA. E agora, meu escritor
preferido me deu a força mais preciosa que eu poderia querer em termos de
ajuda, e em breve vou poder ser agenciado e notado por uma grande editora. Meus
contos vão deixar de existir apenas na memória do meu computador e poderão
ganhar o mundo e conquistar pessoas. Eu! Um cara que sempre passou despercebido
e praticamente invisível. Um cara que, num concurso de losers, não ganharia nem menção honrosa... Olha só aonde eu já
cheguei! Paro pra pensar no tamanho do impacto disso pra aquele menino que eu
era e simplesmente não consigo acreditar. È maravilhoso demais!
Eu vou realizar um baita de um
sonho. Eu vou realizar um dos maiores sonhos da minha vida. Você já se sentiu
como se fosse um carro a toda velocidade e perdesse os freios? Que nada pode te
parar? Que você tá vindo com tudo e nada, nem ninguém, vai te parar? E que você
vai passar por cima de tudo, detonando o que aparecer no caminho, e o estrago
vai ser lindo e épico? Eu vou realizar um sonho!
O telefone toca de novo.
“Oi, Madonna!”
“Seu Denner, tem uma mulher e um homem aqui pra falar com o senhor.
Pedro Bispo e Olívia Dantas. Eles disseram que o senhor está aguardando por
eles”.
Sempre tem os urubus pra querer
atrapalhar a paisagem...
“Urubus, seu Denner?”
“Hã? Não, Madonna, desculpa... Eu... Nada, nada. Diga pra eles que eu
já estou saindo pra atendê-los, ok?”
Desligo.
Mal recebo uma novidade
formidável, já vou ter de lidar com esses dois malas. E pelo visto hoje não
tenho como escapar.
(Milena)
Nem bem terminamos o café, pedi
licença a Juliana e fui me arrumar. Já é quase meio-dia e aqui estamos, na sede
da ANNA.
Meu Deus! Quantas memórias! Não
posso negar que a maioria delas são gostosas e também dignas de boas
gargalhadas.
O prédio continua igualzinho, só
que a fachada já começa a dar sinais de desgaste e está descascando em alguns
pontos.
Ao abrir a porta de vidro, me
deparo com dois rostos desconhecidos e o de Madonna.
“Dona Milena!”, ela se surpreende, levantando-se de trás de sua
mesa de recepcionista para me abraçar. “Minha
nossa, que bom lhe ver! A senhora vai voltar a trabalhar aqui?”
“Madonna!”, eu a abraço com ternura e muita saudade. “Que nada, infelizmente não!”
Lanço um olhar simpático ao casal
sentado no sofá da recepção, ambos apresentando uma sobriedade e seriedade
assombrosas. Que esquisito! Raramente há dois clientes ao mesmo tempo esperando
pra serem atendidos. Ou, talvez, depois que eu saí, o negócio começou a bombar
tão loucamente a ponto de ficar “lotado”.
Um homem vem lá de dentro, atravessando
a porta que dá acesso às salas internas. É um rapaz da minha faixa etária,
provavelmente o Denner de quem Sávio já me falara. O meu “substituto”.
“Bom dia”, diz ele, hesitante, olhando pra mim e logo em seguida
para o casal no sofá.
“Seu Denner, essa é a dona Milena, a ex-sócia da agência”.
“Aaaah!”, ele parece se lembrar. “É claro! Poxa, desculpa não ter reconhecido você...”
“Verdade, a gente meio que já se conhece, né?”
“Pois é, mas...”, ele se agonia tentando se lembrar exatamente de
onde.
“Do velório da Rita Lina”, recordo.
“Isso mesmo! É, é verdade. Eu trabalhava na capela funerária”.
“Prazer em te conhecer de verdade dessa vez”, brinco.
“Prazer em te conhecer de verdade também”.
Apertamos as mãos e, apesar do
clima amigável, este moço não parece muito à vontade. Pode ser porque ele tem
noção de que entrou pra agência quando minha relação com Sávio se abalou, então
talvez isso o faça se sentir meio intruso. Entretanto, algo me diz que tem a
ver com o estranho casal, isso sim.
“O Sávio tá por aí?”, dirijo-me a Madonna.
“Ele ainda não apareceu por aqui hoje, dona Milena”.
“Sério? Será que tá numa missão?”
“Acho difícil”, responde Madonna. “Ele não comentou nada”.
Juliana me olha frustrada, e sem
emitir som eu mexo os lábios dizendo “relaxa”.
“Eu tô precisando muito falar com o Sávio, viu, Madonna? Vou tentar
mandar mensagem pra ele ou ver se ele tá em casa. Mas, qualquer coisa, você
pode passar o recado que eu vim aqui? É meio urgente”.
“Claro, dona Milena, pode deixar comigo”.
“Só espero que isso não seja um mau sinal”, murmura Juliana.
“Ih, menina, para com isso!”, repreendo-a, tirando um par de óculos
escuros da bolsa e colocando sobre o rosto. “Eu
prometi que você ia ser ajudada, e você pode contar com isso. Ou eu não me
chamo Milena Kerber!”
A mulher no sofá, uma loura muito
elegante com ares de quem trabalha em gabinete de político, me olha com certa
curiosidade, como se eu tivesse algo interessante a oferecer. Porém,
provavelmente, é só implicância minha, apenas por achar que eles estão deixando
o coitado do Denner aflito. Nem conheço o sujeito muito bem, mas já estou
lutando a seu favor.
“Obrigado, Madonna! E Tchau pra vocês, tenham um bom trabalho!”
Enquanto Juliana e eu damos as
costas para sair, Madonna e Denner me dão “tchau” em uníssono.
Não quis deixar transparecer, mas
espero que essa ausência do Sávio realmente não seja um mau sinal.
(Denner)
O dia pelo qual tanto temi, enfim
chegou.
“Depois de você nos enrolar por tanto tempo, até que enfim vamos poder
fazer algo concreto”, comenta Olívia, já no carro comigo e Pedro. Ele é
quem dirige.
Me sinto acossado no banco de
trás. Admiro de eles não terem me algemado a fim de me impedir de abrir a porta
no meio do caminho e fugir, mesmo me arriscando a rolar e me ralar no asfalto.
“Mal posso acreditar que enfim vamos conhecer a Rita Lina”, Pedro
quase cantarola a frase, de tão exultante.
“Mas os pais dela vão estar presentes”, faço o possível para cortar
um pouco o barato deles. “Não se esqueçam
disso!”
“Pedro, coloca um pouco de Bowie aí!”, rosna Olívia.
Com uma mão no volante e outra no
som do carro, ele mexe no aparelho, meio a contragosto.
“Só tô colocando porque é a sua vez de escolher a música”, resmunga
Pedro. “Pode ser ‘Starman’?”
“Pode ser qualquer uma. David Bowie é escolha certeira”.
“Ah, ótimo! Pelo menos não vou precisar ficar escolhendo, porque é um
saco!”
“Sua má vontade não vai matar meu otimismo, Pedro. Meus bons
pressentimentos estão ainda mais fortes”.
Me reservo de dar atenção a eles
com seus atritos idiotas e tento me concentrar em como eu ainda posso tomar
alguma atitude pra impedir que eles consigam convencer Rita Lina e seus pais de
qualquer coisa. Não confio nesses dois. Mas, antes de mais nada, mentalizo patinhos
em fila caminhando graciosamente numa rodovia...
Estou nervosíssimo. Parado à
porta da casa dos meus sogros, acompanhado de duas pessoas pelas quais a minha
antipatia só cresce, me sinto um traidor que leva o predador direto para a toca
das presas. E as presas, coitadas, nem sonham que estão prestes a ser
devoradas.
“Denner?”, dona Túlia me recebe, de avental, surpresa porque eu, gênio,
nem avisei que viria.
“Oi, dona Túlia. Tudo bem?”
Minha sogra é esperta, deve ter
sacado que estou falando com o mesmo grau de emoção que uma máquina de
estacionamento de shopping.
“Sim, tudo bem. Entra!”, convida ela, ao mesmo tempo em que me
indaga com o olhar quem são os meus “amigos”.
“Esses são o Pedro e a Olívia. Viemos ver a Rita. Ela está?”, pergunto,
sem ainda querer entrar.
“Está sim. Eu vou chamá-la. Podem entrar!”
“Obrigado”, digo, entrando a passos de lesma, como se cada segundo
fosse crucial e pudesse evitar o que viemos fazer aqui.
Após uns trinta segundos, Rita
vem para a sala; tão linda e engraçadinha, o meu amor. É uma preciosidade tão
significativa na minha vida que me bate um desespero só de pensar que pode ser
roubada de mim. Não posso me permitir perdê-la.
“Pokémon!”, ela diz, arregalando os olhos de felicidade ao me ver,
me dando um abraço e um beijo. “Que
surpresa, meu amor!”
“É...”, dou um sorriso amarelo.
“Oi!”, ela se dirige a Pedro e Olívia, que acenam as cabeças como
se fossem de bem.
“Você tá bem, amor?”, pergunto, na ilusão de estar ganhando tempo.
Sinto o olhar de Olívia
expressando que gostaria de pôr as mãos no meu pescoço e me esganar por eu
estar enrolando tanto.
“Estou bem sim”, responde Rita. “Eu
tava arrumando o quarto e adivinha só: encontrei umas caixas com um monte de
cartinhas da infância. Da época em que eu me comunicava com Nick, Nicka, Luke e
Luka”.
“Nick, Nicka, Luke e Luka?”, pergunto.
“Meus amigos imaginários”, esclarece ela. “Bom, Nick e Nicka eram os meus amigos imaginários, mas o Luke era
amigo imaginário do Nick e a Luka era amiga imaginária da Nicka. Bons tempos!
Eu vivia tirando onda dos erros gramaticais do Luke, mas hoje eu sei que aquilo
na verdade era dislexia. É uma pena que ele foi embora e eu nunca tive a chance
de me desculpar por ter sido tão cruel”.
“Olá, Rita Lina!”, intromete-se Olívia. “Meu nome é Olívia Dantas e esse é meu... colega, Pedro Bispo. É um
grande prazer conhecê-la”.
“Muito prazer”, diz Pedro.
“Legal”, comenta Rita. “Bom,
o prazer é meu. Mas aconteceu alguma coisa?”, essa pergunta ela dirige para
mim.
“Você pode chamar os seus pais?”, solicita Pedro. “É que não podemos gastar muito tempo, então
precisamos ir direto ao ponto. E precisamos deles aqui”.
“Do que se trata?”, indaga Rita, desconfiada.
“Amor”, intervenho, “por
favor, chame seus pais, tá? Eu juro que não vai demorar”.
Ainda muito desconfiada, ela se
afasta um pouco e vai até a cozinha, onde chama a mãe alto o suficiente para
que ouçamos. Depois, muda de direção, como quem vai para algum outro cômodo da
casa e chama o pai.
Estou muito apreensivo.
Dona Túlia e Seu Laerte aparecem
na sala, visivelmente retirados de importantes ocupações, mas sem parecer
aborrecidos por causa disso. A mãe ainda está de avental, limpando as mãos num
pano de prato, enquanto o pai está vestindo um macacão todo sujo de graxa.
Curiosamente, o cabelo está impecavelmente penteado e até tem um topete que provavelmente
não se mexeria nem se estivesse havendo um terremoto.
“Dona Túlia e Seu Laerte, gostaria de apresentar a vocês a Olívia
Dantas e o Pedro Bispo. Eles querem levar uma palavrinha com vocês”.
“Muito bem”, diz o Seu Laerte. “Vocês
aceitam um café?”
“Não, obrigado”, corta Olívia, movendo-se em direção a um dos sofás
presentes. “Será que podemos todos nos
sentar?”
Rita e seus pais se entreolham,
em seguida olham para mim, como que me questionando o porquê de tudo aquilo.
Então, como que provando que está “tudo bem”, sou o primeiro a me sentar, dando
uma demonstração de que eles podem confiar nos visitantes misteriosos.
“Amor, por que você disse que está tudo bem entre aspas?”,
questiona Rita.
Maldito pensamento oral. Opa!
Como ela sabe que havia aspas no meu “tudo bem”?
Ignorando esses detalhes, os pais
e a filha resolvem se sentar. Por fim, Pedro e Olívia também.
Sem mais delongas, Olívia dá o
pontapé inicial:
“Meu colega e eu estamos aqui em nome de uma importante missão, e tanto
ele como eu precisamos ser pagos por este trabalho. E, para sermos pagos,
precisamos cumprir a missão”.
“Ok”, acompanha dona Túlia. “Mas
que missão é essa?”
“Para irmos mais a fundo no assunto, Rita Lina precisa dormir”,
avisa Olívia, fazendo uma mesura com a mão direita, uma mistura de aceno de
“tchau” com estalar de dados.
E assim, sem mais nem menos, Rita
apaga. Do mais puro nada, como se tivesse sido desligada da tomada, o corpo
desabando como fruta madura sobre o colo da mãe ao seu lado.
“Meu Deus! Filha!”, assusta-se dona Túlia.
“O que é isso?”, Seu Laerte tenta sacudir a filha gentilmente, o
desespero aparecendo em sua face.
Faço menção de me levantar, mas
Pedro coloca o braço na frente e cochicha:
“Não foi nada. Eu te falei que a Olívia tem certas... habilidades”.
“Mas...”, tento argumentar.
“Por favor, fiquem calmos. Ela só está dormindo um pouquinho”, diz
Olívia. “É necessário, pra que ela não
tenha que escutar algumas coisas que vamos falar aqui”.
“Moça, o que você fez com a nossa filha?”, irrita-se dona Túlia, em
vão tentando acordar Rita.
“Dona Túlia e Seu Laerte”, Pedro toma a palavra, “Olívia e eu viemos buscar a Rita Lina. Os
verdadeiros pais dela estão desesperados em busca da filha, desde que ela sumiu
há quinze anos”.
“Como é que é?”, diz Seu Laerte, com o topete ligeiramente
balançando, o que é sinal de que ele está realmente
tenso. “Que história é essa de pais
verdadeiros? E vocês, quem são? Nós nem conhecemos vocês!”
“Nós não somos importantes”, desconversa Olívia, mantendo uma
postura calma de quem está disposta a ter o que quer. “Somos só pessoas encarregadas deste trabalho. E não estamos aqui à
toa. Vocês sabem do que estamos falando. Vocês sabem que não são os pais
verdadeiros dela”.
Por um raio de segundo, meus
sogros trocam um olhar que desafia minhas certezas. O que foi esse olhar entre
eles? Será que Olívia tem realmente um trunfo?
“Não sabemos do que vocês estão falando”, retruca dona Túlia, quase
tropeçado nas palavras. “E é melhor vocês
irem embora da minha casa. Eu não admito esse tipo de palhaçada debaixo do meu
teto. E tratem de acordar a minha filha também!”
“Não se preocupem”, tranquiliza Pedro, “ela vai acordar em no máximo duas horas. Mas, por favor, dona Túlia
e Seu Laerte, coloquem-se no lugar dos pais dessa moça. Sabemos do sofrimento de vocês, mas vocês
não podem remediar a perda que tiveram. Eles sim. A filha deles só está no lugar
errado, mas ainda está viva. Eles têm o direito de tê-la de volta”.
“Cala a boca!”, grita dona Túlia, começando a chorar.
Seu Laerte já não sabe se consola
a mulher ou se tenta acordar Rita; seu semblante também fica igualmente
abalado, e lágrimas já começam a nascer.
“Olha, pra não passarmos por pessoas frias e sem coração, sentimos
muito pela sua perda, mas vocês precisam ser justos e devolver o que não
pertence a vocês”, ratifica Olívia.
“Perda?”, estou confuso. “Mas
que perda?”
“É a história que você não sabe, Denner”, conta Olívia.
“A história verdadeira sobre a Rita Lina”, ressalta Pedro.
“Como assim, gente?”
“Os detalhes que ficamos de te contar quando fosse oportuno. E, bem, é
oportuno agora”, diz Pedro.
“Por favor, dona Túlia e Seu Laerte”, pede Olívia, “sejam razoáveis com a gente e admitam a
verdade. Admitam que essa moça desacordada aí não pertence a vocês. Mais uma
vez eu apelo: pensem no quanto os pais dela já sofreram. Pelo amor de Deus, são
quinze anos!”
“Não! Vocês estão enganados, essa é nossa filha. Rita Lina é nossa
filha e sempre vai ser. Nossa, nossa, nossa!”, esbraveja seu Laerte,
enquanto a mulher se acaba em choro.
“É, eu já imaginava que ia ser difícil”, Pedro se levanta,
colocando a mão sob o paletó.
“Nem se atreva, seu desgraçado!”, ajo com uma impressionante
rapidez e acerto um soco na testa dele, impedindo-o de pegar o revólver para
ameaçar os familiares da minha namorada. Droga, era pra ser no meio da cara e
com alguma sorte até mesmo quebrar seu nariz, mas não deu tempo de calcular
direitinho o trajeto do soco, minha ação foi repentina demais. Pelo menos deu
para fazê-lo cambalear e cair de volta no sofá.
“Merda, Denner, tá maluco?”, ele se revolta, balançando a cabeça
como se isso fosse desfazer a dor.
“Me enfrenta, seu filho da mãe! Mas vem sem arma se for homem!”,
desafio-o.
“Arma? Que arma o quê! Eu nem vim armado, seu louco! Eu só ia pegar uma
foto no bolso do paletó”.
“Ah, é?”
Após o susto com o meu ato
abrupto, Pedro apanha a foto sob o paletó e leva até os pais de Rita.
“Olhem”, diz ele.
Ao olharem a imagem, a angústia
no rosto deles fica ainda maior.
“Vão continuar negando?”, perdura Pedro.
“Que foto é essa?”, inquiro.
“Guarde isso!”, implora dona Túlia. “Guarde isso!”
Seu Laerte faz o movimento de que
vai arrancar a foto da mão de Pedro, mas este é mais veloz e puxa-a para longe.
Depois, volta para o sofá onde estamos Olívia e eu.
“Dá uma olhada”, ele estende a foto pra mim.
“Foi mal pelo soco”, lamento, sem graça. Mas ele está disposto a
relevar.
Vejo uma garota na foto e não
entendo nada. Não faz muita diferença pra mim, pois não a reconheço e
provavelmente jamais vi.
“O nome dela era Karen”, é dona Túlia quem surpreendentemente tira
minha dúvida.
“Karen?”, movo a cabeça, confuso.
“Sim”, ela continua. “Nossa
filha. Um dia, ela... simplesmente desapareceu. Foi sequestrada, na verdade.
Isso faz uns dezesseis anos. Depois de passar quase um ano procurando por ela
incansavelmente, a polícia encontrou um corpo abandonado no meio de uma mata.
Fizeram todos os testes e constataram que... que... era ela. Morta”, ela se
interrompe, a emoção tomando conta de seu relato.
Sinto um calor pousando com
veemência sobre o meu rosto. É como se o clima ao redor tivesse sido invadido
por uma sensação irreparavelmente sombria.
“Uns três meses depois, ainda não tínhamos superado a perda da Karen, é
claro”, é Seu Laerte quem prossegue narrando. “Mas estávamos indo ao supermercado no carro da empresa que eu
trabalhava na época e voltamos de noite. Foi então que, no meio da estrada,
quase atropelei uma jovem, uma adolescente. Ela tinha aparecido do nada,
desesperada por ajuda. Eu parei no carro e fomos acudir a menina. Ela não
estava suja nem nada disso, mas estava claramente perturbada, como se não
soubesse onde estava”.
“Rita”, concluo.
Seu Laerte confirma com a cabeça.
Continua contando:
“Em vez de levarmos para a polícia, nós a trouxemos pra casa. Demos
comida, banho, tentamos descobrir mais informações sobre ela, mas a menina não
falava coisa com coisa. A única coisa que deu pra descobrir foi que ela se
chamava Rita Lina. Enfim, fomos cuidando dela e cuidando... Até que virou nossa
filha. Um belo dia, qualquer que fosse a origem dela, aparentemente foi tudo
apagado de sua memória. Ela foi ficando com a gente como se fosse nossa filha
desde sempre. E assim ela cresceu, sendo amada e feliz. Nossa Rita Lina!”
“Foi Deus quem enviou ela pra nós”, dona Túlia está se recuperando
do choro. “Ela caiu do céu pra nós, ela é
um presente que veio no momento que mais precisávamos. É como se a nossa Karen
tivesse pedido ao próprio Deus que nos mandasse uma filha, pra gente não morrer
de tanto sofrimento”.
“Sim, sim, são palavras muito bonitas, dona Túlia. Mas ela não pode
ficar. O mundo dela não é aqui. Sinto muito”, racionaliza Olívia.
“Moça, como você consegue ser tão sem-coração?”, avalia Seu Laerte.
“Se os pais dela estão tão desesperados
assim, por que esperaram quinze anos pra vir atrás da filha?”
“Muito simples, senhor”, retruca Olívia, meio ressabiada pela forma
como o Seu Laerte a tratou, armando-se de sua típica arrogância. “Assim como vocês, eles passaram muito tempo
procurando também. Até que nossa chefe, a pessoa que nos enviou até aqui, que é
amiga dos pais da Rita, conseguiu reunir um considerável grupo de pessoas que
passaram a incentivar pesquisas científicas a respeito das teorias dos
múltiplos universos. Pra resumir a história, os pais verdadeiros de Rita Lina
passaram todos esses anos alimentando a esperança de que a viagem entre
realidades paralelas pudesse trazer pistas concretas sobre o paradeiro da filha
deles. Num salto de fé e desespero, eles se agarraram à chance mais improvável
de achar a filha deles, que, por coincidência ou não, também havia sido
provavelmente sequestrada. E nos últimos tempos, meu colega e eu fomos
recrutados para sair à caça da filhinha querida deles. E depois de muita
pesquisa e investigação, aqui estamos nós. E a nossa chefe é tão gente boa que
nos proibiu de usar recursos mais... convincentes, senão nem estaríamos tendo
esse papinho civilizado com vocês. Mas ela nos obrigou a fazer tudo dentro dos
parâmetros mais diplomáticos possíveis, só que vocês não querem colaborar”.
Olho bem sério para ela, mas a infeliz
não esboça qualquer intenção de se desculpar por sua sinceridade tão brutal.
“Que história é essa de realidade paralela?”, pergunta Seu Laerte,
com receio.
“É como se fosse tudo igual à realidade que estamos acostumados, mas
que pode ter diferenças significativas”, explana Pedro. “E uma prova de que a Rita vem da mesma
realidade que Olívia e eu está diante de nós: a Rita só está dormindo porque a
Olívia fez isso com ela. Mas essa habilidade da Olívia só tem efeito em pessoas
do ‘nosso mundo’ ou em crianças”.
“É verdade”, confirma a megera. “E,
Denner, megera é a sua avó, tá? Mas enfim, se eu pudesse colocar todos vocês
para dormir agora, faria com todo o prazer, e aproveitaria pra fugir, já que
toda a conversa que nos comprometemos a ter já aconteceu”.
“Se a Rita é de outra realidade, como ela veio parar aqui na nossa
realidade?”, pergunta dona Túlia. “Essa
baboseira toda não faz o menor sentido”.
Pedro e Olívia se entreolham,
porque essa resposta eles não têm.
“Infelizmente não sabemos ainda”, lamenta-se o careca. “Mas temos algumas teorias. Talvez ela tenha
encontrado algum portal ou alguma passagem sem querer. Talvez tenha sido
trazida ou escondida aqui, não sabemos. Porém, isso não importa. Nós a
encontramos e temos como levá-la de volta, então a forma como veio parar aqui
não faz diferença no fim das contas. E então, dona Túlia? Seu Laerte? Podemos
continuar e cumprir nossa missão?”
Seu Laerte pede licença da
esposa, levanta-se com jeitinho e vai andando em direção a algum cômodo da
casa.
Pedro e Olívia encaram dona
Túlia, que encara de volta como quem está determinada a não devolver Rita para
ninguém.
“Sumam da minha casa agora, vocês dois! Rápido!”, Seu Laerte
retorna, segurando uma bela de uma espingarda apontada em direção aos dois
patifes.
“Ei, ei, ei! Calma aí, Seu Laerte!”, Pedro se assusta e o medo se
alastra imediatamente pelo seu rosto branquelo.
“Mas o que é isso? Esse homem é louco!”, grita Olívia, apalpando-se
em busca de uma arma, mas bufa de ódio logo em seguida por ter cumprido a
obrigação de vir desarmada pro encontro.
“O senhor não atiraria em nós”, diz Pedro, quase suplicando.
Nem bem ele termina de falar, uma
bala passa a alguns centímetros de sua careca. Dá até pra ver uma fumacinha
acima da cabeça dele. Achei que ele fosse desmaiar aqui mesmo. Eu estou
assustado também, é claro, e delicadamente vou me afastando, embora eu saiba
que o meu sogro não atiraria em mim, já que eu não fiz nada. A não ser, é
claro, trazer esses dois aqui.
“Não se preocupe, Denner”, meu sogro me tranquiliza. “Você não fez por mal. Só que essas pessoas
vão sumir da minha casa e vão de mãos vazias. Vão embora! Xô!”
Olívia olha para Pedro. Ele só
faz dar de ombros, não tem a menor ideia do que fazer para remediar sua
situação. Olívia grunhe de ódio, cerra os punhos e marcha relutante e
enfurecida até a porta. Feito um cachorrinho amedrontado, Pedro segue atrás
dela.
Seu Laerte se aproxima da porta,
mantendo a espingarda firme nos braços, e só a abaixa depois de ver o carro
deles se distanciando bastante.
“Você foi maravilhoso, meu amor”, dona Túlia vibra.
“Obrigado, meu amor!”, diz ele, limpando o suor da testa e tentando
ajeitar o topete.
“Eu tô preocupado”, confesso. “Eles
são perigosos. Precisamos ter muito cuidado depois dessa”.
“A gente vai pensar em alguma coisa”, dona Túlia fala com uma voz
reconfortante, acariciando os cabelos da filha, que dorme profunda e
lindamente, como o anjo mais belo e a bênção mais magnífica na vida dos três
acordados aqui.
(Mais tarde, no apartamento 815
no Hotel Oceânico...)
Pedro está tenso, segurando há
vários minutos um copo que continha água e olhando para o monitor da televisão
na sala.
Olívia continua arfando de raiva,
também fitando o monitor da TV.
“Eu quase me borrei todo quando ele apareceu com aquela esping...”
“Cala a boca”.
“Grossa!”, reclama ele, levando o copo à boca e só depois
percebendo que estava vazio.
“Eu tô cansada dessa missão idiota. Assim que ela aparecer, vou pedir
demissão. Eu podia estar fazendo outras coisas, mas tô aqui procurando filho
perdido dos outros. Que merda! Que merda!”
“Isso se ela não te demitir sem você pedir, né, querida? A gente
fracassou bonito”.
“Aquele paspalho do Denner deve estar rindo da gente”.
“O Denner não é problema, eu te garanto. Ele é um bom rapaz”.
“É, você deve estar a fim dele”.
“Sua visão sobre as pessoas como eu é tão rasa, Olívia. Mas eu tenho
classe demais pra perder meu tempo discutindo por causa disso”.
O monitor liga de repente.
Através de um aparelho que eles trouxeram “lá do outro lado” e foi acoplado à
TV comum deste lado, é possível fazer videoconferências com a chefe.
Uma mulher bonita de cabelos
muito escuros, mas que não chegam a ser pretos, de olhos castanho-claros, enrolada
num roupão de banho azul-marinho, surge na tela. Ela deve estar na casa dos 50
anos.
“Pedro! Olívia! O que houve? Eu vi a mensagem de vocês pra fazer uma
videoconferência de urgência. Aconteceu algum problema?”
Um olha para o outro sem saber
quem deve falar primeiro.
“Vão ficar aí mudos? Sério, eu mal saí do banho e já vim logo falar com
vocês porque fiquei preocupada”.
“Senhora, aconteceu um problema sim”, inicia Pedro, já que toda a
coragem de Olívia parece ter se esvaído. “Quando
estávamos na etapa final para resgatar a Rita Lina, aconteceram alguns... é...
contratempos, digamos assim. E a Olívia está pensando seriamente em desistir”.
“Desistir?”, a mulher do outro lado da tela demonstra decepção. “Mas que contratempos foram esses?”
“O homem que está fazendo o papel de pai da Rita nos ameaçou com uma
espingarda, senhora. Ele nos botou pra fora da casa dele”.
“Senhora”, Olívia volta a ter coragem, mas com uma ponta de
hesitação, “só preciso de uma simples
autorização para usar recursos que podem fazê-los mudar de ideia rapidinho.
Basta um ‘sim’ seu, para a missão ser cumprida com eficiência”.
A mulher faz um muxoxo de
discordância. E replica:
“Desculpa, Olívia, mas eu já disse que não aprovo esses métodos. Só
peço que vocês aguardem enquanto eu penso em outra coisa e volto a entrar em
contato em dois ou três dias”.
“Então estou fora, senhora”, cospe Olívia. “Com todo o respeito, mas eu estou fora. Desculpe a franqueza, mas eu
não quero mais passar um dia sequer lidando com essa missão”.
“É sério?”, a mulher, estranhamente, não está tão surpresa.
“O homem atirou em nós”, especifica Pedro. “Não pra matar, mas estávamos desarmados. A senhora deixou bem claro
que nós não podíamos usar de violência contra ninguém, mas em compensação
estamos arriscando nossas vidas”.
Agora eles conseguiram deixar a
mulher deveras pensativa, e completamente transtornada por não saber que
instruções lhes dar a partir deste instante. Contudo, abortar a missão está
fora de consideração.
“Vou pedir uma coisa pra vocês, mas quero me escutem com muito carinho,
por favor”, anuncia ela.
Olívia e Pedro estão atentos.
“Descansem nos próximos dois ou três dias, e eu vou pensar em alguma
coisa pra resolver essa situação. Vocês estão muito estressados. Quero que usem
essa folga sem se preocupar com nada. Apenas descansem, tudo bem?”
Pedro respira fundo, reflete por
um momento e assente.
Olívia reluta um pouco, mas
também concorda.
“Obrigada!”, diz a mulher na outra realidade. “Bom, então acho que é isso, certo?”
“Senhora Fabiana!”, Olívia ainda tem algo a acrescentar.
“Diga”.
“Eu achei que talvez a senhora fosse gostar de saber que hoje eu vi a
sua filha Milena. Ela está aqui”.
“O quê?”, pergunta a chefe, um tanto atordoada e quase sem voz. Ela
não estava preparada para escutar tal coisa. “Olívia, você tem certeza?”
“Com a mesma certeza que eu sei que eu estou olhando agora pra
senhora”.
Os lábios de Fabiana Kerber aos
poucos vão formando um sorriso vívido, ao passo que os olhos vão ficando
marejados. Esta informação é tão impactante que em poucos segundos ela começa a
chorar, sentindo o peito ser atravessado por esse sentimento sufocantemente bom
de saber a respeito de sua filha. Após tantos anos procurando e os resultados
sempre desoladores, sua esperança foi espatifada. No entanto, com o ímpeto que
só as boas surpresas podem trazer, finalmente ela encontrou um universo em que
sua filha tão amada está viva. Milena está viva!
Então, como alguém que se depara
com o sol dando as caras após longos dias de intensa chuva, Fabi vislumbra
planos outrora esquecidos e que podem voltar a ser traçados. Seu coração está
reanimado novamente.
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