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31 de outubro de 2015

DESAPAIXONANTE -- EPISÓDIO 2x08: TUDO É TEMPORÁRIO



(Narrado por Milena)


A coisa não tá fácil aqui no escritório da ANNA. Nossa querida secretária descobriu um problema de saúde e o médico foi taxativo: ela precisa ficar em casa por, pelo menos, um mês. Tadinha da Madonna! Agora temos que nos virar entre cuidar dos casos e fazer os trabalhos que a nossa fiel escudeira teria de fazer. No meio de tudo isso, Sávio e eu concluímos que é interessante encontrar alguém para substituí-la durante esse período.
Entre análises de candidatos para a vaga e essa coisa toda, estou ocupada com o caso da vez. Minha cliente se chama Geórgia Lamarão. Ela só tem vinte e três anos, mas aparenta muito mais. Não que pareça mais velha num sentido pejorativo. O fato é que ela é muito despachada, exala uma maturidade incrível, meio que se parece comigo no que tange à falta de papas na língua, com aquela honestidade ferina, sabe? Ah, e o ponto que mais chama atenção de cara: ela é uma negra bastante exuberante, deve ter mais de um metro e setenta, é cantora e faz bicos como modelo plus size e tem um cabelo black lindo de morrer. Confesso que me sinto diminuta perto de uma mulher desse porte, e a única coisa maior do que Geórgia é sua autoconfiança. Inveja? Não pouca.
“Mas por que você quer se desapaixonar, Geórgia?”, eu a indago, não enxergando até então problema algum em uma mulher como esta se entregar aos desvarios do amor.
“Ah, querida, eu estou ocupadérrima me amando, entende? Eu tô numa fase maravilhosa na minha vida, mas no momento não é pra ser dividida com ninguém. Não que eu queira ser egoísta, mas eu já tive paixões e decepções demais pra não aproveitar a vida apenas comigo mesma, entendeu, gata?”
“Tô entendendo”, digo, sem um pingo de preocupação se estou olhando para ela como uma verdadeira fã.
“Pois é, querida, mas o problema é esse filho da mãe do Hamilton. O cara é uma gracinha, mas é uma cilada na minha vida. E eu falo isso porque já me envolvi com homens do naipe dele, tá compreendendo? É o tipo que não vale nada, mas vale tudo, se é que você me entende. E eu tô apaixonada, amiga. Mas tá errado. Quero meu coração livre e leve. Não tô nem um pouco a fim de começar um relacionamento, porque logo aparecem as regras, as cobranças e eu não tô com paciência pra isso. Pelo menos não agora. Minha carreira tá linda, tô numa fase tão boa, tudo tá rolando do jeito que eu sempre sonhei. Não é justo um homem como Hamilton tomar isso de mim”.
Gente, para tudo!! Ela me chamou de amiga? Sim, sim, eu reconheço que é apenas jeito de falar. Aliás, coisa que ela faz bem até demais. Ainda bem que ela tem carisma. Inclusive, é o tipo de atributo que lhe compensa, pois Geórgia não é exatamente bonita de rosto. E ela sabe, assim como eu, que beleza facial não precisa significar tanto quando se tem qualidades bem mais consideráveis.
“Você acha mesmo que não tem como manter um relacionamento com esse Hamilton e, mesmo assim, se impor?”, eu pergunto, na típica missão de sondar o cliente antes que ele tome a decisão importante de pagar pelo serviço.
“Ai, eu acho. O que eu não quero é que alguém fique me enchendo o saco, entende? Namorar é legal, é gostoso, mas quem sabe outro dia, outro mês. Imagina, eu tenho uns ensaios belíssimos pra fazer, campanhas e mais campanhas, viagens para eventos de moda... Preciso da minha liberdade e não abro mão. Pode me dar o contrato pra assinar, meu amor”.
“Calma, antes do contrato tem o formulário. Vou pegar”.
Ela arrebita o nariz, mas eu vejo que não é um sinal de arrogância, é só charme. Isso sinaliza que ela está aguardando os procedimentos que a empresa precisa seguir, inabalavelmente convicta do que veio fazer aqui. Geórgia sabe que é difícil estar na posição que ela se encontra: mulher, negra e gorda. Entretanto, com o crescimento do movimento feminista, da autoafirmação das gordinhas e das lutas contra o preconceito racial, pode-se dizer que está um pouco mais fácil do que antes. E ela se comporta como uma diva, alguém que defende suas opiniões de modo muito firme. Será que ela ministra workshops para outras gorduchas que deveriam estar mais bem-resolvidas com o peso e sua própria feminilidade? Não que eu esteja necessitada, mas informações úteis nunca são demais...
Contrato fechado. Geórgia se despede no maior glamour, enquanto eu mal tenho tempo de admirá-la, pois o telefone da recepção começa a tocar. Preciso encontrar a substituta de Madonna o mais rápido possível.
“Agência do Negócio Nada Apaixonante, Milena, bom-dia!”
“Já tomou café, meu bem?”
E a voz dele me derrete como manteiga no asfalto. Ou como barra de chocolate no deserto do Saara. É, minha gente, a paixão nos faz cair nas armadilhas dos exemplinhos toscos para descrever o que estamos sentindo. Que piegas!
Respondo que sim, pois eu tenho uma Amélia muito eficaz em casa que atende pelo nome de Dana, a “boadrasta”, cujos cafés e outros quitutes matinais não falham. Mas saber que ele se importa tanto comigo é igualmente tocante. Ivan e eu ainda não oficializamos algum namoro, porém um sabe muito bem o quanto arde no outro o desejo de levar a relação mais adiante.
“Por que você não me ligou no celular?”
“E estragar a surpresa me entregando no identificador? Achei muito mais emocionante ligar pro telefone fixo aí da agência. Sempre adorei relacionamentos com essa pegada à moda antiga”, ele se justifica e finaliza com uma risada.
“Emocionante, é? Ah, não exagera, você tá se achando muito”.
“Em compensação eu me perdi em você”.
“Hum”, resmungo, no fundo estou que nem uma idiota por dentro, deliciada com essas fofuras, Vejam só! Parece que alguém terminou o curso de Paquera Avançada com o Professor Girafales”.
“Hahahahaha, nossa! Nem eu falo ‘paquera’, Milena”.
“Ah, que se dane!”, gargalho e isso me deixa entregue de bandeja e com uma maçã na boca.
“Bom, já que não deu pra rolar um café-da-manhã, que tal um piquenique?”
“Piquenique?!”, eu penso. Não soa romântico demais? Não soa cor-de-rosa demais? Não soa estupendamente bonito demais? Unicórnios flutuam no meu cérebro vulnerável.
“Olha, Ivan, eu não sei. Vou entrar num caso novo e... Não sei mesmo. Quando você gostaria?”
“Não sei, eu realmente tava esperando você me dar uma noção, já que você não tem um horário específico de trabalho. Mas vamos fazer assim: quando estiver livre para um piquenique num fim de tarde, me avise. Sua única parte vai ser essa. O resto é comigo”.
“Certo...”, eu sei que estou soando desconfiada agora. “Mas e o lugar?”
“Acabei de dizer, meu bem. O resto é comigo”.
“O resto é comigo” deve significar “eu vou te surpreender de novo”. Esse homem não existe.
“Te mando mensagem mais tarde, pode ser?”
“Claro, Ivan. Até mais tarde então. Beijo!”
“Beijo!”
A diferença entre Ivan e Enzo é que, apesar de Enzo ter sido um ótimo namorado, tudo nele era muito previsível e perfeito demais. Com o Ivan eu me sinto sempre em expectativa, ele não força as coisas, ele me dá espaço, tempo, respeita meus limites e, o mais legal de tudo: eu ainda o estou decifrando. Como um livro que possui boas surpresas a cada página, que te instiga a prosseguir.
“Bom-dia!”, alguém fala comigo, ao mesmo tempo em que volto para o mundo real.
Uma moça baixa, de cabelos lisos pretos escorridos até os ombros, com franja, olhos graúdos e uma boca ligeiramente aberta me encara. Ela usa um par de botas marrom bem esquisitinho. A mão esquerda segura uma pasta e a direita, um jornal.
“Bom-dia. O que você deseja?”, pergunto, interessada.
“Eu vim pelo anúncio de emprego”, ela ergue o jornal na minha frente, apontando um pequeno texto circulado com um marcador azul. E completa: “Meu nome é Rita Lina”.


O cara se chama Hamilton Avelar. A conta do Instagram dele (@hamiltomatecomgracinha) é bem divertida, porque ele faz o que vários usuários fazem (posta fotos de comida), mas de uma maneira interessante (ele coloca frases em pequenos pedaços de papel ao lado das comidas, geralmente bem-humorados). Por exemplo: um papel ao lado de um prato de sopa diz: “Vcs viram o Hamilton por aí? Avisem que eu tô dando sopa hoje”. Outro papel, encostado num prato que tem uma fatia de bolo, tem escrito o seguinte: “Cadê o Hamilton pra me dar cobertura? Espero que ele não me dê bolo”. Meio patético e babaca, mas um patético e babaca do bem. Eu até ri. Tem gente que curte esse tipo de trocadilho. Deve ser por isso que Geórgia gosta dele, afinal, gordinhas que não são neuradas com o peso também não tem problema nenhum em assumir seu interesse por comida, sem qualquer medo de serem taxadas por isso. E um Instagram que brinca com comida merece ser apreciado pela diversão (mesmo duvidosa) que oferece.
Próxima rede social: Twitter. Repleto de erros ortográficos, além de apenas um punhado de tweets banais, que citam o que realmente ele esteve fazendo, fez ou fará. Nada interessante. A não ser que você se empolgue com um sujeito que vê graça em rinhas de galos, por exemplo, o que pessoalmente eu considero de uma estupidez enorme. Acho completamente imbecil a pessoa que tem como entretenimento animais em situações de violência.  
Os erros gramaticais certamente não vão desapaixonar Geórgia, porque ela também deixa um pouco a desejar nesse quesito. A apreciação por brigas de galos pode ter algum potencial. E, honestamente, Sr. Arroba Hamiltomatecomgracinha, eu espero que surta efeito, porque o senhor não merece uma mulher do quilate de Geórgia Lamarão.
Hamilton também está no Facebook. Nenhuma grande coisa. Fotos de festas com a família, amigos e... Geórgia. Há pelo menos uma dúzia de imagens em que eles aparecem juntos. Com direito à marcação na foto, e legenda brega e romântica: “O amor não se explica, se vive”. Amor? Bom, pelo menos não há registro de que eles estejam num relacionamento sério. Deduzo que isso é coisa da Geórgia, que não quer se vincular mais seriamente, para não deixar que algum comprometimento emocional “estrague tudo”, como ela deixou a entender que seria se embarcasse numa relação com Hamilton. Mas, no fim das contas, o que eles têm?
Estou exausta de xeretar na Internet. Saio da sala e encontro a nova secretária numa situação curiosa. Ela está com os olhos fechados, murmurando palavras que eu não consigo identificar, com uma das mãos na cabeça e a outra estendida para o alto. Se ela fosse um ser humano normal, eu diria que está orando (e como saber se não está?).
Não sei o que deu em mim para contratar essa moça. Durante a entrevista, li no currículo dela que ela fala inglês mediano, espanhol regular e um tal de Valpixiano extra-fluente, o que, confesso, jamais sonhei que existisse em termos de habilidades linguísticas.
“Desculpa, mas o que é Valpixiano?”, indaguei na ocasião.
“É a língua oficial do planeta Valpixia”.
“Essa não”, pensei, “outra nerd do estilo do Kellison, aquele amigo do Sávio, só que essa parece um pouquinho mais pancada”.  Tantas línguas no mundo e essa galera insiste em aprender essas patacoadas que a mídia inventa... Minha primeira reação foi querer mandá-la sumir da minha vista depressinha.
Mas, curiosa e teimosa como sou, resolvi dar uma chance, o que significava um risco para a minha paciência pouco dada a essas coisas:
“Ah, esse Valpixiano é tipo Klingon, do Star Trek?”, arrisquei, para aparentar que eu não estou tão alheia ao mundo geek.
“Klingon?”, ela quase deu um pulo da cadeira, como quem acabara de ouvir um xingamento. “Klingon é para amadores. A sintaxe do Valpixiano é muito mais complexa e refinada. A não ser que você fale um Valpixiano mais crioulo, o que não é necessariamente mais fácil que Alto Valpixiano. Mas, mesmo assim, até o crioulo ainda é mais complexo que o Klingon. Nossos verbos irregulares são irregulares mesmo”.
“Obrigada por explicar”, esforcei-me para ser gentil, mas de um modo a encerrar o assunto, pois não tava a fim de uma aula de Valpixiano. “Me diga uma coisa, Rita, então você estudou no Santo Cristo? Caramba, que legal! E na mesma época que eu. Em que turno você estudava?”
“À tarde”.
“Eu também. Mas não me lembro de você”.
“Eu só estudei dois anos lá, tinha poucos amigos. Sem falar da época que eu fui abduzida, nesse período perdi um monte de aulas. Mas, fazer o quê? Quando os Valpixianos te escolhem, já era”.
“Hum...”
Eu só conseguia pensar na urgência que eu tinha para arranjar uma secretária nova e mal me sobrou tempo para avaliar criticamente o que eu tinha diante de mim. Num mundo onde as coisas funcionassem corretamente, essa maluca já teria perdido a vaga. Mas não, esse é o mundo de Milena.
“Rita, você sabe atender telefone, fazer café, usar um computador?”
“Sim, claro”.
“E você sabe que esse emprego é apenas temporário, né?”
“Tudo é temporário”.
“Vou fazer um contrato e você já pode começar amanhã mesmo”.
Ela sorriu, pronunciou alguma coisa estranha (provavelmente “graças a Deus” em Valpixiano, ou “graças ao que quer que seja” que os lunáticos que já passaram uma temporada em Valpixia acreditem).
De volta ao presente, aviso Rita de que estou saindo e não sei a que horas volto. Ela abre os olhos como quem acorda repentinamente de um sono. Balança a cabeça assentindo que entendeu a mensagem e se recompõe do flagra que eu acabei de lhe dar. Não quero explicações, pra ser honesta.


Tenho um encontro marcado com Geórgia. Obviamente, havia sugerido nos encontrarmos na agência, mas ela praticamente insistiu que eu deveria conhecer o estúdio fotográfico de um amigo dela, onde rolaria uma sessão de fotos. Chego e sou convidada a ir para o estúdio propriamente dito, ou seja, a sala onde as modelos estão sendo fotografadas. Entro um tanto acanhada, já me sentindo um peixe fora d’água por estar rodeada de pessoas de uma área distinta da minha, além das garotas circulando de um lado para outro, ansiosas, maquiadas, acertando cabelo, roupa, reclamando disso e daquilo, todas muito bonitas em seus corpanzis portadores de uma invejável autoaceitação. E tem de todos os tipos: altas, baixas, loiras, morenas, umas mais encorpadas, outras menos.
Uma magrela de trança e usando uma blusa regata para diante de mim, intrigada. Não deixo de notar a ironia, pois só há rechonchudas por aqui. Então ela abre a boca e diz:
“Você é nova aqui?”
“Ah! Não, não, eu não sou modelo”.
O olhar dela fica incrédulo, mas depois ela se toca do desentendimento, desculpa-se e se volta para um cara da equipe. Já devo me sentir elogiada por ser confundida com uma modelo? Ou devo ficar preocupada que o meu peso já pareça ideal para figurar entre as meninas plus size? Do jeito que elas estão tão alegrinhas, estou vendo que preocupação seria tolice da minha parte.
Aceno para Geórgia, que me devolve um gesto que eu interpreto como que me tranquilizando porque provavelmente não vai demorar a ir falar comigo. Geórgia está destruidora! Ela está vestindo um conjunto preto de couro, beeem colado ao corpo, com um generoso decote. Ela e as outras modelos parecem estar participando de mais uma dessas campanhas em prol da beleza tamanho G (acabei de inventar o termo... ou não). Acho válido. A maioria das gordinhas que eu conheço tem rostos lindos, e em geral tem o humor melhor que o das outras mulheres mais esbeltas. Eu, por exemplo, se fosse homem, preferiria ter uma fofinha macia para apertar as carnes.
Fim da sessão. Segundo o que eu ouço, a mulherada está faminta. Ao que um membro da equipe fotográfica rapidamente as tranquiliza, respondendo que o lanche está sendo servido. Devo confessar que estou dando graças a Deus por ter vindo na hora certa.
“Oi, fofa! Bora comer?”, Geórgia me cumprimenta e me convida para o lanche.
“Oi, Geórgia. Olha, dessa vez eu vou aceitar”, respondo, sonsa da Silva, pois raramente recuso comida.
Percebo vários olhares para minha cliente. Mas não olhares interesseiros. São mais como os meus, ou seja, admiração, fascínio, curiosidade. Geórgia tem um magnetismo natural. Ela é apaixonante, e isso vai além do conceito físico-sexual. Até eu me sinto apaixonada por essa mulher. Desnecessário explicar que não se trata de atração amorosa, mas ela me traz, de alguma forma, inspiração sobre como agir na vida. Desde a primeira vez em que conversamos.
Sim, eu sei que alguém poderia contestar minha afirmação, já que eu sou convicta de que todo ser humano pode ser desapaixonante, e definitivamente acredito que Geórgia também seja. No entanto, ela é rara. Seu talento para desapaixonar alguém deve estar camuflado. E não é pecado não descobrir onde ele está.


“E aí, descobriu alguma coisa sobre o bofe?”, inicia Geórgia, beliscando uma coxinha.
“Ah... É, eu acho que tem uma coisinha...”, estou meio perdida nas palavras, abobalhada pela ironia existente entre as modelos plus size e as modelos comuns, as magriças. Enquanto as fininhas precisam se submeter a uma dieta mais rigorosa e são famosas por serem exímias engolidoras de salada e afins, as cheinhas não se fazem de rogadas diante de um rango mais pesado. Talvez não exagerem, mas também não se resguardam do prazer. Estou só adorando tudo isso. E beliscando uma coxinha também.
“Acha?”, inquire Geórgia, e nesta pergunta com uma só palavra dá pra sacar que ela está procurando entender por que eu estou aqui, já que eu só “acho que tem uma coisinha”. Então me explico:
“Geórgia, eu acredito que haja um motivo pra você se desapaixonar do Hamilton. Eu fiz uma investigação preliminar, mas me parece que isso que eu vou alegar agora já é uma boa razão”.
“Pode mandar, meu bem!”
Eu mando mesmo (o que quer que eu esteja dizendo com isso), com direito a envelopinho pardo com fotos. Imprimi tudo antes de sair da sede da ANNA.
Geórgia abre o envelope, assustada. Fica claro que ela nunca passou por tal situação. Ok, não vamos transformar isso na coisa mais comum do mundo.
“Gente, eu tô nervosa agora. O que será que tem aqui?”
“Fotos”, eu estrago a surpresa. Ah, qual é? Dá pra sentir que são fotos, pela consistência do envelope. O que tem nas fotos é que pode surpreender.
Geórgia olha a primeira. Não está esboçando nenhuma reação. Olha a próxima. Nada. Examina a terceira, a quarta. E, por fim, a quinta. Se ela está segurando a revolta que as fotos lhe causam, mais uma vez está provando por que é uma verdadeira diva, pois nunca vi um cliente parecer tão frio diante de algo tão estarrecedor e desconcertante.
“Era pra eu entender alguma coisa só olhando as fotos, Milena?”
“Como assim?”
“Ora, assim assim, ué! O que essas fotos significam?”
“Que o Hamilton é um estúpido!”, eu respondo como alguém que aponta a obviedade das obviedades. “Nessas fotos ele está conivente com maus tratos aos animais. Coitados dos galos, Geórgia! E na última foto ele e uns amigos que tem umas tremendas caras de cachaceiros estão promovendo uma briga entre gatos. Entre gatos! Dá pra ser mais asqueroso que isso? Uma pessoa que curte ver animais brigando tem sérios problemas psicológicos, viu?”
“A gente pode ir lá fora? Tô doida pra acender um cigarro”.
Oi? Cigarro? Mas, Geórgia, isso não combina com a veneração que eu construí por você, moça...
“Hã... Claro...”
Quando saímos do estúdio fotográfico e vamos para a calçada em frente ao estabelecimento, Geórgia calmamente apanha um cigarro na bolsa e o acende. Ela é tão nem-aí que ainda está usando a roupa do ensaio, e surpreendentemente não dá muita trela para os olhares gulosos que lhe são lançados na rua. Tá, ela pode continuar sendo maravilhosa e lacradora, mas tô de boca torta com esse cigarrinho. Não curto.
“Aqueles caras que parecem cachaceiros, nas fotos”, finalmente ela começa a explicar, “são meus tios e primos. Geralmente essas reuniões que tem rinhas de galos e brigas de gatos são na casa de um tio meu. Eu não estou nas fotos, mas geralmente sempre vou a essas reuniões”.
“Você?”
“Sim, meu amor. Por isso que eu não vi nada demais. Eu me divirto pra caramba. Coitado dos galinhos, mas enfim, né?”
“Enfim?!”
Se você já foi uma criança sentada na areia da praia, construindo pacientemente um castelo de areia por vários minutos ou até horas, só para alguma onda (ou algum imbecil) acabar por destruir seu delicado empreendimento, certamente pode entender o que estou vivendo agora. Nunca fui uma criança como a que acabei de descrever, mas compartilho da dor. A frustração emerge à medida que o castelo desaba.
“Geórgia, você tá me dizendo que você SABIA dessas barbaridades?”
“Sim. E não é pra tanto, linda. Barbaridades. Que exagero! Tá certo que não é algo muito legal, mas todo mundo faz coisas assim, né?”
“Não, senhora. Gatos e galos nunca serviram para o meu prazer”, eu solto esta pérola dúbia, da qual me arrependo no ato. Mas dane-se! Minha revolta e minha desilusão aumentam cada vez que Geórgia tenta se justificar. O que aconteceu com essa mulher, que há segundos começava a se firmar como um espelho para mim?
“Ah, tanto faz, bebê. Só sei que esse material que você conseguiu não é suficiente. Você vai ter que continuar tentando. Que pena, linda!”
Não adianta me chamar de “fofa”, “querida”, “linda”, mesmo por que essas palavras são meros vocativos no linguajar de Geórgia.
“Quer saber, Geórgia? Vamos cancelar o contrato!”
“O quê?!?!”
E ela começa a tossir, aturdida com o que acaba de ouvir de mim. Uma pena que não seja por causa do cigarro.
“Eu pensei que... Eu pensei que você defendesse a causa dos animais, sei lá. Ou que pelo menos ficasse horrorizada com certas coisas que fazem contra eles. Como eu, sabe?”
“Bom, eu... Eu não sei, nunca parei pra pensar nisso. Eu acho feio quem maltrata animais, mas nunca liguei tanto, eu acho. Por que você tá tão chateada por causa disso?”
“Eu não quero mais trabalhar pra você, Geórgia. Dê você mesmo o seu jeito de se desapaixonar pelo Hamilton.”
“Queridinha, você endoidou? Eu estou pagando!”
“Tecnicamente, você ainda não pagou. Então nem precisa pagar, ok?”
Respiro fundo, meio tonta por ver que caiu a minha ficha. Por algum motivo, eu fiz uma associação equivocada do fato de Geórgia ser uma mulher bem-resolvida e tranquila com sua aparência e que ela poderia ser defensora de outras causas igualmente nobres. Um balaio maluco e irresponsável que se formou na minha mente. Truques da paixão. Mesmo as não-amorosas.
“Como você pôde fazer isso comigo?”, pareço clamar.
Viro as costas completamente decidida a partir. Pouco me importa se minha última frase saiu esquisita no calor do momento, e que Geórgia não esteja entendendo patavinas do que eu quis dizer com aquilo. Estou me sentindo lesada, lograda. Agora consigo ter um panorama real dos sentimentos dos meus clientes ao se deparar com uma pessoa que se revela desapaixonante.


O piquenique vai ser em algum lugar misterioso. Dois dias se passaram após a decepção com Geórgia Lamarão, e Ivan está prestes a cumprir sua promessa. Cheio das invencionices como só ele quer ser, ele me fez pôr uma venda, só para garantir que eu seja realmente surpreendida quando chegarmos.
“Prontinho, meu bem. Aqui estamos nós. Agora eu vou te ajudar a tirar a venda”.
Estou sorrindo, sentindo raios de sol pousando gentilmente sobre minhas bochechas. Tiro a venda. E uma paz me invade.
“Meu Deus, Ivan! Que lugar lindo!
“Já tinha vindo aqui?”
“Umas duas vezes só, durante a vida toda”.
“Gostou?”
“Se eu gostei?! Pôxa, eu não sabia que você ia caprichar tanto, droga!”
Estamos no Cais da Esperança, que fica a mais ou menos meia hora de carro do centro da cidade. Na verdade estamos numa parte mais afastada das docas, que são a parte mais agitada. Ivan me trouxe para um trapichezinho que se estira ao longo do rio. E lá em cima o sol já começa a dar sinais de despedida. Ivan, seu travesso! Me trouxe para um piquenique com direito a assistir ao pôr-do-sol.
A gente se senta na borda do trapiche, com os petiscos por perto. O vento aqui é bem generoso, mas hoje está calmo. O sol se põe e eu estou mastigando um pedaço de torrada com requeijão light. Em termos de fome, eu toparia encarar um negócio mais “sério”, mas o que está valendo de verdade é a companhia, o momento. É tão romântico. Mas, de algum modo, sei que não foi essa a intenção de Ivan quando ele resolveu que me traria aqui. Ele demonstra gostar muito do lugar. E, provavelmente, também não gostaria de pisar aqui desacompanhado. Sorte a minha de ser aquela que está na jogada.
“Esse lugar é mágico, não acha?”, ele indaga, e eu acho tão fofa essa pieguice.
“É verdade. É bem mágico”, eu repito a palavra mais brega que ele falou, só para ter a sensação da pieguice que ele experimentou. Mas tudo que sinto é uma repulsinha pelo clima estar ficando açucarado demais. Todavia, suportável. E aprazível, bem aprazível.
“Você tá meio aérea, Milena”.
“É...”
“Algum problema? Posso tentar te ajudar?”
“Não. Quer dizer, não sei se é um problema. Eu tô aqui curtindo esse piquenique com você. E é tão legal, sabe. Aposto que a noite aqui deve ser maravilhosa também”.
“Ah, pode ter certeza que é”.
“Você sempre vem aqui?”
“Não sempre. Mas já estive aqui uma noite. E o céu tava cheio de estrelas nessa vez. Fiquei um bom tempo em silêncio, só aproveitando. De vez em quando é bom fugir um pouco da loucura da cidade”.
“Pôxa. Agora me deu até vontade de passar uma noite aqui”.
“Você já pensou que essa noite poderia ser... hoje?”
Olho para ele atenciosamente. É uma proposta? Pois eu aceito.
“Essa noite vai ser hoje”, arremato.
Um pouco mais de silêncio depois, Ivan pergunta:
“Você não explicou exatamente qual é o seu problema. A não ser que o problema seja estar aqui, comigo”.
“Você não faz parte do problema, Ivan. Você faz parte da solução. Então pode parar com essa frescura, você sabe que eu gosto de estar com você”.
Ele apenas sorri, com as mãos espalmadas. Eu continuo:
“É o Sávio. Ele me pediu ajuda com uma coisa. E eu tô meio perdida sem saber como vou fazer, já que eu prometi que ia ajudar”.
“Sávio, o seu sócio?”
“Sim”.
“E o que ele te pediu?”
“Ele quer se desapaixonar da eterna ex-namorada-amor-da-vida-dele, a Anna. A mesma que deu o nome da nossa agência e blá, blá, blá... Enfim, você conhece a história. Ele admitiu que ainda não se esqueceu dela. E quer que eu faça meu serviço nele de novo”.
“Hum... E isso tá te deixando incomodada? Por que isso te deixa assim? Parece que você se importa demais com isso”.
“O pior, Ivan, é que eu me importo. Sei lá, é como se fosse uma questão de honra pra mim. É como se eu tivesse fracassado na primeira vez e agora tivesse a chance de acertar”.
“Eu, hein! Sério? Parece exagerado. Sem ofensa”.
Quero perguntar a Ivan por que ele considera exagerado. Mas meu coração, instantaneamente, me mostra o porquê. Eu deveria ficar calma, relaxar, agir com temperança, porque a presença de Anna não é um bicho-de-sete-cabeças. E eu sempre confiei no meu taco. O que me mata é esse medo da falha. Não abri uma agência para ajudar as pessoas a se desapaixonarem e isso ter falhas. Senão, nem teria começado. Para ter uma clientela que confie em nós, primeiramente eu tenho de confiar.
“Sabe, Milena”, Ivan toca minhas mãos, acariciando-as docemente, “acho que está na hora de você reavaliar essa promessa que fez ao Sávio. Será que é mesmo tão importante ele se desapaixonar dessa tal de Anna? Pois até agora eu não entendi qual é o problema dele gostar dela. Sabe, será que não seria melhor ele ter uma nova experiência com essa garota? Ao invés dele ficar fugindo dela, por que ele não tenta de novo? Por que ele não dá uma chance ao amor? Não estou querendo me meter no tipo de negócio que você faz, mas acho que o Sávio deveria ter um pouco mais de maturidade. Talvez o acerto não tenha de ser seu, mas deles dois. Tentar acertar o que não conseguiram na primeira vez que tentaram. E se a solução não for o desapaixonamento? Você, Milena, já parou pra pensar nisso?”
Estou confusa agora. Ouvi cada palavra de Ivan e tudo que ele disse faz um absurdo sentido. Mas, do jeito que eu adoro bancar a indecisa, apenas baixo a cabeça deixando claro que não é fácil saber o que fazer.
“As primeiras estrelas começaram a aparecer”, aponta Ivan, mudando de assunto no momento mais oportuno.
Eu sorrio e olho pro céu, encarando o espetáculo que vai tomando forma. Nesse momento, eu gostaria de voltar a ser uma adolescente inconsequente com as palavras e gritar “Eu te amo, Ivan!”
Mas tenho idade para me conter. E juízo. Então só me resta aceitar o abraço que ele me oferece, enlaçando-me com um de seus braços, enquanto contemplamos, lado a lado, a noite que vem se desenhando diante de nós, ideal para...
“Quer ser minha namorada, Milena?”
“Sim”.


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