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18 de outubro de 2015

DESAPAIXONANTE -- EPISÓDIO 2x07: O TIPO DE COISA QUE ANNA FAZ



(Narrado por Sávio)

Já me passou diversas vezes pela cabeça como minha vida teria seguido se Anna Munhoz e eu tivéssemos ficado juntos. Teríamos, de fato, ficado juntos até hoje? Como aqueles casais exemplares de colégio, cujos únicos parceiros sexuais e amantes foram o amor que conheceram na escola? Como teria sido se Milena não tivesse intervindo ao me ajudar a esquecer da Anna?

Milena acha que estou bêbado. Só porque estou “animadinho”. Mas a verdade é que só estou empolgado com a presença da galera das antigas. E, para fins de esclarecimento, ser conhecido por ser antissocial não significa que eu me isole a ponto de jamais demonstrar entusiasmo e manter uma interação acima da média, com direito a risadas e um brilho constante no olhar.
Essa festa à fantasia, baseada nas épocas de 90 e 2000, foi uma sacada genial, mesmo todo mundo já tendo implicado um zilhão de vezes por eu estar vestido de Liu Kang com camisa.
“E você acha que o Liu Kang nunca usou camisa na vida? Saca só a peruca, acho que eu mereço um crédito”, é o meu jeito padrão de retrucar.
“Fala, Sávio!”, Marlon Junior me cumprimenta, vestido de Edward mãos-de-tesoura. O curioso é que ele realmente tem tesouras de alguma forma penduradas nas mangas de sua jaqueta.
“E você acha que o Liu Kang nunca usou camisa na vida? Saca só a peruca, acho que eu mereço um crédito”, a resposta já está automática.
Marlon sorri. Pelo seu olhar, acho que está sendo solidário por também acreditar que eu estou bêbado. Ora, um bêbado não tem pensamentos muito coesos para narrar fatos, tem? Observo Marlon Junior se afastar, enquanto dirijo-me à mesa do bufê. Belisco alguns petiscos, mas não largo o copo, que insisto em reabastecer toda vez que chega na metade.
No som, Barbie Girl, do Acqua. Nunca subestime o poder da nostalgia. Um dia, você vai se encontrar tão engaiolado num tempo chamado “presente” que os melhores anos de sua vida, quando vierem à tona em forma de uma música ou uma memória, o atingirão como uma bala viajando a milhares de quilômetros por hora, rasgando e destroçando o alvo alcançado.
Pelo menos o Parente me assegurou que Anna não aparecerá por aqui. Sobra mais tempo (e alívio) para aproveitar a noite.
“Sávio Miranda?”, uma garota fantasiada de... puxa, tá difícil de identificar... Mas enfim, ela me chama pelo nome, num tom de dúvida se este realmente sou eu.
“E você acha que o Liu Kang... Quer dizer, oi, sou eu mesmo. Como vai?”
“Não lembra de mim? Sou eu, a Rita.”
“Rita...”
“Rita Lina”, ela acrescenta outro nome, que mais me deixa intrigado pelo fato de alguém batizar a filha assim do que me faz lembrar quem ela é.
“Desculpa, não tô... Foi mal, não consigo lembrar de você. Mas o seu nome não me é estranho...”
Mentira, o nome é estranho sim. Parece nome de remédio tarja preta.
“A gente... ficou uma vez, num passeio que o professor Barbosa levou a turma. O passeio do museu, lembra?”, Rita explica, mostrando-se desconcertada. Até desconfio que esse tom vermelho em suas bochechas não seja blush.
Na verdade eu estou tendo dificuldade até mesmo pra lembrar do tal professor que ela mencionou. Porém, para que me alongar? Não é possível que ela tenha vindo até mim numa tentativa de ficarmos outra vez, se é que de fato ficamos. Então:
“Rita Lina! Como vai? E aí, o que tá fazendo da vida?”
“Não muito. Só esperando os resultados dos exames”.
“Hummm...”, detesto quando alguém fala sobre algo que você supostamente sabe (porque, na verdade, eu tô tipo: “que exames? Ah, tanto faz, não tô interessado”), e tudo o que resta é ficar fazendo “hummm”. E torcendo para o seu interlocutor mudar de assunto. Um assunto melhor.
“Mas que maravilha te encontrar nessa festa. Não imaginava”, minhas preces são atendidas e ela muda de assunto.
“Não imaginava? Por que não?”, eu replico.
“Sei lá, me diz você”.
Outro tipo de gente que me dá nos nervos: aquele que meio que tenta tirar uma onda com sua cara, mas só consegue soar ilógico e sem-noção. “Sei lá, me diz você”. Dizer o que, sua maluca? Por que eu não estaria na festa, ué? Não é uma reunião pra uma determinada galera que estudou no Santo Cristo? Eu me incluo nessa galera, logo não deveria haver tanta surpresa assim pela minha presença.
“Rita, me dá uma licencinha, vou pegar uma bebida. Mas, ó, adorei rever você. Até outra hora!”
“Outra hora eu já posso ter ido embora, Sávio. Minha KMX 2000 deve chegar a qualquer momento”.
“KMX 2000?”, isso não está me cheirando bem.
Ela me encara incrédula. E responde:
“A minha nave, ora. Meu Deus, você tem certeza que realmente se lembra de mim? Não acredito, isso é humilhante.”
“Peraí! Você... Você disse nave?”
“É. Ok, eu sei o que você tá pensando”, ela se prepara para explicar. “Por que uma nave viria me buscar? Quero dizer, por que eu mesma não dirijo minha própria nave? Acontece que as leis interplanetárias são diferentes das leis da Terra, então ainda não sou considerada legalmente habilitada pra isso”.
Acaba que ela não explica porcaria alguma.
Isso está realmente acontecendo? Ou exagerei no álcool, como Milena crê? Olho para o lado, vendo se há alguém por perto para me auxiliar a entender o que está rolando. Nada. Todos envoltos em conversas paralelas ou em grupo, além de uma boa quantidade de pessoas mexendo no celular. Já dei a tolerância de alguns segundos pra moça assumir que está brincando e eu admitir que ela quase me pegou. Mas ela continua me olhando, impassível. Melhor agir com a estratégia mais correta para esses casos.
“Se eu não te vir de novo hoje, desejo um bom retorno pra sua casa, Rita. Desculpe. E use o cinto de segurança”.
Eu disse “use o cinto de segurança”? Pior que disse.
Viro e me afasto com uma rapidez discreta. Acabo de notar que agora é que não me lembro dessa mulher mesmo. Cara, em algum dia da minha vida eu fiquei com ela. Meus miolos estão em polvorosa trabalhando incessantemente na seguinte questão: por quê?


“E agora, pra relembrar de uma apresentação inesquecível na Mostra Pedagógica...”, anuncia o Parente, através do microfone. O que será que ele está aprontando?
Na hora, não me vem nada à mente. Que apresentação da Mostra Pedagógica poderia ser tão fantasticamente inesquecível a ponto de ser ressuscitada aqui nesta reunião? Modéstia à parte, as Mostras Pedagógicas (ou feiras de ciências, como alguns preferem) no Santo Cristo eram sensacionais. Orgulho assumido de ter frequentado essa escola.
E então começa a tocar Dancing Queen... “Ué, mas essa música não é do nosso tempo. Tá mais pro tempo da minha mãe”, reflito. E então cai a ficha: Elas aparecem. Ela, para ser mais exato, aparece. Anna Munhoz surge como num truque de mágica, acompanhada de mais três mulheres, todas conhecidas da época do colégio.
Sinto-me sugado por uma fenda temporal imediatamente. Sou transportado sem dó nem piedade para Novembro de 2001.


“Vai lá, amor. Vai dar tudo certo”, eu digo para confortar Anna de seu nervosismo.
“Eu tô com um frio danado na barriga, Sávio”, ela faz  com que um frio na barriga pareça a coisa mais fofa da qual ouvirei falar pelos próximos anos.
“Você tira de letra. Ora, você arrebentou nos ensaios. Não é à toa que foi escolhida pra ser a Rainha da Dança. You are the dancing queen, baby!”
“Ai, você é tão fofo!”
Ela me beija, com cuidado para não deixar o batom sair. Está derretida com meu comportamento de namorado perfeito. Ela me amará para sempre.
“Anna, as meninas já estão indo pra quadra”, avisa a professora de Artes.
Eu pego as mãos de Anna e sussurro, enquanto cravo meus olhos nos seus:
“Vai lá, minha rainha da dança. Brilhe!”
Se ela brilhar tanto quanto seus olhos estão brilhando agora, será um espetáculo inesquecível.


Desperto do devaneio. Anna está fantasiada de Jessie, a boneca cowgirl do filme Toy Story, charmosa como sempre. Encantadora como nunca. A filha da mãe está deixando todo mundo impressionado, porque ela consegue repetir a apresentação com a mesma proeza. É o tipo de coisa que Anna faz: se está empenhada em deixar algo bem-feito, ela vai lá e cumpre o que se empenhou em realizar.
Mas por que raios ela está aqui? Ela entrou para o Santo Cristo durante o ensino médio, mas sempre esteve em outra turma. Além do mais, por que o Parente mentiu para mim jurando que ela não viera e nem viria. No entanto, eu a tenho diante de meus olhos, trazendo uma das melhores (e mais avassaladoras) lembranças que eu sempre guardei.
Por um instante, observo Milena se afastar, segurando a mão de Ivan, seu novo crush. Os dois estão, sem dúvida, muito próximos. Estão se entendendo, eu acho. Espero que dê tudo certo. Mas algo me diz que minha amiga ficou incomodada. Certamente, ela também não esperava rever Anna por aqui.
Vale ressaltar que, por causa dessa maldita apresentação de dança, após o término de nosso relacionamento eu risquei Dancing Queen da minha lista de músicas que merecem ser escutadas pelo seu valor clássico.
“Parente, por que você disse que a Anna não viria?”, estou eu tomando satisfação com o anfitrião da festa.
“Anna?”, ele estranha. “Mas ela não veio mesmo, Sávio”.
“Então como é que você me explica ela dançando ali no meio do salão, hein?”, juro que nesta hora eu desejo ardentemente ter capacidade de ver fantasmas.
Parente torna o rosto para o lado em que estão as quatro se exibindo.
“Aaaah, sim! A Anna Munhoz! Eu pensei que você tava falando da Anna Luíza, que estudou com a gente”.
“Mas que droga, Parente! Que Anna Luíza o quê, rapaz?”
“Não se lembra? Era uma que sentava no fundão, ela ficou praticamente muda o ensino médio todinho”.
“Pelo amor de Deus! Me admiro de você se lembrar dessa garota. Ela entrou e saiu quase invisível no Santo Cristo. Por que você acha que eu perguntaria por ela?”
“Foi mal, Sávio. Eu me esqueci que a Anna Munhoz tinha sido sua namorada. Eu a convidei por causa do... você sabe...”, ele deixa a frase inconclusa, mas nem precisa, pois sigo seu olhar e ele vai parar no outro lado do salão, justamente onde um dos maiores rivais da história da minha vida se situa, rodeado de falsos amigos e bajuladores: Vinícius Martins. Que, cá para nós, está ridículo de Goku. A peruca está torta, que visão mais perturbadora. E aquelas bolinhas de isopor penduradas na cintura, simulando as esferas do dragão, um horror gratuito...
“Eles não são mais namorados, Sávio. Mas o Vinícius insistiu pra eu convidá-la... Acho que ele pretende tentar algo com ela, sabe?”, explica Carlos, o Parente.
“E por que é que você tá me explicando isso? Eu não tenho nada a ver, Parente”.
“Mas foi você quem perguntou por que eu a chamei”.
Ele tem razão. Melhor desconversar.
“Vou pegar mais uma cerveja”, informo, enquanto lentamente vou me afastando.
Caminho com certa dificuldade, pois Rita Lina está vindo em minha direção e eu preciso desviar dela. Apelo para o truque mais batido da modernidade e finjo estar mexendo no celular.
“Não acredito!”, Rita exclama, embora eu não entenda como ela se aproximou tão rápido de mim. “Como você consegue usar sua carteira como se fosse um smartphone?”
Porque é uma droga de carteira. Na pressa em tentar disfarçar que estava ocupado, troquei os bolsos e peguei a porta-cédulas. Que tonto! Nota zero com louvor.
“Rita, você ainda tá por aqui!”
“Espere!”
Parecendo um robô esquisito, ela começa a se apalpar, como se estivesse se certificando de sua presença material.
“Sim, ao que tudo indica, estou. É que às vezes não sei se estou me apresentando em forma concreta ou como holograma. Ainda estou em adaptando, isso é muito novo pra mim”.
“Você acreditaria que eu ainda estou em busca daquela bebida que falei que ia atrás?”
“Ah, é? Que coincidência! Eu tenho um copo de caipirinha a mais. Sempre carrego um copo de bebida extra. Pode pegar, toma aqui!”
Eu não tinha reparado que ela segurava dois copos.
“Eu não sei... Acho que a sua caipirinha foi batizada, então acho melhor evitar”.
“Você é hilário. Por que estaria batizada?”
“Sei lá, me diz você”, e eu tenho a oportunidade de dar o troco a ela, na mesmíssima moeda. Pá!! Nada como as voltas que a vida dá.
“Sávio?”, diz uma voz vinda detrás de mim.
O choque é imediato. E eu nem tinha percebido que o som de Dancing Queen já havia se extinguido. Anna Munhoz está me dirigindo a palavra.



Não sei como aconteceu. Mas ver Anna dançando como fizera há mais de uma década não me abalou a ponto de me fazer querer sumir. A festa continua boa, com doses cavalares de nostalgia e boas recordações. Como eu disse certa vez a Milena, meu namoro com Anna não foi a única coisa que me marcou no Santo Cristo. Inclusive, estou muito surpreso que ninguém ainda tenha vindo me procurar para me zoar pela peça da “bicha má”. Estranhamente, uma tranquilidade me invade. Não vou me portar como um moleque magoadinho. Serei maduro e estarei confortável. Anna Munhoz não tem mais poder sobre mim.
“Tá curtindo a festa?”, indaga Anna, tirando o chapéu que compõe a fantasia de Jessie.
“Sim”, vou me limitar a respostas curtas, porque é isso que um homem maduro e bem-resolvido emocionalmente faz.
Entorno um gole da caipirinha que Rita me ofereceu. A propósito, acabo de me dar conta de que Rita sumiu de vista. Menos mal.
“Quem diria, hein! Doze anos depois, todo mundo aqui”, Anna comenta.
“Verdade. Inclusive pessoas que nem estudaram com a gente”, provoco.
“Por mais que isso seja verdade, as pessoas não tinham amizade apenas com quem era da mesma turma, né? Algumas pessoas de turmas diferentes chegaram até mesmo a namorar!”, ela rebate magistralmente.
“Parabéns pela apresentação. Você continua muito bem dançando essa música”.
“Obrigada”.
Desde a primeira frase trocada aqui nesta festa, eu não tive coragem de olhar no rosto dela. E assim me mantenho.
“Cadê sua amiga do cabelo azul? Eu achei que ela tava por aqui”.
“Ela está, mas deve estar lá fora, talvez. E o nome dela é Milena. E agora o cabelo dela é roxo”.
“Gostei da sua fantasia. Parece aquele lutador do Mortal Kombat, só que usando camisa”.
“Pois é, é ele mesmo, afinal algum dia na vida ele deve ter usado uma camisa, né?”
“Verdade”.
Esse papo está mais furado que sofá velho.
“E aí, você conseguiu se desinteressar daquele cara?”, eu me refiro ao caso de desapaixonamento que ela quis empurrar para a agência ajudá-la, alguns meses atrás.
“Acho que sim. Não falo mais com ele desde aquele período que eu procurei você”.
“Que bom! No fim das contas, você nem precisou da gente. Economizou uma boa grana”.
Continue assim, Sávio. Você está dando um show de maturidade. Se todos os homens fossem iguais a você...
“Na verdade... Bem, você conhece ele. É o ex-namorado da sua amiguinha Milena”.
“O Enzo?”, encontro-me estupefato, mas consigo me controlar para não virar meu rosto em direção ao dela. “Caramba! Como assim?”
“É a vida, né? Ela gosta de aprontar com a gente”.
“Ah, isso sem dúvida”.
“Pois é, você acha que eu implico tanto com ela, mas a verdade é que eu estava tentando sair de cena nessa história. Como você disse, ainda bem que consegui. Não tava a fim de encrenca, ainda mais com uma garota como a Milena”.
“O que você quer dizer com isso?”
“Nada demais”.
Decido não insistir e prefiro o silêncio que acaba de se instaurar entre nós, apenas embalado pelo ruído das conversas ao redor e a música “Tô nem aí”, da Luka. Aliás, não tinha momento mais oportuno para essa música tocar.
“Engraçado”, Anna retoma a conversa.
“O que é engraçado?”
“Você. O jeito como fala comigo. Seu tom é ríspido e você mal me olha. Aliás, você nem me olha. Você me odeia tanto assim?”
“Uau! Onde você aprendeu a palavra ‘ríspido’? Na época da escola, eu me lembro que você não era exatamente o que se pode chamar de ‘prodígio da língua portuguesa’. Meus parabéns!”
Ela ri. Mas não porque esteja achando graça. É mais como se estivesse zombando, como um adulto que ri de uma criança que fala asneiras que fazem certo sentido.
“Por um momento, Sávio, você não se sente nos corredores da escola? Como se você pudesse reviver tudo outra vez, apenas com essa festa?”
“Pra ser sincero, sim”.
“Eu olho pra alguns dos meus antigos colegas, muitos já tem filhos. E eu nem sequer planejo ter um tão cedo. É impressionante como o tempo passa de um jeito diferente pra cada um de nós. Tipo, na época da escola, todos tinham o mesmo objetivo, teoricamente. Mas, quando os anos escolares se foram, o destino se multiplicou das formas mais diversas. No fim, todos que estão aqui são conhecidos que a gente desconhece”.
“Muito melancólico, esse teu papo”.
“Eu sei”, ela ri com a minha constatação. Dessa vez, acho que viu graça nas minhas palavras.
Vinícius Martins, ao longe, mantém um semblante de quem não está aprovando que eu esteja de papo com Anna.
“Não deu certo com o Vinícius?”, dou-me conta da pergunta estúpida no momento em que termino de pronunciá-la. Se tivesse dado certo, eles estariam juntos agora, animal.
“Não”, pelo menos Anna é educada e não me responde como eu respondi a mim mesmo.
“Ele não tem motivo pra ficar olhando pra gente com essa cara de cachorro zangado”, comento.
“Com certeza não. Mas deixa, ele é assim mesmo. Ei, será que só eu achei a fantasia dele de Goku ridícula?”
Não resisto e deixo escapar uma risada. É nesse momento que baixo a guarda e a coisa desanda, então meus olhos encontram os de Anna. O sorriso que ela abre realça o brilho do seu olhar e eu acho que ela me flagra enquanto me perco ligeiramente em seu encanto. E em seus cabelos tingidos de ruivo. Mas tenho certeza que ainda não estou vencido.
“Por que você pintou o cabelo?”
“Por que eu pintei o cabelo?! Ué, como assim, que pergunta é essa?”, ela desconhece minha obsessão por ruivas, ainda bem, pois talvez tivesse tentado me seduzir muito antes. Se é que está tentando agora.
“Por que você resolveu voltar após todos esses anos? Onde você esteve?”
“Eu tava fora do Brasil. Fui fazer faculdade no Canadá. Mas o que aconteceu? Você parece tão agitado agora. Você tá bem?”
“Estou ótimo”, viro-me para minha posição anterior, enquanto dou mais um gole na caipirinha. “Canadá, é? Faculdade de quê?”
“Medicina”.
“Legal. É sempre bom ter um médico por perto”.
“Você não respondeu minha pergunta, Sávio. Você me odeia tanto assim?”
Estou resistindo a responder, na verdade. Juro que estou.
“Quer saber, Anna?”, adeus, resistência. “Eu já quis te odiar, muito mesmo. Mas não consegui, nem consigo. E sabe por quê? Porque o ódio só faz mal pra quem sente. E tudo que eu quero é seguir minha vida na boa, tranquilo, sendo uma pessoa madura”.
“Madura? Abrir uma empresa que tem o meu nome não parece muito maduro pra mim”.
“Anna, não fica se achando muito, tá? Foi uma coincidência que a sigla da nossa empresa tenha formado o seu nome. Achamos por bem deixar assim por causa do que representava”.
“Ah, é?”, seu corpo fica absurdamente mais perto do meu. Será que ela vai me beijar? “E o que representava, Sávio?”
“Não se aproxime muito, eu tô com bafo de álcool”.
“O que representava, Sávio? O que meu nome representava e o que ele ainda representa?”
Definitivamente ela não vai me beijar. Porque quem toma a iniciativa do beijo sou eu. Tarde demais para avaliar as consequências, para sequer considerar o tamanho e o significado de tal atitude. E aproveito para desacumular a terrível vontade que eu fiquei esse tempo todo de abraçá-la. E sou correspondido. Inacreditavelmente correspondido. Mas o beijo mal dura uns oito segundos.
“Você ainda gosta de mim”, ela afirma. Embora fale bem baixinho, apenas para eu ouvir, soa muito categórica.
“Foi só um beijo, Anna. Eu acho até que bebi demais”.
Vinícius está falando com seus amigos, lançando olhares nada discretos de vez em quando para nós. Acho que ele perdeu o beijo, pois estaria cuspindo fogo pelas ventas se tivesse visto.
“Eu... vou procurar minhas amigas”, ela encontra uma desculpa para sair da minha companhia.
Não respondo nada. Pelo menos, não oralmente. Apenas “me despeço” com o olhar, como se quisesse dizer “vai lá, tanto faz”. Está claro que não fazia parte dos planos dela me beijar. Anna está caminhando rumo a uma garota fantasiada de Britney Spears no clipe de Oops, I did it again, uma espécie de macacão vermelho muito justo.
Saldo da noite: o coração, por incrível que pareça, ainda está inteiro. Os lábios parecem anestesiados, é verdade. A visão está um tanto turva, e a cabeça parece dar alguns giros de vez em quando. Ok, isso mais parece a descrição de alguém que já extrapolou no álcool. Porém, estou feliz por saber que alguma coisa melhorou na reação que tenho comumente no que se refere à Anna. Ela não me atinge mais como costumava atingir. O momento que tivemos esta noite (e isso inclui o inesperadíssimo beijo) me faz crer que, em pouco tempo, me sentirei totalmente restaurado do romance que deu errado entre nós.
Posso ir para casa satisfeito. Porém, precisarei de uma carona.



DIAS DEPOIS

“O que você quer, Sávio? Pareceu tão urgente”, Milena parece preocupada. Não esperou chegar segunda-feira para se encontrarem na agência, então foi até a casa de Sávio descobrir o que ele tanto quer.
“Entra aí”, ele convida, com uma cara de quem acabou de acordar, cabelos desgrenhados e barba por fazer.
Sávio pega dois copos de chá gelado, enquanto a aflição de Milena apenas aumenta. Enquanto tomam a bebida, ele narra tudo o que aconteceu na noite da festa. E desembucha:
“Escuta, Milena, só você pode me ajudar. Eu vou te pedir esse favor como jamais pedi outra coisa antes”.
Ela está com o coração na mão.
“Você pode me ajudar a me desapaixonar da Anna outra vez? Por favor!”
Sávio não quer correr o risco de sofrer de novo. Milena não sabe como reagir, especialmente porque ela acredita que, se ele ainda gosta tanto assim do seu antigo amor, quem garante que dessa vez ela obterá sucesso em fazê-lo se desapaixonar?


Em outro local, não muito longe dali, Anna Munhoz está aguardando sua vez de ser atendida. A recepcionista do lugar finalmente lhe dá a boa notícia:
“O doutor Ivan já vai recebê-la. Pode vir por aqui, por favor?”
Ela se levanta, e vai caminhando com seu vestido branco florido e suas sapatilhas silenciosas. Entra na sala de Ivan Castro. A recepcionista/secretária se retira e fecha a porta. Ivan se levanta e cumprimenta a moça diante de si.
“Boa tarde! É uma imensa satisfação vê-la. Como vai?”
“Pode cortar essa formalidade, Ivan”.
Ele ergue as mãos e as deixa espalmadas, em sinal de “ok, desculpe”.
“O que você deseja, Anna?”
“Eu quero a sua ajuda”.
“Problemas legais?”
“Não. Eu não vim procurar o doutor advogado Ivan Castro. Eu vim procurar ajuda da AMANDA”.
Ivan meneia a cabeça negativamente, pronto a dissuadi-la.
“Anna, você sabe que a AMANDA não existe mais há um bom tempo”.
“Eu sei, mas... Por favor, em nome da nossa amizade. Eu nunca te pedi nada, Ivan. Assim como nunca desejei tanto o que eu tô desejando agora”.
“Anna...”
“É sério, Ivan. Por favor”.
Ivan sabe que, de fato, Anna jamais lhe pedira nada. Ao contrário, ele é quem sempre foi mais beneficiado com pequenas e grandes gentilezas por parte dela.
“Anna, você poderia me pedir qualquer coisa, menos isso”.
“Eu prometo que só vou te pedir isso dessa vez. Não é como se a AMANDA fosse voltar, seria apenas um trabalhinho especial, pra uma amiga especial”.
Ivan está muito relutante. Mas abre um espaço:
“O que você quer?”
Só agora ela se senta, empertiga o busto e declara, decidida:
“Eu quero reconquistar o Sávio”.

“Tá bem”, responde Milena.
Sávio, que não acreditava que a amiga toparia repetir o mesmo feito, encara-a com admiração.
“Você vai mesmo me ajudar?”
“Claro, por que não?”
“Eu te amo, Milena Kerber!”
“Tá, mas não precisa exagerar e nem me abraçar”.
“Precisa sim, vem cá”.

Ivan Castro e Anna estão tendo um momento silencioso. Tudo que ela está esperando é por sua resposta. Ele apenas bate uma de suas canetinhas hidrocor contra o tampo da mesa, num gesto que demonstra que está analisando a situação.
“Você promete”, Ivan quebra o silêncio, “que só vai me pedir isso dessa vez?”
“Sim”, reafirma Anna. “E vou pagar”, acrescenta ela.
Ivan não está ligando para dinheiro. Ele realmente não gostaria de reativar AMANDA.
“Então considere combinado”, ele diz, por fim.
“Ah, que maravilha, Ivan!”, ela está realmente entusiasmada e comovida por ter conseguido convencê-lo. “Eu sabia que podia contar com você.”
“E se eu não conseguir?”
“Por favor, né? Alguma vez você falhou?”
Ele sabe do seu potencial. Ele sabe que jamais fracassou. E é por isso que Anna aposta tanto em seus talentos.


Nenhum dos lados está consciente da pequena guerra que está tomando forma. Ambos os lados são muito fortes. Portanto, o resultado pode ser imprevisível. 

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