(Narrado por Milena)
Salto da cama de repente. Meus
sentidos se dando conta da realidade ao redor, enquanto o barulho ensurdecedor
de uma furadeira invade o quarto. Foi isso que me fez acordar. Olho o celular para
conferir que horas são, e protesto em pensamento por ter alguém mexendo com
furadeira às sete da manhã.
Levanto-me, muito chateada, e vou
cambaleando como um zumbi bêbado para fora do quarto.
“Milena, calça umas sandálias. O chão está muito frio”, adverte
minha “mãe”, Dana, preocupada ao me ver de pés descalços.
“Que barulho é esse? Por que o papai tá mexendo com furadeira?”
Uma das minhas irmãs caçulas
passa por mim, ouve o que acabo de dizer, e retruca:
“Não é o papai. Isabela e eu estamos usando a furadeira. É um novo
tutorial que a gente tá gravando pro nosso canal”, explica Laura.
Baita vontade de xingar, viu? Como
se já não bastasse essas duas criaturas terem tomado tanto espaço no coração do
meu pai, ainda por cima sabem usar ferramentas. Odeio filhos dos sonhos!
“Vocês não podem fazer isso um pouco mais baixo?”, eu devo estar
com tanto sono que mal percebo o que estou dizendo. Ou será que dá para abaixar
o volume numa furadeira?
Laura e a mãe se entreolham, e
pelas poucas condições em que me encontro para compreender o que se passa, acho
que Dana está dando uma bronca na filha só com o olhar.
Um dos meus grandes problemas é
que, não importa com quanto sono eu esteja, se eu não voltar a dormir em alguns
segundos após um despertar involuntário, não adianta mais. E já se passaram
vááários segundos. Então, já era.
Chego à agência de óculos
escuros. Preciso esconder as olheiras que se formaram por conta do pouco que
dormi. Passei a madrugada anterior em altos papos com Ivan. É incrível como as
conversas entre nós se tornam cada vez mais envolventes, e é raro não nos
falarmos por, no mínimo, meia hora antes de dormir. Mas na noite passada a
gente exagerou.
Descobri, por exemplo, que, além
de canudos, Ivan coleciona discos de vinil, gravatas, cartões-telefônicos
(“nossa, cara, você é tão retrô”), xícaras, broches, canetinhas hidrocor,
figurinhas que vem com balas ou chicletes, relógios, bonés (os quais ele diz
que quase não usa, por não encontrar “ocasiões apropriadas”), medalhas
esportivas da época de colégio (“ui, desculpa aí, senhor
eu-sempre-vencia-competições-de-futsal”), cartuchos de jogos antigos da Nintendo, pôsteres de filmes do Jet Li e
do Jackie Chan, espelhos (!!!), pendrives,
toalhas de rosto, entre outras coisas. No entanto, nada barra a bizarrice dos
canudos. Além do mais, eu lhe disse para tomar cuidado ou vai parar num desses reality shows que exibem a vida de
acumuladores.
O papo foi uma delícia, e eu só
fui sentir sono por volta das 4. Agora, estou morrendo de vontade de dormir.
Mal cumprimento Madonna, já lhe peço para arranjar um café bem forte. Entro na
sala, esforçando a memória para recordar qual é o caso da vez. Tiro os óculos,
ligo a central de ar (com cuidado para não deixar numa temperatura agradável
demais, senão é capaz de eu ficar tão confortável a ponto de cair no sono aqui
na sala mesmo). Alguém bate. Eu digo para entrar. Deve ser Madonna com meu
café.
“Bom dia, sócia. Você tá com uma cara péssima!”, é apenas o Sávio
me agraciando com uma dose de sinceridade matinal.
“Obrigada. Bom dia pra você também!”
“O que foi? As suas irmãs não deixaram você dormir?”
“Na mosca. Acho que podemos ganhar um dinheiro extra com seus poderes
de vidente. O que acha?”
Ele ri. Parece bastante empolgada.
Sinto-me tentada a assinar um cheque e pedir-lhe que me venda um pouco dessa preciosa
alegria. Tenho um certo desdém por gente muito animadinha nas primeiras horas
do dia, esse tipo de pessoa faz eu me sentir mal pra caramba.
“Bom, não foram só elas. Foi mais o fato de que passei a noite toda conversando
com o Ivan”, resolvo abrir o jogo com meu melhor amigo.
“Eita! Você tá gamadona nesse cara, hein!”
“Ai, Sávio! Gamadona? Por favor, né? O que houve com você? Foi dar um
passeio nos anos 90? Quem é que ainda fala assim? Além do mais, eu não tô “gamadona”
no Ivan. É que a gente se fala bastante, tem muito assunto. Só isso”.
“Eu conheço você, Milena. É muito mais do que “ter muito assunto”. Dá
pra ver que seu olhar tá diferente. Mas tudo bem, bom pra você. Você merece
curtir a vida”.
“E você, hein? Por que tá tão alegrinho?”
“Ah, é verdade. Vou até me sentar”.
Ele se senta numa poltrona
encostada à parede perto da porta. Eu me sento à mesa, do outro lado da sala.
Cada pálpebra pesa meio quilo.
“Tá lembrada que a reunião da galera do Santo Cristo vai ser no próximo
fim de semana, né?”
“Claro, você não me deixa esquecer”.
Semanas atrás, Sávio atendeu um
cliente cujo irmão havia estudado conosco na escola Santo Cristo, o Carlos,
vulgo Parente. E esse moço do apelido peculiar encasquetou que precisa reunir a
galera da época do colégio, numa dessas típicas reuniões saudosistas. Eu até
acho uma iniciativa interessante, mas duvido que haja mais do que meia dúzia de
pessoas a fim de me rever. Nunca fui o que se poderia chamar de “popular”.
“Pois é. Mas tem uma novidade muito legal”, prossegue Sávio.
“Cancelaram?”
“Não! E dá pra parar com isso? Eu é que geralmente sou o antissocial
aqui”.
“O mundo tá diferente, meu nobre Sávio. Não se admire se daqui a pouco
a corrupção for erradicada no Brasil”, e é assim que você convence qualquer
um de que você está embriagada de sono. Com essa, eu quase acordei pra valer.
Madonna bate na porta. Finalmente
o bendito café pra me dar um up nessa
manhã que está árdua de encarar. Sávio e eu damos uma pausa na conversa,
enquanto a generosa Madonna traz três xícaras para nós (duas eu pedi para mim,
mas ela é tão maravilhosamente solícita que trouxe também uma para o seu
patrãozinho querido).
“E qual é a tal novidade?”
“O Carlos me ligou avisando que a festa vai ser temática”.
“Peraí! Oi? Festa? Quer dizer que agora vai ser uma festa? Não era só
uma reunião? Gente, existe diferença entre reunião e festa. Como é que essa
reunião foi promovida a festa?”
“Calma, Mile! É uma festa e uma reunião ao mesmo tempo, ora. Vai ter
música, comida e pessoas. Logo, é uma festa. Essas pessoas não se veem há muito
tempo. Logo, é uma reunião. No sentido de “unir outra vez”, entendeu?”
“E qual vai ser o tema então?”, indago, assoprando o café e
observando o vapor subir, roçando minhas narinas, para então bebericar um
pouco.
“Vai ser uma mistura de anos 90, que foi a década em que nós crescemos,
com os primeiros anos da década de 2000, que foi quando estivemos no ensino
médio. E tem um outro detalhe: vai ser uma festa à fantasia, baseada em
elementos dessas décadas”.
“Caramba, sério?”, acho que agora eu acordei, mas pode ser uma
espécie de efeito instantâneo do café.
“É, eu também não curto muito a ideia, você sabe que eu não gosto de
chamar atenção, mas acho válido, já que todo mundo vai estar fantasiado”.
“Você acha que o povo realmente vai, Sávio?”
“Bom, segundo o Carlos, tá todo mundo animado. A galera quer se
reencontrar, entende? Acho que vai ser legal”.
“Você tá muito animado pro meu gosto, Sávio. Tá com esperança de
encontrar a Anna por lá?”
Oh-oh.
Droga, saiu tão sem querer...
Bebo mais um gole de café pra disfarçar o quanto estou me sentindo uma idiota
agora. Acabo queimando a língua com o líquido muito quente. Tá um clima
estranho. O semblante de Sávio está modificado.
“Eu sei o que você tá pensando, Milena. Por causa do que aconteceu no
fim de Junho, né? Você acha que eu não esqueci a Anna e que...”
“Sávio, desculpa. Eu não tô bem. Meu sono não tá me deixando raciocinar
direito. Me desculpa, amigo, por favor”.
“Eu tenho vontade de rever o pessoal, Milena. Você sabe o quanto aquela
escola foi marcante nas nossas vidas. Eu achei que você ia gostar da ideia
muito mais do que eu. A Anna não foi a única coisa que eu vivi no Santo
Cristo”.
“Sávio, por favor...”
“Ok. Eu vou pra minha sala. Tenho que escrever um relatório e... Depois
a gente se fala”.
Sávio e eu raramente nos
desentendemos. E quando isso acontece, fica um sentimento tão ruim no coração.
Chato demais! Por que o Ivan tem que ser tão interessante e me deixar acordada
até tarde, causando-me uma manhã difícil de fazer as coisas direito? Preciso
parar de jogar a culpa nele. Eu já estava meio sóbria quando acabei soltando
aquele maldito comentário. Infelizmente, eu o fiz baseado no que acredito. Não
me exime da culpa de ter sido inapropriada com Sávio, claro, mas me bate uma
sensação estranha ao ver que o meu primeiro “cliente” esteja prestes a ter uma
recaída.
No fim das contas, a algumas
horas da bendita festa, Dana resolve me ajudar com a minha fantasia. Escolhi
uma coisinha que retrate um pouco o fato de eu não me sentir uma mulher normal,
às vezes. Optei pelo traje de Úrsula, a vilã de A Pequena Sereia. É um vestido roxo justo, com partes do tecido
extrapolando pelas laterais, imitando os tentáculos que ela possui. Se alguém
reparar na minha barriguinha, é apenas um bônus para a composição do visual
(quem já viu a Úrsula sabe do que eu estou falando).
Para entrar no clima do
reencontro, já deixei rolando um pouco de Backstreet Boys numa playlist em meu computador, e não
consigo evitar um ou outro passinho de dança, alternando com um pouco de cantoria
(num inglês bem meia-boca). Dana, mesmo que já fosse universitária na época que
essa boy band bombou, também entra na
onda, e eu começo a me sentir meio mal por essa suposta cumplicidade. Ela não é
minha mãe, e também nunca foi alguém que eu poderia chamar de amiga. Eu sei,
devo desencanar, mas é o tipo de coisa com a qual não me sinto à vontade. Gosto
das relações bem estabelecidas. Se não temos intimidade suficiente para reviver
os áureos tempos de adolescência, fica uma situação desconcertante. Então eu
fico curtindo as músicas em silêncio. Ah, um detalhe importantíssimo: já se
foram os tempos de cabelo azul. Para combinar com a fantasia, pintei algumas
mechas de roxo, o que me deixou bem satisfeita. Portanto, vou adotar de hoje em
diante. Um louro platinado ou algo do tipo cairia muito bem para a proposta da
personagem, mas gostei tanto da ideia do roxo...
Após muito hesitar, permiti que o
Ivan viesse me buscar em casa. Fomos permitidos a levar um convidado, e para
não ficar por baixo, quero mostrar pra turma das antigas que a vida tem sido
generosa comigo.
Ivan está (como sempre) muito
bonito, usando a fantasia de Power Ranger clássico azul, e eu acho tão fofo o
fato de ele ter um lacinho em alusão ao Outubro Rosa.
“Você está linda!”, ele me dá uma olhada tão longa quanto
intimidadora, maravilhado por me ver.
“Adorei sua fantasia de ranger azul. Cadê o capacete?”
Ele sorri e, com o polegar,
indica o banco de trás do carro. Eu olho e lá está o capacete que completa o
traje.
“Adorei a fitinha do Outubro Rosa”, eu o elogio pela segunda vez, o
que claramente não está adequado. Não é bom uma garota como eu ficar elogiando
um cara num intervalo de tempo tão curto. O pior foi que nos dois momentos eu
usei a palavra “adorei”.
“Na verdade eu não consegui tirá-la, então resolvi deixar você me
ajudar”.
“Eu ajudaria, mas... com esses tentáculos e o fato de ser meio
estabanada, eu poderia te estrangular”.
Como essa piadinha foi o marco da
comédia (Só que não, né?), caímos numa risada cúmplice e gostosa. A noite
começa a fazer mais sentido. Aproximo-me um pouco mais dele, que está usando um
perfume gostoso, e removo a fita rosa. Ele me vem com essa:
“Você mal se aproximou de mim e eu me senti num perigo que você não tem
noção. Eu espero ser o único na noite a ser ameaçado pela sedução de Úrsula”.
“Fala sério, Ivan! Agora você virou um conquistador barato, foi?”
“Pôxa, eu achei essa cantada tão bem elaborada”.
“Já ouvi melhores”, eu sou um doce mesmo, não? Já me sinto redimida
pelos dois elogios. Estou sorrindo, claro, para que ele não me leve a mal pelo
comentário. É para parecer brincadeira, mas a verdade é que eu realmente já recebi cantadas melhores. A
ocasião aqui apenas me faz concluir que não é a cantada que faz a diferença,
mas quem a faz e como faz.
Assim que viramos na esquina da
rua onde vai rolar a festa, já se ouve o som de Spice Girls cantando uma das minhas favoritas, Stop. Cretinos! Já me ganharam...
A casa de Carlos parece bem pomposa
vista de fora. Sei que ele nunca foi rico, mas aparentemente as coisas deram
certo na vida dele. Presumo que deva haver um espaço bem amplo, motivo pelo
qual a festa não poderia acontecer noutro local senão aqui. Há três pessoas no
portão, e uma delas é o anfitrião. Após tantos anos, será que pega bem chamá-lo
pelo apelido de “Parente” ou é melhor ir pela zona de conforto e usar o nome de
batismo mesmo?
Acabo não fazendo nem uma coisa e
nem outra, pois fico simplesmente chocada ao descobrir que uma das pessoas
paradas ali é o Sávio, fantasiado de alguma coisa que eu não consigo
identificar.
“Olha ela aí!!”, ele me aponta como se estivesse indicando a
próxima estrela que vai subir ao palco e agradecer por ter ganhado um Oscar.
Pela alegria, acho que ele já provou um pouco de álcool.
Respondo com um sorriso sincero.
O Carlos colocou uma faixa branca com os seguintes dizeres em preto: “Reunião
da galera de 1997-2003”. Parece que ele tava mesmo a fim de resumir sete anos
de história do colégio Santo Cristo numa única noite. Acabo sendo invadida por
um nervosismo bobo, imaginando quem encontrarei hoje, quais sensações esses
encontros irão desencadear. E quais surpresas terei ao me deparar com as
novidades das pessoas. Até que me recordo que a minha popularidade era baixa
demais para que isso se torne prazeroso como se supõe que deveria ser.
“Sávio, que fantasia é essa?”, eu cochicho ao ouvido dele, agora me
certificando de que ele tomou mesmo alguma coisa.
“É o Liu Kang, do Mortal Kombat, mas como eu não curto ficar sem
camisa, então eu sou um Liu Kang mais... reservado”, explica ele, ajeitando
a peruca preta que faz parte da fantasia.
“Não teria sido mais fácil pensar em outro personagem que use camisa,
em vez de descaracterizar outro?”
“Ah, qual é? Olha só pra você. O cabelo da Úrsula nem é roxo...”
“Vem cá, Ivan, deixa eu te apresentar o pessoal”, desconverso,
virando-me para Ivan, a fim de socializá-lo.
Apresentações feitas, finalmente
entramos. Usamos um corredor ao lado da casa, indo em direção a uma área nos
fundos de onde vem a música e todos os outros barulhos. Eu estava certa: o
espaço é amplo mesmo. Cerca de umas 15 pessoas já estão ocupando algumas mesas,
todas conversando energicamente. Ao que tudo indica, mais gente está a caminho.
Tanto entusiasmo deve ser por conta da saudade. Não dá pra reconhecer todas as
pessoas ainda. Mas fico contente ao avistar Leandra Nunes, por exemplo, usando
a fantasia de Dr. Brown, do filme De
volta para o futuro. Ela, sim, teve coragem de apostar na coloração exata
do cabelo do personagem. Ficou estranhamente bonita, levando-se em consideração
que é uma esbelta de 27 ou 28 anos se passando por um velhote cientista.
Maurício Pontes também está aqui, vestido de Bart Simpson, com direito a peruca
loura espetada e tudo. Foi com ele que troquei meu primeiro beijo, numa dessas
apostas que se fazia nas quais, se você perdesse, teria que pagar beijando
alguém escolhido pela pessoa que te cobrou a aposta. Foi o primeiro e pior
beijo da minha existência. Será que Maurício ainda é uma máquina desapaixonante
ambulante instantânea? A julgar pela garota que está com ele, é provável que
ele tenha melhorado.
Estou me sentindo um pouco má por
estar “usando” Ivan para ser minha companhia quando eu não estou muito a fim de
papo com meus antigos colegas. Hoje tá tudo trocado, pois o Sávio é quem
deveria estar prestes a surtar assim.
Carlos, o “Parente”, se aproxima
de nós enquanto All that she wants,
do grupo Ace of Base, inunda o ambiente.
“Fiquem á vontade, viu?”, ele nos fala, apontando para um freezer
do outro lado de onde decidimos nos sentar. “Podem
pegar bebidas à vontade. Hoje é uma noite especial. Já deu pra sacar pelas
músicas, né? Só vão rolar as balas hoje”.
“Que legal, Parente. Quero dizer, Carlos”, parabéns, Milena, sua micuda!
Pelo menos parece que ele não ouviu.
Pelo visto não é só a festa que
tem a temática de épocas passadas, mas até a linguagem empregada tem. Quem
ainda usa o termo “balas” pra se referir a músicas?
Carlos se afasta, então fico
sozinha com Ivan.
“Tô gostando do lugar. E você?”
“Ainda não sei, Ivan. Mas acho que a festa vai ser bacana”.
“Posso me sentar aqui com vocês?”, Sávio vem se aproximando,
carregando um copo com mais um pouco de álcool.
Sinalizo que sim, claro, ele pode
se sentar. Ivan e eu não somos um casal. Quero dizer, não no sentido romântico
da coisa, então se a festa toda quiser dividir a mesma mesa, tranquilo.
Olho para minha esquerda e
contemplo Suzana Vargas, outrora tida como a menina mais baranga do colégio.
Ela está esplêndida, acho que sua fantasia é de alguma personagem de desenho
japonês, acho que Sailor Moon, e ela
caprichou na peruca loira. Só é meio estranho vê-la dançando a música do Ace of
Base. Ficou gatinha, mas ainda continua desengonçada. Se alguém pusesse um
bambolê em volta da cintura dela neste exato momento, cairia bem. Pelo menos
ela está se sentindo de um jeito que eu gostaria de me sentir: solta e nem aí
pra ninguém.
“Cadê sua convidada, Sávio?”, Ivan dá uma de mister simpatia e puxa
papo com meu sócio, chamando-o pelo nome como se fossem velhos conhecidos.
“Não tinha ninguém pra trazer”, Sávio admite, e não parece dar a
mínima para isso.
“Aquele ali não é o Chico Borges?”, pergunto, mas é mais um
questionamento retórico do que uma busca por informação.
“Ele mesmo. Calvo e barrigudo. Quem diria?”, comenta Sávio,
igualmente admirado pela realidade que antes seria considerada inimaginável
para o tal do Chico Borges, que sofreu muito bullying na oitava série, por ter
cabelos longos escorridos e uma estrutura corporal com a qual ele poderia
tranquilamente se esconder atrás de uma vara de bambu. Bom saber que essa “nova
fase” não o impediu de vir fantasiado de He-Man. E o Sávio com frescura porque
não quer ficar sem camisa...
A esposa de Carlos, fantasiada de
Pocahontas, é muito simpática. Ela veio até nós só para avisar onde poderíamos
pegar algo para comer. Adoro gente que se preocupa com a fome alheia. Até
porque comer, para mim, é um dos melhores rituais que te ajudam a lidar com
eventos sociais. Você não precisa bater muito papo, pois está com a boca
ocupada, e quando precisa falar ou responder dentro de uma conversa, o fato de
estar manipulando comida te ajuda a pensar. Pelo menos comigo funciona muito
bem.
Na mesa do bufê, encontro alguns
rostos conhecidos, outros que não tenho certeza se conheço e outros que nunca
vi. Entretanto, para todos os fins, acabo distribuindo sorrisos e enganando com
algumas tiradas espirituosas, mantendo o ambiente agradável.
“Adorei a fantasia de Thundercat, hein!”, elogio alguém.
“Essa peruca de Mortícia Adams ficou show em você, só não acertou muito
na maquiagem”, estou perto de Cibele Rocha, elogiando-a, apesar de ter
deixado escapar a parte da maquiagem. Aí a moça fecha a cara e eu acho de
arrematar: “Mas fica de boa, que pelo
menos fica bem marcada a proposta de ‘horror’ da fantasia. E essa cara que você
tá fazendo agora também ajuda bastante”.
Pela maneira como ela se afasta
de mim, percebo que exagerei na interação. Do outro lado da mesa, sem me ver,
Sávio parece um tanto preocupado, indagando algo a Carlos.
“Fica tranquilo, relaxa. A Anna não veio, nem vai vir”, é o que eu acredito que acabei de ouvir vindo de
Carlos.
Sávio está um pouquinho “alto”,
mas sua preocupação por uma iminente presença de Anna está bem sóbria. Espero
ter escutado direito.
“Milena Kerber!”, diz uma voz atrás de mim.
Fico espantada ao perceber que é
uma antiga professora de História. Sempre foi tão querida pela galera, não me
admira ela estar aqui. Rápido, Milena! Qual é o nome da criatura?
Detrás dela surge Alberto, que a
enlaça pela cintura e lhe dá um cheiro carinhoso no pescoço. Como um milagre,
recordo-me que ela se chama Elvira. Só me lembrei porque na época do ensino
médio, havia um boato de que ela estaria tendo um caso com um aluno. Mas quase
todo mundo descartava. Agora, mais de uma década depois, a verdade se projeta e
é confirmado que os boatos nunca foram mentirosos. Puxa, <> agora posso dormir mais tranquila por resolver esse mistério
pendente.
“Eu fiquei sabendo da sua empresa. Achei tão fabulosa!”, diz a
professora Elvira. “Eu poderia te passar
uma lista infinita de clientes em potencial. Me adiciona no Face ou no zap-zap
pra gente conversar melhor”.
Pô, professora, zap-zap?
“Ai, claro, professora, vou adorar falar com a senhora pelo WhatsApp”, eu dei uma boa enfatizada no nome do
aplicativo.
Ela se afasta, agarrada ao
namorado, e eu nem vou entrar no mérito de ela ter me pedido para adicioná-la
no “zap-zap” sem nem mesmo ter me passado seu telefone.
“E agora, pra relembrar de uma apresentação inesquecível na Mostra
Pedagógica...”, Carlos berra ao microfone, deixando-me a pensar em como se
relembra de algo que JÁ É inesquecível.
Ele faz o sinal para o DJ, que
também veio enturmado com o tema e está fantasiado de Batman, apesar de a roupa
estar ridiculamente folgada. Começa a música mais famosa do grupo sueco ABBA,
“Dancing Queen”. Oh-oh. Será que vai acontecer o que eu estou pensando?
You can dance, you can
jive
Having the time of
your life
Oooh, see that girl
Watch that scene
Dig in the dancing
queen
Sei lá de onde raios elas apareceram,
mas as mesmas meninas que apresentaram a coreografia de “Dancing Queen” estão
todas reunidas, no meio do salão, repetindo a mesmíssima apresentação de 2002
ou 2003. E Anna, a famigerada Anna Munhoz está entre elas. Na verdade, na
ocasião da apresentação no Santo Cristo, ela fez o papel de rainha da dança. E
está fazendo hoje novamente.
Estou paralisada.
A alguns metros de mim, Sávio
está boquiaberto. Se eu pudesse sentir o que ele está sentindo agora, acredito
que uma corrente inexplicável de sentimentos estaria passando de ponta a ponta
pelo meu corpo, vez ou outra fincando agulhadas em meu coração. Posso ver que
ele não esperava por isso. Na realidade, nem eu.
Desde a ocasião em que Sávio
mencionou que a reencontrou, tenho andado com a ideia fixa de que meu trabalho
em ajudá-lo a se desapaixonar não surtiu o efeito esperado. Logo, todo esse
tempo como agente da ANNA pode ter sido uma ilusão, uma farsa, uma carreira que
eu alimentei à base de uma experiência que eu julguei como bem-sucedida. Saber
que eu posso ter me enganado esse tempo todo é tão deprimente.
You are the dancing
queen
Young and sweet, only
seventeen
Dancing queen, feel
the beat from the tambourine, oh yeah
Depois de tantos anos, jamais
achei que fosse contemplar esse olhar de novo. O olhar de apaixonado do Sávio.
Por mais que eu diga que conheça esse olhar, sei que ele vai negar. O olhar que
eu o ajudei a perder. Ou que eu acreditava tê-lo ajudado a perder. Anna e as
outras garotas, em suas respectivas fantasias para esta festa, estão mostrando
que ainda sabem dar um show de dança.
Com graciosidade, leveza e simpatia, ainda por cima. Não sei por quê, mas não consigo
mais suportar assistir.
“O que foi, Milena?”, Ivan veio atrás de mim, certamente percebendo
algo errado.
“Vamos lá pra frente da casa um pouco?”
Como um compreensivo cavalheiro,
Ivan acata. Como é bom ter alguém que te aguenta no piti e não fica fazendo
perguntas.
“Você tá se sentindo mal?”, ops, aí está ele, fazendo perguntas.
Nem todo mundo é perfeito.
“Um pouco”.
“Quer que eu te leve em casa?”
Eu balanço a cabeça em sinal
negativo, mas nem eu mesma sei. Porque também não tô no clima de ir para casa.
“É que eu... vi alguém”.
“Já sei. O cara fantasiado de Bart Simpson, né? Quem era ele? Um
ex-namorado?”
Caramba! Vai ser observador assim
lá longe, viu?
“Não, não foi ele. Foi uma mulher. A Anna”.
Ivan fica alguns segundos me olhando,
a boca semicerrada, as sobrancelhas franzidas. Ele sabe o que é a ANNA (Agência
do Negócio Nada Apaixonante), mas não sabe quem
ela é. Principalmente, quem ela foi.
“Então o nome da sua empresa existe por causa de uma pessoa com esse
nome...?”
“Sim. E ela tá lá dentro dançando lindamente”.
“Mas... eu não entendo. Por que isso te aborrece?”
Há momentos em que uma mulher não
precisa se comunicar com palavras, mesmo ela sendo uma grande matraca. Há
momentos em que uma mulher precisa se calar e apenas saber que tem alguém que
se importa com ela, que consegue captar que naquele momento basta apenas um...
“Vem cá”, e a magia acontece quando ele pronuncia essas palavras.
Ivan lê meus pensamentos, reconhece o meu momento e me puxa para um abraço
quente, terno, companheiro e compreensivo. Não há outra escolha a não ser me
refugiar nos braços dele. Não outra escolha porque é disso que eu estou
precisando. Não importa o quanto eu esteja aborrecida, o porquê de eu estar
aborrecida ou o simples fato de eu estar aborrecida. Um abraço não precisa de
uma justificativa tão elaborada.
Levemente passando as mãos pelos
meus cabelos por trás do meu pescoço, Ivan coloca meu rosto diante do seu,
enquanto dirige a mim um singelo olhar. Droga, acho que caiu um maldito cisco no
meu olho, tem até um pouco de líquido se juntando...
Assim, para selar a atitude do
abraço na hora certa, Ivan me beija. Uma nova torrente de sensações explode
dentro de mim, somada às que eu trouxe de lá da área da festa. E o seu beijo
inicia gentil, carinhoso, cuidadoso, gradativamente se transformando num
encontro mais envolvente, um desejo acumulado que agora pode desaguar feliz. Um
desabafo em forma de beijo.
Nesta confusão em que me encontro
por me deparar com a Anna, essa figura do passado que carrega a dualidade de
representar meu sucesso e minha derrota, meu coração encontra um porto seguro.
E meus músculos relaxam. Meus ouvidos ignoram qualquer barulho, e se perde no
silêncio tão significativo que se formou com o momento que estou dividindo com
Ivan. E, agora, meu coração não se permite mais negar: estou apaixonada outra
vez.
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