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10 de outubro de 2015

DESAPAIXONANTE -- EPISÓDIO 2x06: DANCING QUEEN



(Narrado por Milena)

Salto da cama de repente. Meus sentidos se dando conta da realidade ao redor, enquanto o barulho ensurdecedor de uma furadeira invade o quarto. Foi isso que me fez acordar. Olho o celular para conferir que horas são, e protesto em pensamento por ter alguém mexendo com furadeira às sete da manhã.
Levanto-me, muito chateada, e vou cambaleando como um zumbi bêbado para fora do quarto.
“Milena, calça umas sandálias. O chão está muito frio”, adverte minha “mãe”, Dana, preocupada ao me ver de pés descalços.
“Que barulho é esse? Por que o papai tá mexendo com furadeira?”
Uma das minhas irmãs caçulas passa por mim, ouve o que acabo de dizer, e retruca:
“Não é o papai. Isabela e eu estamos usando a furadeira. É um novo tutorial que a gente tá gravando pro nosso canal”, explica Laura.
Baita vontade de xingar, viu? Como se já não bastasse essas duas criaturas terem tomado tanto espaço no coração do meu pai, ainda por cima sabem usar ferramentas. Odeio filhos dos sonhos!
“Vocês não podem fazer isso um pouco mais baixo?”, eu devo estar com tanto sono que mal percebo o que estou dizendo. Ou será que dá para abaixar o volume numa furadeira?
Laura e a mãe se entreolham, e pelas poucas condições em que me encontro para compreender o que se passa, acho que Dana está dando uma bronca na filha só com o olhar.
Um dos meus grandes problemas é que, não importa com quanto sono eu esteja, se eu não voltar a dormir em alguns segundos após um despertar involuntário, não adianta mais. E já se passaram vááários segundos. Então, já era.


Chego à agência de óculos escuros. Preciso esconder as olheiras que se formaram por conta do pouco que dormi. Passei a madrugada anterior em altos papos com Ivan. É incrível como as conversas entre nós se tornam cada vez mais envolventes, e é raro não nos falarmos por, no mínimo, meia hora antes de dormir. Mas na noite passada a gente exagerou.
Descobri, por exemplo, que, além de canudos, Ivan coleciona discos de vinil, gravatas, cartões-telefônicos (“nossa, cara, você é tão retrô”), xícaras, broches, canetinhas hidrocor, figurinhas que vem com balas ou chicletes, relógios, bonés (os quais ele diz que quase não usa, por não encontrar “ocasiões apropriadas”), medalhas esportivas da época de colégio (“ui, desculpa aí, senhor eu-sempre-vencia-competições-de-futsal”), cartuchos de jogos antigos da Nintendo, pôsteres de filmes do Jet Li e do Jackie Chan, espelhos (!!!), pendrives, toalhas de rosto, entre outras coisas. No entanto, nada barra a bizarrice dos canudos. Além do mais, eu lhe disse para tomar cuidado ou vai parar num desses reality shows que exibem a vida de acumuladores.
O papo foi uma delícia, e eu só fui sentir sono por volta das 4. Agora, estou morrendo de vontade de dormir. Mal cumprimento Madonna, já lhe peço para arranjar um café bem forte. Entro na sala, esforçando a memória para recordar qual é o caso da vez. Tiro os óculos, ligo a central de ar (com cuidado para não deixar numa temperatura agradável demais, senão é capaz de eu ficar tão confortável a ponto de cair no sono aqui na sala mesmo). Alguém bate. Eu digo para entrar. Deve ser Madonna com meu café.
“Bom dia, sócia. Você tá com uma cara péssima!”, é apenas o Sávio me agraciando com uma dose de sinceridade matinal.
“Obrigada. Bom dia pra você também!”
“O que foi? As suas irmãs não deixaram você dormir?”
“Na mosca. Acho que podemos ganhar um dinheiro extra com seus poderes de vidente. O que acha?”
Ele ri. Parece bastante empolgada. Sinto-me tentada a assinar um cheque e pedir-lhe que me venda um pouco dessa preciosa alegria. Tenho um certo desdém por gente muito animadinha nas primeiras horas do dia, esse tipo de pessoa faz eu me sentir mal pra caramba.
“Bom, não foram só elas. Foi mais o fato de que passei a noite toda conversando com o Ivan”, resolvo abrir o jogo com meu melhor amigo.
“Eita! Você tá gamadona nesse cara, hein!”
“Ai, Sávio! Gamadona? Por favor, né? O que houve com você? Foi dar um passeio nos anos 90? Quem é que ainda fala assim? Além do mais, eu não tô “gamadona” no Ivan. É que a gente se fala bastante, tem muito assunto. Só isso”.
“Eu conheço você, Milena. É muito mais do que “ter muito assunto”. Dá pra ver que seu olhar tá diferente. Mas tudo bem, bom pra você. Você merece curtir a vida”.
“E você, hein? Por que tá tão alegrinho?”
“Ah, é verdade. Vou até me sentar”.
Ele se senta numa poltrona encostada à parede perto da porta. Eu me sento à mesa, do outro lado da sala. Cada pálpebra pesa meio quilo.
“Tá lembrada que a reunião da galera do Santo Cristo vai ser no próximo fim de semana, né?”
“Claro, você não me deixa esquecer”.
Semanas atrás, Sávio atendeu um cliente cujo irmão havia estudado conosco na escola Santo Cristo, o Carlos, vulgo Parente. E esse moço do apelido peculiar encasquetou que precisa reunir a galera da época do colégio, numa dessas típicas reuniões saudosistas. Eu até acho uma iniciativa interessante, mas duvido que haja mais do que meia dúzia de pessoas a fim de me rever. Nunca fui o que se poderia chamar de “popular”.
“Pois é. Mas tem uma novidade muito legal”, prossegue Sávio.
“Cancelaram?”
“Não! E dá pra parar com isso? Eu é que geralmente sou o antissocial aqui”.
“O mundo tá diferente, meu nobre Sávio. Não se admire se daqui a pouco a corrupção for erradicada no Brasil”, e é assim que você convence qualquer um de que você está embriagada de sono. Com essa, eu quase acordei pra valer.
Madonna bate na porta. Finalmente o bendito café pra me dar um up nessa manhã que está árdua de encarar. Sávio e eu damos uma pausa na conversa, enquanto a generosa Madonna traz três xícaras para nós (duas eu pedi para mim, mas ela é tão maravilhosamente solícita que trouxe também uma para o seu patrãozinho querido).
“E qual é a tal novidade?”
“O Carlos me ligou avisando que a festa vai ser temática”.
“Peraí! Oi? Festa? Quer dizer que agora vai ser uma festa? Não era só uma reunião? Gente, existe diferença entre reunião e festa. Como é que essa reunião foi promovida a festa?”
“Calma, Mile! É uma festa e uma reunião ao mesmo tempo, ora. Vai ter música, comida e pessoas. Logo, é uma festa. Essas pessoas não se veem há muito tempo. Logo, é uma reunião. No sentido de “unir outra vez”, entendeu?”
“E qual vai ser o tema então?”, indago, assoprando o café e observando o vapor subir, roçando minhas narinas, para então bebericar um pouco.
“Vai ser uma mistura de anos 90, que foi a década em que nós crescemos, com os primeiros anos da década de 2000, que foi quando estivemos no ensino médio. E tem um outro detalhe: vai ser uma festa à fantasia, baseada em elementos dessas décadas”.
“Caramba, sério?”, acho que agora eu acordei, mas pode ser uma espécie de efeito instantâneo do café.
“É, eu também não curto muito a ideia, você sabe que eu não gosto de chamar atenção, mas acho válido, já que todo mundo vai estar fantasiado”.
“Você acha que o povo realmente vai, Sávio?”
“Bom, segundo o Carlos, tá todo mundo animado. A galera quer se reencontrar, entende? Acho que vai ser legal”.
“Você tá muito animado pro meu gosto, Sávio. Tá com esperança de encontrar a Anna por lá?”
Oh-oh.
Droga, saiu tão sem querer... Bebo mais um gole de café pra disfarçar o quanto estou me sentindo uma idiota agora. Acabo queimando a língua com o líquido muito quente. Tá um clima estranho. O semblante de Sávio está modificado.
“Eu sei o que você tá pensando, Milena. Por causa do que aconteceu no fim de Junho, né? Você acha que eu não esqueci a Anna e que...”
“Sávio, desculpa. Eu não tô bem. Meu sono não tá me deixando raciocinar direito. Me desculpa, amigo, por favor”.
“Eu tenho vontade de rever o pessoal, Milena. Você sabe o quanto aquela escola foi marcante nas nossas vidas. Eu achei que você ia gostar da ideia muito mais do que eu. A Anna não foi a única coisa que eu vivi no Santo Cristo”.
“Sávio, por favor...”
“Ok. Eu vou pra minha sala. Tenho que escrever um relatório e... Depois a gente se fala”.
Sávio e eu raramente nos desentendemos. E quando isso acontece, fica um sentimento tão ruim no coração. Chato demais! Por que o Ivan tem que ser tão interessante e me deixar acordada até tarde, causando-me uma manhã difícil de fazer as coisas direito? Preciso parar de jogar a culpa nele. Eu já estava meio sóbria quando acabei soltando aquele maldito comentário. Infelizmente, eu o fiz baseado no que acredito. Não me exime da culpa de ter sido inapropriada com Sávio, claro, mas me bate uma sensação estranha ao ver que o meu primeiro “cliente” esteja prestes a ter uma recaída.


No fim das contas, a algumas horas da bendita festa, Dana resolve me ajudar com a minha fantasia. Escolhi uma coisinha que retrate um pouco o fato de eu não me sentir uma mulher normal, às vezes. Optei pelo traje de Úrsula, a vilã de A Pequena Sereia. É um vestido roxo justo, com partes do tecido extrapolando pelas laterais, imitando os tentáculos que ela possui. Se alguém reparar na minha barriguinha, é apenas um bônus para a composição do visual (quem já viu a Úrsula sabe do que eu estou falando).
Para entrar no clima do reencontro, já deixei rolando um pouco de Backstreet Boys numa playlist em meu computador, e não consigo evitar um ou outro passinho de dança, alternando com um pouco de cantoria (num inglês bem meia-boca). Dana, mesmo que já fosse universitária na época que essa boy band bombou, também entra na onda, e eu começo a me sentir meio mal por essa suposta cumplicidade. Ela não é minha mãe, e também nunca foi alguém que eu poderia chamar de amiga. Eu sei, devo desencanar, mas é o tipo de coisa com a qual não me sinto à vontade. Gosto das relações bem estabelecidas. Se não temos intimidade suficiente para reviver os áureos tempos de adolescência, fica uma situação desconcertante. Então eu fico curtindo as músicas em silêncio. Ah, um detalhe importantíssimo: já se foram os tempos de cabelo azul. Para combinar com a fantasia, pintei algumas mechas de roxo, o que me deixou bem satisfeita. Portanto, vou adotar de hoje em diante. Um louro platinado ou algo do tipo cairia muito bem para a proposta da personagem, mas gostei tanto da ideia do roxo...
Após muito hesitar, permiti que o Ivan viesse me buscar em casa. Fomos permitidos a levar um convidado, e para não ficar por baixo, quero mostrar pra turma das antigas que a vida tem sido generosa comigo.
Ivan está (como sempre) muito bonito, usando a fantasia de Power Ranger clássico azul, e eu acho tão fofo o fato de ele ter um lacinho em alusão ao Outubro Rosa.
“Você está linda!”, ele me dá uma olhada tão longa quanto intimidadora, maravilhado por me ver.
“Adorei sua fantasia de ranger azul. Cadê o capacete?”
Ele sorri e, com o polegar, indica o banco de trás do carro. Eu olho e lá está o capacete que completa o traje.
“Adorei a fitinha do Outubro Rosa”, eu o elogio pela segunda vez, o que claramente não está adequado. Não é bom uma garota como eu ficar elogiando um cara num intervalo de tempo tão curto. O pior foi que nos dois momentos eu usei a palavra “adorei”.
“Na verdade eu não consegui tirá-la, então resolvi deixar você me ajudar”.
“Eu ajudaria, mas... com esses tentáculos e o fato de ser meio estabanada, eu poderia te estrangular”.
Como essa piadinha foi o marco da comédia (Só que não, né?), caímos numa risada cúmplice e gostosa. A noite começa a fazer mais sentido. Aproximo-me um pouco mais dele, que está usando um perfume gostoso, e removo a fita rosa. Ele me vem com essa:
“Você mal se aproximou de mim e eu me senti num perigo que você não tem noção. Eu espero ser o único na noite a ser ameaçado pela sedução de Úrsula”.
“Fala sério, Ivan! Agora você virou um conquistador barato, foi?”
“Pôxa, eu achei essa cantada tão bem elaborada”.
“Já ouvi melhores”, eu sou um doce mesmo, não? Já me sinto redimida pelos dois elogios. Estou sorrindo, claro, para que ele não me leve a mal pelo comentário. É para parecer brincadeira, mas a verdade é que eu realmente já recebi cantadas melhores. A ocasião aqui apenas me faz concluir que não é a cantada que faz a diferença, mas quem a faz e como faz.
Assim que viramos na esquina da rua onde vai rolar a festa, já se ouve o som de Spice Girls cantando uma das minhas favoritas, Stop. Cretinos! Já me ganharam...
A casa de Carlos parece bem pomposa vista de fora. Sei que ele nunca foi rico, mas aparentemente as coisas deram certo na vida dele. Presumo que deva haver um espaço bem amplo, motivo pelo qual a festa não poderia acontecer noutro local senão aqui. Há três pessoas no portão, e uma delas é o anfitrião. Após tantos anos, será que pega bem chamá-lo pelo apelido de “Parente” ou é melhor ir pela zona de conforto e usar o nome de batismo mesmo?
Acabo não fazendo nem uma coisa e nem outra, pois fico simplesmente chocada ao descobrir que uma das pessoas paradas ali é o Sávio, fantasiado de alguma coisa que eu não consigo identificar.
“Olha ela aí!!”, ele me aponta como se estivesse indicando a próxima estrela que vai subir ao palco e agradecer por ter ganhado um Oscar. Pela alegria, acho que ele já provou um pouco de álcool.
Respondo com um sorriso sincero. O Carlos colocou uma faixa branca com os seguintes dizeres em preto: “Reunião da galera de 1997-2003”. Parece que ele tava mesmo a fim de resumir sete anos de história do colégio Santo Cristo numa única noite. Acabo sendo invadida por um nervosismo bobo, imaginando quem encontrarei hoje, quais sensações esses encontros irão desencadear. E quais surpresas terei ao me deparar com as novidades das pessoas. Até que me recordo que a minha popularidade era baixa demais para que isso se torne prazeroso como se supõe que deveria ser.
“Sávio, que fantasia é essa?”, eu cochicho ao ouvido dele, agora me certificando de que ele tomou mesmo alguma coisa.
“É o Liu Kang, do Mortal Kombat, mas como eu não curto ficar sem camisa, então eu sou um Liu Kang mais... reservado”, explica ele, ajeitando a peruca preta que faz parte da fantasia.
“Não teria sido mais fácil pensar em outro personagem que use camisa, em vez de descaracterizar outro?”
“Ah, qual é? Olha só pra você. O cabelo da Úrsula nem é roxo...”
“Vem cá, Ivan, deixa eu te apresentar o pessoal”, desconverso, virando-me para Ivan, a fim de socializá-lo.
Apresentações feitas, finalmente entramos. Usamos um corredor ao lado da casa, indo em direção a uma área nos fundos de onde vem a música e todos os outros barulhos. Eu estava certa: o espaço é amplo mesmo. Cerca de umas 15 pessoas já estão ocupando algumas mesas, todas conversando energicamente. Ao que tudo indica, mais gente está a caminho. Tanto entusiasmo deve ser por conta da saudade. Não dá pra reconhecer todas as pessoas ainda. Mas fico contente ao avistar Leandra Nunes, por exemplo, usando a fantasia de Dr. Brown, do filme De volta para o futuro. Ela, sim, teve coragem de apostar na coloração exata do cabelo do personagem. Ficou estranhamente bonita, levando-se em consideração que é uma esbelta de 27 ou 28 anos se passando por um velhote cientista. Maurício Pontes também está aqui, vestido de Bart Simpson, com direito a peruca loura espetada e tudo. Foi com ele que troquei meu primeiro beijo, numa dessas apostas que se fazia nas quais, se você perdesse, teria que pagar beijando alguém escolhido pela pessoa que te cobrou a aposta. Foi o primeiro e pior beijo da minha existência. Será que Maurício ainda é uma máquina desapaixonante ambulante instantânea? A julgar pela garota que está com ele, é provável que ele tenha melhorado.
Estou me sentindo um pouco má por estar “usando” Ivan para ser minha companhia quando eu não estou muito a fim de papo com meus antigos colegas. Hoje tá tudo trocado, pois o Sávio é quem deveria estar prestes a surtar assim.
Carlos, o “Parente”, se aproxima de nós enquanto All that she wants, do grupo Ace of Base, inunda o ambiente.
“Fiquem á vontade, viu?”, ele nos fala, apontando para um freezer do outro lado de onde decidimos nos sentar. “Podem pegar bebidas à vontade. Hoje é uma noite especial. Já deu pra sacar pelas músicas, né? Só vão rolar as balas hoje”.
“Que legal, Parente. Quero dizer, Carlos”, parabéns, Milena, sua micuda! Pelo menos parece que ele não ouviu.
Pelo visto não é só a festa que tem a temática de épocas passadas, mas até a linguagem empregada tem. Quem ainda usa o termo “balas” pra se referir a músicas?
Carlos se afasta, então fico sozinha com Ivan.
“Tô gostando do lugar. E você?”
“Ainda não sei, Ivan. Mas acho que a festa vai ser bacana”.
“Posso me sentar aqui com vocês?”, Sávio vem se aproximando, carregando um copo com mais um pouco de álcool.
Sinalizo que sim, claro, ele pode se sentar. Ivan e eu não somos um casal. Quero dizer, não no sentido romântico da coisa, então se a festa toda quiser dividir a mesma mesa, tranquilo.
Olho para minha esquerda e contemplo Suzana Vargas, outrora tida como a menina mais baranga do colégio. Ela está esplêndida, acho que sua fantasia é de alguma personagem de desenho japonês, acho que Sailor Moon, e ela caprichou na peruca loira. Só é meio estranho vê-la dançando a música do Ace of Base. Ficou gatinha, mas ainda continua desengonçada. Se alguém pusesse um bambolê em volta da cintura dela neste exato momento, cairia bem. Pelo menos ela está se sentindo de um jeito que eu gostaria de me sentir: solta e nem aí pra ninguém.
“Cadê sua convidada, Sávio?”, Ivan dá uma de mister simpatia e puxa papo com meu sócio, chamando-o pelo nome como se fossem velhos conhecidos.
“Não tinha ninguém pra trazer”, Sávio admite, e não parece dar a mínima para isso.
“Aquele ali não é o Chico Borges?”, pergunto, mas é mais um questionamento retórico do que uma busca por informação.
“Ele mesmo. Calvo e barrigudo. Quem diria?”, comenta Sávio, igualmente admirado pela realidade que antes seria considerada inimaginável para o tal do Chico Borges, que sofreu muito bullying na oitava série, por ter cabelos longos escorridos e uma estrutura corporal com a qual ele poderia tranquilamente se esconder atrás de uma vara de bambu. Bom saber que essa “nova fase” não o impediu de vir fantasiado de He-Man. E o Sávio com frescura porque não quer ficar sem camisa...
A esposa de Carlos, fantasiada de Pocahontas, é muito simpática. Ela veio até nós só para avisar onde poderíamos pegar algo para comer. Adoro gente que se preocupa com a fome alheia. Até porque comer, para mim, é um dos melhores rituais que te ajudam a lidar com eventos sociais. Você não precisa bater muito papo, pois está com a boca ocupada, e quando precisa falar ou responder dentro de uma conversa, o fato de estar manipulando comida te ajuda a pensar. Pelo menos comigo funciona muito bem.
Na mesa do bufê, encontro alguns rostos conhecidos, outros que não tenho certeza se conheço e outros que nunca vi. Entretanto, para todos os fins, acabo distribuindo sorrisos e enganando com algumas tiradas espirituosas, mantendo o ambiente agradável.
“Adorei a fantasia de Thundercat, hein!”, elogio alguém.
“Essa peruca de Mortícia Adams ficou show em você, só não acertou muito na maquiagem”, estou perto de Cibele Rocha, elogiando-a, apesar de ter deixado escapar a parte da maquiagem. Aí a moça fecha a cara e eu acho de arrematar: “Mas fica de boa, que pelo menos fica bem marcada a proposta de ‘horror’ da fantasia. E essa cara que você tá fazendo agora também ajuda bastante”.
Pela maneira como ela se afasta de mim, percebo que exagerei na interação. Do outro lado da mesa, sem me ver, Sávio parece um tanto preocupado, indagando algo a Carlos.
“Fica tranquilo, relaxa. A Anna não veio, nem vai vir”, é o que eu acredito que acabei de ouvir vindo de Carlos.
Sávio está um pouquinho “alto”, mas sua preocupação por uma iminente presença de Anna está bem sóbria. Espero ter escutado direito.
“Milena Kerber!”, diz uma voz atrás de mim.
Fico espantada ao perceber que é uma antiga professora de História. Sempre foi tão querida pela galera, não me admira ela estar aqui. Rápido, Milena! Qual é o nome da criatura?
Detrás dela surge Alberto, que a enlaça pela cintura e lhe dá um cheiro carinhoso no pescoço. Como um milagre, recordo-me que ela se chama Elvira. Só me lembrei porque na época do ensino médio, havia um boato de que ela estaria tendo um caso com um aluno. Mas quase todo mundo descartava. Agora, mais de uma década depois, a verdade se projeta e é confirmado que os boatos nunca foram mentirosos. Puxa, <> agora posso dormir mais tranquila por resolver esse mistério pendente.
“Eu fiquei sabendo da sua empresa. Achei tão fabulosa!”, diz a professora Elvira. “Eu poderia te passar uma lista infinita de clientes em potencial. Me adiciona no Face ou no zap-zap pra gente conversar melhor”.
Pô, professora, zap-zap?
“Ai, claro, professora, vou adorar falar com a senhora pelo WhatsApp”, eu dei uma boa enfatizada no nome do aplicativo.
Ela se afasta, agarrada ao namorado, e eu nem vou entrar no mérito de ela ter me pedido para adicioná-la no “zap-zap” sem nem mesmo ter me passado seu telefone.
“E agora, pra relembrar de uma apresentação inesquecível na Mostra Pedagógica...”, Carlos berra ao microfone, deixando-me a pensar em como se relembra de algo que JÁ É inesquecível.
Ele faz o sinal para o DJ, que também veio enturmado com o tema e está fantasiado de Batman, apesar de a roupa estar ridiculamente folgada. Começa a música mais famosa do grupo sueco ABBA, “Dancing Queen”. Oh-oh. Será que vai acontecer o que eu estou pensando?

You can dance, you can jive
Having the time of your life
Oooh, see that girl
Watch that scene
Dig in the dancing queen

Sei lá de onde raios elas apareceram, mas as mesmas meninas que apresentaram a coreografia de “Dancing Queen” estão todas reunidas, no meio do salão, repetindo a mesmíssima apresentação de 2002 ou 2003. E Anna, a famigerada Anna Munhoz está entre elas. Na verdade, na ocasião da apresentação no Santo Cristo, ela fez o papel de rainha da dança. E está fazendo hoje novamente.
Estou paralisada.
A alguns metros de mim, Sávio está boquiaberto. Se eu pudesse sentir o que ele está sentindo agora, acredito que uma corrente inexplicável de sentimentos estaria passando de ponta a ponta pelo meu corpo, vez ou outra fincando agulhadas em meu coração. Posso ver que ele não esperava por isso. Na realidade, nem eu.
Desde a ocasião em que Sávio mencionou que a reencontrou, tenho andado com a ideia fixa de que meu trabalho em ajudá-lo a se desapaixonar não surtiu o efeito esperado. Logo, todo esse tempo como agente da ANNA pode ter sido uma ilusão, uma farsa, uma carreira que eu alimentei à base de uma experiência que eu julguei como bem-sucedida. Saber que eu posso ter me enganado esse tempo todo é tão deprimente.

You are the dancing queen
Young and sweet, only seventeen
Dancing queen, feel the beat from the tambourine, oh yeah


Depois de tantos anos, jamais achei que fosse contemplar esse olhar de novo. O olhar de apaixonado do Sávio. Por mais que eu diga que conheça esse olhar, sei que ele vai negar. O olhar que eu o ajudei a perder. Ou que eu acreditava tê-lo ajudado a perder. Anna e as outras garotas, em suas respectivas fantasias para esta festa, estão mostrando que ainda sabem dar um show de dança. Com graciosidade, leveza e simpatia, ainda por cima. Não sei por quê, mas não consigo mais suportar assistir.
“O que foi, Milena?”, Ivan veio atrás de mim, certamente percebendo algo errado.
“Vamos lá pra frente da casa um pouco?”
Como um compreensivo cavalheiro, Ivan acata. Como é bom ter alguém que te aguenta no piti e não fica fazendo perguntas.
“Você tá se sentindo mal?”, ops, aí está ele, fazendo perguntas. Nem todo mundo é perfeito.
“Um pouco”.
“Quer que eu te leve em casa?”
Eu balanço a cabeça em sinal negativo, mas nem eu mesma sei. Porque também não tô no clima de ir para casa.
“É que eu... vi alguém”.
“Já sei. O cara fantasiado de Bart Simpson, né? Quem era ele? Um ex-namorado?”
Caramba! Vai ser observador assim lá longe, viu?
“Não, não foi ele. Foi uma mulher. A Anna”.
Ivan fica alguns segundos me olhando, a boca semicerrada, as sobrancelhas franzidas. Ele sabe o que é a ANNA (Agência do Negócio Nada Apaixonante), mas não sabe quem ela é. Principalmente, quem ela foi.
“Então o nome da sua empresa existe por causa de uma pessoa com esse nome...?”
“Sim. E ela tá lá dentro dançando lindamente”.
“Mas... eu não entendo. Por que isso te aborrece?”
Há momentos em que uma mulher não precisa se comunicar com palavras, mesmo ela sendo uma grande matraca. Há momentos em que uma mulher precisa se calar e apenas saber que tem alguém que se importa com ela, que consegue captar que naquele momento basta apenas um...
“Vem cá”, e a magia acontece quando ele pronuncia essas palavras. Ivan lê meus pensamentos, reconhece o meu momento e me puxa para um abraço quente, terno, companheiro e compreensivo. Não há outra escolha a não ser me refugiar nos braços dele. Não outra escolha porque é disso que eu estou precisando. Não importa o quanto eu esteja aborrecida, o porquê de eu estar aborrecida ou o simples fato de eu estar aborrecida. Um abraço não precisa de uma justificativa tão elaborada.
Levemente passando as mãos pelos meus cabelos por trás do meu pescoço, Ivan coloca meu rosto diante do seu, enquanto dirige a mim um singelo olhar. Droga, acho que caiu um maldito cisco no meu olho, tem até um pouco de líquido se juntando...
Assim, para selar a atitude do abraço na hora certa, Ivan me beija. Uma nova torrente de sensações explode dentro de mim, somada às que eu trouxe de lá da área da festa. E o seu beijo inicia gentil, carinhoso, cuidadoso, gradativamente se transformando num encontro mais envolvente, um desejo acumulado que agora pode desaguar feliz. Um desabafo em forma de beijo.

Nesta confusão em que me encontro por me deparar com a Anna, essa figura do passado que carrega a dualidade de representar meu sucesso e minha derrota, meu coração encontra um porto seguro. E meus músculos relaxam. Meus ouvidos ignoram qualquer barulho, e se perde no silêncio tão significativo que se formou com o momento que estou dividindo com Ivan. E, agora, meu coração não se permite mais negar: estou apaixonada outra vez.

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