Algum período dentro do ano de
2013
Em mais de uma semana ela não
mandou uma mensagem, muito menos ligou. Todo esse desaparecimento repentino vem
deixando Caetano incrivelmente disperso do mundo real, como que mergulhado num
universo paralelo, encasulado em si mesmo. Ela nunca agira assim. Ela sempre esteve acessível, ao alcance da mão.
Em outras palavras, mas sem soar vulgar, ela sempre foi uma garota bem fácil.
Caetano tem vertigens só de
passar com o carro em frente ao café em que sempre se encontravam. Quatro anos
de namoro!! Quatro anos em que aquele café estivera presente em sua vida como
oxigênio. Um dia, o fim chegara. Mas não foi o fim fim, aquele fim de verdade.
Houve uma volta. E outro fim. E outra volta. Para cortar o papo-furado, vários
fins e várias voltas. Esses frequentes absurdos de quando o amor gosta de nos
fazer de io-iôs humanos. No entanto... O mais recente fim está sendo diferente
dos outros. Mais cruel, mais frio, mais violento. Com mais cara de fim mesmo.
Não a encontrara mais na Internet
e aparentemente ela também trocara de número de telefone. Não era possível que
até de casa mudara. Certa noite, tomou coragem, após exatos 10 dias, pegou o
carro e se mandou atrás dela (ele jamais havia feito isso, sempre era ela quem
dava o braço a torcer, mesmo quando ele era o errado). Caetano estava se
sentindo outro homem, quase um louco ou mesmo um imbecil. Onde raios ela aprendera
a dar um gelo desse tamanho? Quanta ousadia de sua parte! Pelo visto, tudo
apontava para um único motivo: outro cara. Caetano era um rapaz sereno, mas em
questões amorosas, era um tigre de dentes e garras afiados sempre disposto a
proteger o que era “seu”. Já estava até com medo dos pensamentos macabros que
urravam em sua mente, caso ela estivesse de fato envolvida com outro. Caso ela
tivesse de fato lhe trocado por
outro. Àquela altura, seria capaz até de usar a violência para reavê-la.
Nessa mesma noite, Caetano
regressou para casa com o dobro de frustração. Ela simplesmente não estava em
casa. Ou, sei lá, mandou a mãe dizer que não estava. Apesar de insistir um
pouco em saber sobre seu paradeiro, tudo que conseguiu arrancar da mulher à sua
frente foi que a vida de sua ex-namorada andava normal e tranquila e que, no
momento, a mãe não sabia se ela estava na casa de uma amiga ou noutro lugar. Outro lugar. Foi como se alguém
arranhasse Caetano bem na espinha, lentamente. Insanamente, ele saiu rodando
pela cidade, numa busca inútil. Se bem que, diante das circunstâncias, uma
volta de carro, com o vidro da janela abaixado, poderia diminuir um pouco a
tensão, fazê-lo se distrair da dor lancinante que se lançava em forma de
saudade. A que ponto Caetano chegara?
“Cara!! Me conta o que foi que você fez pra emagrecer tanto?”,
perguntou Elias, melhor amigo de Caetano, cerca de 15 dias após o episódio
recém-relatado.
“Não consigo esquecer a Patrícia, mano. Eu tô quase pra ficar louco com
isso, mal como direito”, admitiu Caetano, encontrando em Elias o único
porto seguro capaz de ajudá-lo a encarar o fardo.
“Quase? Pra mim, você já ficou louco. Olha só, tá até usando um sapato
diferente em cada pé.”
Sim, Elias tinha essa liberdade
que só os grandes amigos tem, mesmo que o outro esteja em frangalhos. Caetano
olhou para os pés, parecendo surpreso. No pé esquerdo, um tênis esporte azul e
branco. No direito, um sapato de couro marrom. Voltou-se para Elias, deu de
ombros, dando a entender que as coisas andam tão péssimas que esse tipo de
coisa não fazia diferença.
“Não conseguiu contato com ela de jeito nenhum, Caetano?”
“Nada. A mulher sumiu, virou poeira. E eu fui na casa dela umas cinco
vezes, mas toda vez ela nunca tá ou... Sei lá, acho que estão mentindo pra mim
e é ela quem tá mandando dizer que não tá. Já pensei até em ficar de tocaia ali
por perto, sabia?”
“Mano, isso tá me assustando. Você não é assim.”
“Eu sei, Elias. Nem eu tô entendendo o que tá acontecendo. Eu
simplesmente tô agindo conforme o que eu tô sentindo. Eu não sabia que ela era
capaz de me causar isso. Eu não aguento mais.”
“Quem diria, hein!!”, Elias fez esse comentário baseado no que
sempre viu no relacionamento entre Caetano e Patrícia, em como o amigo sempre
se manteve confortável em sua posição de espera, pois Patrícia nunca levava
mais de dois dias para entrar em contato após uma briga ou um término. O
orgulho de Caetano estava ferido e, portanto, seu mundo estava do avesso. Uma
pequena engrenagem estava mudando todo o andamento das coisas. O Caetano
manipulador estava perdido, desnorteado, com as mãos que outrora carregavam o
controle da relação e que agora estavam vazias e atrapalhadas.
“Já sei!!!”, exclamou Caetano, como um cientista há muito intrigado
que finalmente encontra uma solução para um grande problema.
Pouca gente na fila do cinema. Há
anos Patrícia mantém o hábito de ir ao cinema no dia de seu aniversário. É uma
tradição. Tudo começou quando era criança e seu pai, hoje falecido, lhe dava
isso como presente, tão fã de cinema que ele próprio era. Se ela estava tão
empenhada em ficar longe do radar de Caetano, ela se esquecera desse detalhe. E
lá estava ele, presente quando ela chegara ao caixa para comprar o ingresso.
Chegando por trás, Caetano,
trêmulo, sussurrou:
“Feliz aniversário, Patrícia!”
Ela se tornara para trás,
ligeiramente assustada, a boca ficou seca. Embora mudos e apenas seus olhos se
encarando, estes travavam um diálogo cheio de significados. Havia muita dor e
ressentimento dos dois lados, mas no olhar de Caetano havia um brilho cristalino
de quem realmente fora surpreendido por aquele que estava parecendo o fim
definitivo da história deles.
“Meu filme tá começando. Tchau, Caetano!”, foi a única coisa que
Patrícia conseguiu pronunciar, num só fôlego, com algumas palavras saindo com mais
som do que outras, devido à pouca saliva.
Ele se posicionou na frente dela,
inflexível, mas ainda assim delicado. Parecia querer demonstrar que algo tinha
mudado em sua personalidade.
“Por favor, Patrícia. Vamos conversar. Eu estou há quase um mês sem
dormir direito, só tentando entender o que aconteceu.”
Meio avessa a escândalos ou DRs
em público, Patrícia respirou fundo e fez sinal para eles se afastarem da vista
e dos ouvidos de estranhos. Caetano acatou imediatamente.
“Bom, acabou, Caetano”, ela foi incisiva, direta, cortante.
“Como assim? Mas... Mas... Você me deve uma explicação!”
“Ah, por favor, não vem dar piti aqui, tá?”
Contrariado, ele resolveu
continuar acatando. Estava trabalhando intensamente numa paciência jamais
imaginada para aquele tipo de ocasião. Baixou o tom de voz e tornou a pedir:
“Por favor, Patrícia. O que foi que aconteceu? Por que você sumiu? Eu
só preciso saber disso.”
Ele nunca teve tanto medo de uma
resposta como estava tendo naquele momento. Os olhos de Patrícia pareciam ser
os de outra mulher, como de uma usurpadora que nutria uma indiferença
ameaçadora por ele.
“Caetano, eu é que não te entendo. Você que terminou. Não entendo por
que você fica atrás de mim. Acabou, acabou. O que você quer?”
“Patrícia, mas...”
“Mas a gente sempre termina e eu nem deixo passar três dias e já vou
correndo atrás de você, né? É essa explicação que você tá procurando, certo?”
Ele não podia admitir,
obviamente. Ainda mais naquela posição. Precisava provar a ela que era capaz de
mudar e não ser mais “aquele que controlava a relação”.
“Nem precisa responder, Caetano. Eu sei que é isso. Mas tudo bem, é
normal da sua parte.”
“Sendo isso ou não, por que você sumiu? Mudou de celular, cancelou a
conta no Facebook, nunca tá em casa.”
“Olha, eu nem preciso dar satisfação, já que nem somos mais namorados.”
“Patrícia, por favor! Foram quatro anos! Acho que significa alguma
coisa”, ele alegou em tom de súplica. Estava se sentindo humilhado, mas ao
mesmo tempo saboreando cada segundo da presença dela, do perfume dela. Podia
ficar naquela discussão num looping
eterno que não ia desejar estar em mais nenhum outro lugar.
Ela mordiscou o lábio, convencida
a dar a ele a tal explicação.
“Lembra daquela promessa que eu te fiz?”
Caetano ficou processando a
pergunta por intermináveis segundos. Culpou-se por ser homem, por ser tão ruim
em guardar conteúdos ditos por uma mulher. Mas, já que ele queria tanto a
verdade, teve de admitir que não fazia ideia do que ela estava falando.
“Até parece que você ia se lembrar”, Patrícia não resistiu a
alfinetá-lo. “Eu prometi a você que um
dia eu ia conseguir me desapaixonar. Lembra agora?”
“Desapaixonar?”
“Sim. Eu falei isso na nossa penúltima briga.”
“Mas... você tava falando sério?”
“Você sempre me subestimando, né, Caetano? Lógico que era sério.”
“Não, é que... Pelo que você me contou, eu achei completamente bizarra
aquela história. Como é mesmo? Uma empresa ia te ajudar a se desapaixonar por
mim, né? Algo assim?”
“É, exatamente isso.”
Caetano fitou o rosto da (agora
oficialmente, ao que parece) ex-namorada. Procurava sinais em seu semblante de
que ela acabara de lhe pregar uma peça, fazer uma piada sem graça. Ela tinha um
pouco essa mania, mas provavelmente não seria de bom tom fazer isso agora.
Quando se deu por vencido de que, por mais insólita que fosse aquela
possibilidade, aquela era a verdade nua e crua. Confrontadora.
“Espera um minuto! Você realmente tá querendo dizer que uma empresa fez
você parar de me amar, é isso? Patrícia, só pra ficar claro: você pagou pra...
pra deixar de gostar de mim? Pra se desapaixonar? Isso é insano!! Existem caras
que fazem esse tipo de serviço mesmo?”
“Sim, Caetano. É uma empresa chamada ANNA. E quer saber? Graças a Deus
que eles existem, porque agora eu me sinto muito melhor.”
“Patrícia, como você pode dizer isso? Eu sempre te amei. A gente teve
nossas brigas, mas isso não é motivo pra dizer que agora você tá muito melhor.
Sem mim.”
“Caetano, já que você atrapalhou meu filme, é melhor a gente ir embora.
Cada um segue seu rumo e pronto. Você queria uma explicação, eu te dei. Então
acho que o assunto tá encerrado.”
“Peraí, peraí, peraí!”, mais uma vez ele quase implorou, e Patrícia
se incomodou com a chance de estarem dando um showzinho particular na entrada
do cinema. “Só mais uma coisa, por favor.
Eu juro, só preciso saber de uma última coisa.”
“Que foi dessa vez?”
“O que eles falaram ou fizeram pra te convencer a não me querer mais?”
O escritório da empresa ficava
num prédio de três andares, desses que tem várias salas alugadas servindo para
diversas finalidades: advocacia, dentista, negócios e... aquilo, que apesar de
muito diferente de tudo que Caetano já ouvira falar, ele já estava aceitando
bem a existência desse tipo de serviço.
A sala que ele estava procurando
ficava no segundo andar, número 102. Abriu a porta. Havia uma antessala com uma
secretária praticamente escondida atrás de uma pilha média de papéis. A mulher
anunciou o cliente a seu chefe, que veio em velocíssimos segundos para
recebê-lo.
“Boa tarde, Caetano! Tudo bem?”
“Boa tarde”, respondeu um Caetano muito hesitante, morto de dúvida
se devia prosseguir com aquilo ou não.
“Seja bem-vindo à AMANDA. Me siga, por favor!”
Caetano e o homem sumiram do
ambiente em que ficava a mesinha da secretária, adentrando outro cômodo apenas
um pouco maior do que a antessala. Sentou-se na cadeira indicada pelo homem que
o recebeu, com o nervosismo ligado no máximo.
“Fiquei muito interessado em seu caso, sabia? Quer dizer então que sua
ex-namorada se desapaixonou por você completamente?”
“Sim”.
“Mas qual foi o motivo exatamente?”
“O motivo tá aqui”, nesse instante, Caetano abriu um envelope que
levava consigo, tirando algumas fotografias.
O homem examinou as fotografias,
mas logicamente não estava entendendo o que elas significavam exatamente.
Lançou a Caetano um olhar em busca de esclarecimentos.
“Mesmo depois do término, a minha namor... digo, a minha ex-namorada
andava com essas fotos porque, segundo ela, isso fazia ela lembrar o quanto
gastou tanto tempo da vida investindo numa relação sem futuro”.
“Aqui nas fotos você aparece alegre e sorridente cercado de amigos,
numas festas...”
“Pois é. Eu quase nunca levava ela nessas festas. Eu... tinha vergonha
dela...”
“Vergonha?”
“Longa história, cara. Enfim, você pode me ajudar ou não?”
“Calma aí, moço. Pra poder te ajudar, querendo ou não, você precisa me
contar tudo.”
Caetano teve de admitir o que,
agora, deixava-o se sentindo o babaca mais estúpido do mundo.
“Eu achava ela feia. E... não gostava de ver meus amigos com namoradas
bonitas e a minha tão... diferente. Então eu acredito que fizeram a cabeça dela
na tal empresa que ela contratou e fizeram ela perceber que eu fui um imbecil.
No dia que me encontrei com ela, ela me entregou essas fotos e disse que não ia
mais precisar, que já conseguia se sentir melhor sem precisar olhar pra elas.”
O homem pegou uma canetinha
hidrocor vermelha de dentro de um porta-lápis (onde havia mais uma enorme
quantidade de outras canetinhas hidrocor, de todas as cores imagináveis) e fez
um círculo na imagem de Caetano em uma das fotos.
“Então você descobriu a AMANDA e quer reconquistar essa mulher, não é
mesmo?”
“É tudo o que eu mais quero, cara.”
“Vou te dizer uma coisa, Caetano: não é à toa que o significado do nome
da nossa empresa é Agência Mais Adequada para os Negócios Do Amor. Aqui,
não importa o seu motivo: a AMANDA vai até o fim para deixar as pessoas juntas
e fazer o amor vencer. Esse Caetano que eu circulei na foto não vai mais
existir, tá compreendendo? E já que você está tão convicto do que quer, nossa
missão começa agora.”
O homem falava com tanto domínio
da situação que foi impossível aquele otimismo todo não contagiar Caetano. A
promessa de sua Patrícia de volta. Naquele exato minuto, aconteceu algo que em
muitos dias não vinha acontecendo: Caetano abriu um sorriso.
“Muito obrigado mesmo, viu? Como é mesmo o seu nome?”
“Ivan. Ivan Castro. O cara que vai te ajudar a recuperar o seu amor de
volta.”
E apertaram as mãos, selando um
confiante pacto entre empresa e cliente.
Algum período dentro do ano de
2015
A festa de um ano de casamento de
Patrícia e Caetano está ficando bonita. O plano do casal é para que todo ano,
sagradamente, eles celebrem o matrimônio com a melhor comemoração que puderem.
Caetano insiste em não abrir mão disso, alegando que sua linda mulher (palavras
dele) merece ainda mais do que uma festa. Contanto que ele não se oponha à ida
de Patrícia ao cinema em todo aniversário dela, tudo bem. Claro que Caetano não
se opõe, aliás, ele faz questão de cancelar qualquer compromisso só para poder
acompanhá-la, não importa a sessão que ela escolha ir.
Ivan Castro recebeu seu convite
para estar presente na festa. Ele não vai perder por nada, mesmo que atualmente
tenha se aposentado da AMANDA.
Quem está se sentindo estranha,
em algum lugar da cidade, é Milena Kerber. Ela viu o casal feliz da vida
fazendo compras num shopping. Milena
lembra da história de Patrícia e seu sofrimento em lidar com o namorado
controlador, e o quanto teve trabalho em conseguir que a moça finalmente
olhasse para dentro de si e descobrisse o amor-próprio. Contemplando a aparente
felicidade deles, Milena só pode engolir em seco o quanto não está entendendo
absolutamente nada.
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