(Milena)
Quem me conhece sabe que eu tenho
coisinhas mal resolvidas em termos de assuntos familiares. Uma mãe que faleceu
prematuramente, um pai que sempre pareceu estar ausente (até que um dia ele
passou a estar literalmente ausente,
por morar longe), irmãs com as quais eu não tenho o que se pode chamar de “a
relação mais bacana do universo”. Portanto, deve ser fácil imaginar o que
significa, para mim, ver que o Natal se aproxima. Nos últimos anos, papai e
suas outras mulheres têm vindo para cá para passarmos as datas de fim de ano
juntos, mas dessa vez não será possível, devido às complicações de sua vida de
professor com um calendário letivo desfavorável.
Eu estaria satisfeita e
devidamente consolada por ter Ivan, mas ele tem uma viagem bem na véspera de
Natal, para alguma cidade do interior. Meio que me ofereci para ir com ele, mas
a propaganda negativa que ele fez sobre o trajeto foi bastante desencorajante.
E, quando eu penso que será uma
noite deprimente, recebo uma ligação na sede da ANNA. Madonna, que graças a
Deus está de volta à ativa, me passa a ligação.
“Bom dia, Milena falando”.
“Oooiii, Milena, minha querida!”
Esse jeitão meio escandaloso é
inconfundível: dona Lola Miranda, mãe do Sávio.
“Oi, dona Lola, tudo bem?”
“Tudo ótimo, graças a Deus. Olha, linda, você não quer vir passar o
Natal com a gente? Já tô até arrumando o quarto do Dominique pra você. Ele
dorme com o Sávio, não tem problema nenhum. Não vai vir muita gente, pode ficar
despreocupada, e a variedade de comida vai ser boa. Você gosta de salada de
batata, né? Vou preparar uma bem caprichada especialmente pra você. Posso pôr
azeitona, meu anjo?”
Ai, meu Deus, quanta coisa para
processar. Nem sei por onde começo. Sem falar que as coisas entre Sávio e eu
ainda não estão, digamos, esclarecidas. Sem mencionar, também, que nem sempre
tô no clima para as brincadeirinhas da dona Lola sobre eu me casar com ele.
Bom, é isso ou umas taças de vinho e acompanhando a suposta alegria alheia
natalina pelas redes sociais. Na balança das coisas deprimentes, qual situação
parece menos triste?
“Obrigado pelo convite, dona Lola, mas a senhora falando desse jeito me
faz sentir como se eu estivesse dando trabalho...”
“Ai, menina, que nada! Você sabe que, pra mim, você é como uma nora.
Não é trabalho algum. Te aguardo na Quarta, viu?”
“Ah... Ok. Então até quar...”, eu quis concluir, mas ela já
desligou e eu só ouço um insistente tu-tu-tu...
Pelo menos a salada de batata
está garantida.
Mal essa chamada se encerra, o
telefone toca outra vez.
“Tem uma cliente na linha, dona Milena, uma tal de Vitória”, avisa
Madonna.
“Pode passar”.
Converso com uma senhorinha meio
esbaforida por uns dois minutos. Não é a primeira vez que me comunico com a
dona Vitória Amaral. Parece que hoje o dia está reservado para ligações de
senhorinhas esbaforidas.
Após o fim do papo, encontro-me
preocupada. Respiro fundo, saio da minha sala, vou até o outro lado do corredor
e bato à porta do sócio.
“Tá aberta”, ele grita lá de dentro.
Eu entro e, já pela minha cara,
Sávio se deixa contagiar:
“Aconteceu alguma coisa, Milena?”
“Tá preparado pra encarar um caso de zona mortal?”
O último lugar que eu imaginei
aparecer numa segunda-feira à noite, ainda mais a trabalho: um bar de
comediantes. Acompanhada de Sávio, estamos aqui para uma missão de zona mortal.
A mãe de um ex-cliente, que é um comediante de Stand-Up, me ligou esta manhã insistindo que o filho tivera uma
recaída pela paixão da qual o livramos há cerca de um ano, e que isto o vem
deixando transtornado. Lembro-me como este caso não foi fácil na época, mas
confesso que hoje, com minha autoconfiança profissional abalada, não tenho a
mínima noção de como a ANNA vai se sair.
“Então aqui fica a famosa Comedy House...”, Sávio comenta, enquanto entramos e escolhemos uma mesa.
“Famosa, é? Só ouvi falar nela hoje, por meio da mãe do Beto. Pensei
que você já tivesse vindo aqui”.
“E eu pensei que você já
tivesse vindo aqui. Sei lá, com o Ivan...”
Estamos nesse debatezinho inicial
porque, na primeira vez que cuidamos do caso de Beto, ele trabalhava como
representante comercial, desses que
vão às escolas e faculdades tentar empurrar algum produto aos estudantes. Se
bem que, na prática, é quase a mesma coisa de ser comediante de Stand-Up, pois o método é bem
semelhante: um cara em pé em frente a uma plateia e que tenta enchê-la com
informações aparentemente verídicas, mas que não devem ser levadas a sério.
“Você sabe que eu não gosto que me vejam rindo em público. As pessoas
geralmente não estão preparadas pra aceitar alguém que sabe interagir com uma
boa piada”.
“Ah, é. Eu tinha me esquecido desse detalhe. Mas se hoje você for
alvejada por uma piada daquelas, como pretende se safar da censura pública?”
“Da mesma maneira de sempre”, respondo, com ar de indiferença. “Contagiando todo mundo com minha risada que
lembra uma hiena em chamas”.
Passando por cima do falso tom de
cumplicidade entre nós, Sávio avalia:
“Seu humor tá meio... estranho”.
“Jura?”
Fui incisiva demais ao dizer
“jura”, com um tom exageradamente enfático. Mas não estou pensando em me
desculpar. Sávio, claro, percebeu. Mas ele também não vai levar adiante.
“Senhoras e senhores, boa noite e bem-vindos ao Comedy House”, cumprimenta o anfitrião ou seja lá o
que for do bar, um sujeito negro de óculos de aro grosso e bem-apessoado para
um comediante. Afinal, o que eu esperava? Um maluco vestido de palhaço?
“Meu nome é Neto Medeiros e eu serei o host da noite. Antes da nossa primeira atração, eu gostaria de chamar a
atenção de vocês para um fato”, isso geralmente faz parte de uma introdução
para alguma narrativa humorística. “Já
repararam que quando tá chegando o Natal começa a bater um espírito de bondade
totalmente do nada?? Impressionante, né? A minha sogra é adepta dessa bondade
temporária. É a única época do ano que ela não me xinga. O resto de Dezembro
ela passa jogando na minha cara o quanto foi ‘legal’ comigo”.
Quase todos riem dessa piada
insossa. Sávio esboça uma risada, mas sem muito envolvimento, enquanto passa
rapidamente pela minha cabeça se ele já vem sendo xingado pela mãe da Anna
Munhoz.
“Fiquem com nossa primeira atração da noite, galera. Ela chegou
recentemente pra fazer parte do Comedy House, então recebam com muito carinho a estreia de... Rita Lina!!!”
Sávio (já devidamente a par dos
últimos acontecimentos sobre Rita Lina e sua ascensão dos mortos) e eu nos
entreolhamos. É, eu devia ter botado mais fé quando ela disse que era um
“espírito livre”.
“Boa noite, GALERA!!!”, ela nos saúda com uma estranha desenvoltura
para alguém que está estreando num
palco de stand-up. Seus olhos graúdos nos observam atentos. Ou então seja só
impressão causada pelo fato de eles serem tão expressivos.
“Uau, tô tão nervosa”, ela inicia. “Como vocês ouviram, é a minha primeira vez como comediante, e tô tendo
uma sorte imensa de estar estreando num bar tão legal. Mas eu não vim
despreparada, eu treinei muito pra isso. É... eu treinei durante 29 anos,
sempre servindo de palhaça pra vida”.
A plateia cai na risada imediatamente.
Rita Lina tem bastante carisma. Quem diria que, apesar do assunto delicado que
vim tratar aqui, parece que vou ter um pouco de diversão.
“Deixa eu perguntar uma coisa pra vocês”, ela prossegue. “Vocês acreditam em vida extraterrestre?”
Ninguém assume ou nega, e o que
rolam são uns burburinhos que não deixam bem claro qual é a posição do pessoal.
No entanto, dando uma rápida olhada ao redor, vejo que alguns não dispensam a
possibilidade. Muito bem, Rita, com um tópico fácil de arrancar gargalhadas de
tão esdrúxulo, até eu subo nesse palco.
Ela sai do palco após quinze
minutos muito bem conduzidos, sob calorosos aplausos do público. Quando percebe
nossa presença, vem até nós.
“Ei, que legal vocês estarem aqui. Como sabiam que era minha estreia?”
“Na verdade, a gente veio por causa de outro comediante, um cliente
nosso”, explica Sávio. “A propósito,
seja bem-vinda de volta, Rita”.
Está estampado na cara de Sávio o
quanto ele se sente um alienígena ao dizer isso, e sou tomada por uma enorme
vontade de rir, mas não desisto de me manter reservada.
“Quer dizer que seu novo emprego é comediante!?”, friso para Rita. “Então é daí que vem todas aquelas histórias
de Valpixianos e tal?”
“Credo, Milena, não”, ela se ofende seriamente. “Eu jamais brincaria com isso. Como pôde
pensar isso de mim?”
“Ah, perdão...”, eu me desculpo, quando na verdade gostaria de
enterrar a cabeça no piso deste bar.
“Eu apenas gosto de explorar diversos ambientes empregatícios. Não sei
quanto tempo vai durar essa fase de comediante stand-up, mas eu tô adorando”.
“Você foi muito bem”, Sávio elogia.
“O único problema é o assédio dos fãs”, ela chega mais perto e
cochicha. “Tem um cara ali que quase tirou
minha roupa só com o olhar. Queria ver ele ficar com essas gracinhas lá em
Valpixia. Será que ia ter coragem de dar um dos pulmões pra selar o pedido de
casamento?”
“Sério? Uau, o Brasil podia pegar alguns costumes Valpixianos
emprestados, né? Isso intimidaria o assédio”, opina Sávio, dando vazão ao
seu indefectível sarcasmo.
Olho para a direção que ela
aponta e vejo o tal rapaz de quem ela falou. Além de esquisito, ele está
hipnotizado e não tira os olhos de Rita. Ele é estranhamente familiar, mas de
onde o conheço?
“Ei, eu acho que sei quem ele é”, arrisco, após um tempo de
ponderação. “Parece com o carinha que
trabalha na capela funerária onde rolou o seu... ahn... a sua... Como posso
dizer?”, eu fico que nem uma tonta estalando os dedos, procurando um termo
adequado.
“Onde eu reiniciei”, ela completa, e é bizarro como isso não soa
estapafúrdio vindo dela.
“É... Onde você reiniciou...”, confirmo, e vindo de mim parece
surreal.
Rita dá de ombros, e o fato de o
rapaz talvez ser quem eu penso que seja não lhe causa qualquer interesse.
“Adoraria conversar mais com vocês, mas estou cansadona. A gente se vê
por aí”, ela se despede.
Sávio e eu retribuímos a
despedida e, como sempre acontece após uma interação com Rita, trocamos outro
olhar cúmplice sobre o quanto nos divertimos com suas peculiaridades. Já nem
sei mais por que a gente ainda se surpreende.
“Espero que o Beto seja o próximo”, torço.
E minhas preces são atendidas.
Nosso ex-cliente, que nem sabe que estamos aqui para conversar seriamente sobre
sua paixão incurável, é anunciado pelo mesmo host que apresentara Rita.
“Que tal ele parece pra você?”, indago para Sávio.
“Parece bastante profissional”, diz ele. “Quero dizer, ele é comediante, né? Não pode aparecer na nossa frente
fingindo que não tem diagnóstico de depressão e que toma remédio pra isso”.
“A mãe dele falou que ele continua indo atrás da tal Nádia...”,
conto, e dou uma respirada de frustração. “Pra
ser sincera, eu nem sei por que aceitei vir aqui. O nosso trabalho com esse
caso foi ano passado. Se ele teve uma recaída, o que eu posso fazer? Não seria
a primeira vez que alguém teve uma recaída, né?”
“Milena, por favor”, Sávio tenta me censurar por eu começar a ser
direta demais a respeito de minhas decepções. “A gente ainda vai conversar sobre isso, mas essa não é a hora. Além
disso, não é o primeiro caso de zona mortal que a gente enfrenta, então vamos
agir com todas as nossas armas”.
“Armas...”, repito, com uma sincera falta de ideia de quais armas
serão essas.
Beto Amaral está se apresentando
todo animadinho e fazendo a galera praticamente se contorcer de tanto rir. Eu
poderia me enquadrar nessa situação, se estivesse prestando atenção ao show. Queria ter a mesma serenidade de
Sávio, que, mesmo ciente da nossa missão, não está perdendo um segundo de cada
apresentação no bar. Contudo, é quase palpável que existe uma nuvem negra
pairando sobre nós dois. E o fato de estarmos juntos lidando com um caso em que
o cliente voltou ao objeto de paixão apenas piora o quadro. Ainda bem que
ninguém pode sondar minha mente, pois estou me sentindo tão irritante com essa
minha nova mania de me achar uma profissional medíocre. O problema nisso reside
na questão de que eu não posso simplesmente trabalhar em negar a mim mesma o
que se passa. Eu ando me questionando sim. E ando me pondo em xeque também, de
um modo que chega a desequilibrar meu sono. O suposto talento que sempre
acreditei ter, o faro para o negócio que gerei, a habilidade em ajudar as
pessoas com paixões indesejadas. Por que, de repente, me sinto como uma anciã
enferrujada, cega, de tato descuidado e sem prática?
“Sabe, pessoal”, Beto está falando em cima do palco, “eu não sei em outros lugares, mas aqui no
Brasil os médicos são tratados tipo uns deuses, já sacaram? Cê tá esperando pra
ser atendido no hospital e, quando finalmente chega sua vez e você vai entrando
na salinha do médico, ele ou ela tá lá, todo vestido de branco, parecendo uma criatura
intocável, um ser divino dotado de glória e poder”, ele não só fala como
gesticula dramaticamente, a fim de dar um acompanhamento corporal à sua
história. Isso cria uma boa sintonia com o público, porque mostra que ele não é
apático. E o jeito como ele se move incita ao riso. Se eu entendesse de
técnicas de comédia, diria que ele está procedendo muito bem. Porém,
ultimamente, não tô dando conta nem de analisar a comédia que é a minha vida.
“Dia desses eu tava nessa situação”, continua Beto. “Entrei na salinha, o médico perguntou o que
eu tinha, eu falei, aí ele me mandou tomar uma medicação, passou uma receita e
no final perguntou se eu tinha entendido. Eu respondi ‘amém, Senhor’. E com as
mãos pra cima e os olhos fechados que nem um imbecil. Eu falei ‘pôxa, doutor,
foi mal aí pela mancada’, e então ele balançou a mão e disse ‘tá, meu filho,
agora vá e não peques mais’”.
E Beto consegue angariar várias
gargalhadas, mas mal dá tempo para as pessoas rirem o tanto que gostariam, pois
a dinâmica do Stand-Up nos força a
voltar imediatamente a prestar atenção à fala dele, que já está seguindo com
outra narrativa.
E sua performance vai perdurando.
Histórias sobre pessoas desempregadas, estranhamente linkadas a piadas sobre relações entre casais (um clichê presente
em 100 de 100 apresentações de Stand-Up)
e por aí vai. Não sei se sou eu que estou muito azeda hoje ou se o repertório
de humor não tá me ganhando, mas eu mal movi os lábios para rir durante a noite
toda.
Finalmente Beto recebe seus
aplausos finais e sai de cena. Sávio me olha, sinalizando que vai buscá-lo e
trazê-lo para a nossa mesa. Olho para onde estava sentado o suposto admirador
de Rita Lina, mas o cara já evaporou daqui. No fim das contas, acho que ela
tava certa sobre ele ser seu fã.
Sávio e Beto chegam à mesa. O
comediante já não parece tão animadão assim. Olhando para ele agora, apenas
parece ser um mero mortal, ao invés de alguém com o invejável poder de alegrar
aqueles ao seu redor.
“Sávio e Milena, quanto tempo!”
“Beto, antes de qualquer coisa, quero que saiba que adorei o seu show”,
elogia Sávio, extraindo um sorriso dúbio do nosso novo parceiro de mesa.
“Obrigado, Sávio. E você, Milena, curtiu?”
“Acho que foi legal, mas é que eu sou muito chata, então não rio fácil”,
eu meio que estou mentindo porque o problema do meu azedume está muito bem
direcionado ao dia de hoje.
“Comédia é uma parada difícil”, ele comenta. “Cada risada que eu consigo com uma piada vale mais do que qualquer
cachê. Mas enquanto não puder pagar as contas com reconhecimento e gargalhadas,
tô aceitando o dinheiro”.
“Sua mãe ligou pra agência, Beto”, corto a mini palestra dele e vou
direto ao ponto. “Ela tá preocupada com
você, disse que você ainda não esqueceu a Nádia”.
“A gente tá aqui pra te ajudar, Beto”, explica Sávio. “Mas existe um porém: você quer ser
ajudado?”
O semblante de Beto se revela
ligeiramente preocupado, como alguém que descobre uma conta não paga depois de
ter estourado todo o orçamento do mês.
“Eu não sei... Quero dizer, não é que eu acredite que eu e Nádia vamos
voltar, mas é que... É complicado”.
“Por quê?”, questiono.
“Bom, não sei explicar. Eu realmente estava muito bem depois que vocês
fizeram o serviço de desapaixonamento. Por quase um ano eu tava livre da Nádia.
Eu nunca tinha me sentido tão livre em toda a minha vida. Mas aí, uns dois
meses atrás, comecei a fazer umas besteiras...”
“Tipo o quê?”, Sávio se interessa, enquanto acena para o garçom vir
até nós.
“Fui verificar como tava a vida dela. Falei com uns amigos que temos em
comum, dei uma fuçada nas redes sociais, inventei uma conta falsa só pra
segui-la no Snapchat, e sei lá, ela
continua mais engraçada do que nunca, isso meio que me cativou de novo”.
“Engraçada? Ela é comediante também?”, indago, juntando as peças.
“Não. Mas brincou com meu coração de um jeito que não teve a menor
graça”, ele desune as peças que eu havia juntado, usando uma sacada que eu
devo admitir que ficou legal. “É que a
melhor característica da Nádia sempre foi me fazer rir. Ela sempre teve um
humor incrível”.
O garçom se aproxima. Sávio pede
uma cerveja para si e Beto solicita o mesmo. Pergunto se eles têm o drinque “Me
Encante” e os três me olham como se eu tivesse recitado um poema escrito numa
fusão entre grego e russo.
Me desculpo por esquecer que essa
bebida é exclusividade do bar do Ivan, então peço ao garçom que me traga apenas
água (“água você tem, né, queridão?”,
eu não desisto de ser um docinho, não importa o momento). O atendente confirma
que sim, eles têm água no bar, mas faz isso com uma extrema cara de bunda
trancada, que eu noto que não sou única que não foi influenciada pelo clima de
comédia pulsante que está rolando por aqui. Ele então sai para providenciar os
pedidos e nós voltamos ao papo.
“O negócio é o seguinte, Beto: sua mãe me ligou hoje de manhã e,
segundo ela, você tá sofrendo muito desde que sua paixão por Nádia se reacendeu
com tudo”.
“Minha mãe exagera um pouco. Sabe como é mãe, né?”
“Sei...”, concorda Sávio, todo condescendente.
“Eu sei mais ou menos. A minha está morta”, declaro.
“Desculpa, Milena”, diz Beto, sinceramente sentido. “Mas a verdade é que, como eu disse, é
complicado. Eu tive uma história com a Nádia, mas não é como se eu estivesse
desesperado por causa disso”.
“Não?”, eu falo, em tom refutador. “Então nos explique isto”, eu apanho o celular na bolsa, encontro
um print de uma mensagem que a mãe
dele me enviou e lhe mostro.
“O que é isso?”, ele gagueja.
“Sua mãe me enviou hoje esse print de uma mensagem que a Nádia deveria ter enviado a você ontem, mas ao
que parece ela mandou errado pra sua mãe. Pelo que entendi, é que seu antigo
número é da sua mãe agora, não é isso? Mas quando a Nádia foi responder alguma
mensagem sua, ela não atentou que você agora tem um número novo e enviou pro
seu antigo, fazendo com que a mensagem chegasse ao telefone da sua mãe. E, meu
caro Beto, pelo que dá pra ver na mensagem, você deve ter feito alguma coisa
digna de um... desesperado”.
“A gente tá bastante preocupado, Beto”, endossa Sávio. “Nessa mensagem, a Nádia diz que ‘isso está
ficando assustador’ e que, se você não parar, ela vai ter que acionar as
autoridades. Cara, pelo amor de Deus, o que é que tá ficando tão assustador?”
“Sei lá, eu não faço ideia do que...”
“Beto, por favor, não minta pra nós. Só queremos ajudar”, insiste
Sávio.
“Você andou ameaçando ela?”, pergunto.
“O quê? Claro que não! Olha, é verdade, eu descobri que ainda gosto
muito dela, mas eu juro pra vocês que não tô fazendo nenhuma loucura. Eu nem
sabia que ela tinha mandado essa mensagem”.
“Então o que dizia a mensagem que você mandou e fez ela responder isso?”,
inquiro.
“Eu apaguei a mensagem”.
“E não se lembra do que tinha escrito?”, pressiona Sávio.
“Eu escrevo várias coisas pra Nádia. Talvez ela esteja se sentindo
perseguida, deve ser isso”.
“Se for assim, você está falhando miseravelmente em querer reconquistá-la”,
afirmo.
“Milena...”, Sávio reprova minha sinceridade.
“Milena tem razão. Minha cabeça tá meio perturbada. Assim como meu
coração. Como é que eu pude me reapaixonar? Eu pensei que o serviço de vocês
era à prova desse tipo de coisa”.
Sou atingida em cheio com o que
ele diz. Gostaria de admitir que eu também sempre pensei a mesma coisa.
“Mas não se esqueça que quem brincou com fogo foi você, Beto”,
Sávio retruca. “Se você não fosse tão
curioso a respeito da sua ex-namorada, quem sabe não estaria nessa encrenca
agora”.
Que bonitinho, Sávio!! E a sua
justificativa, qual é?
“Verdade”, reconhece Beto. “Bom,
vocês estão certos. E a minha mãe também, fazer o quê? A gente vive teimando
com as nossas mães, mas no final elas só querem nosso bem, né?”
“Dá pra parar de usar mães como referência?”, eu alfineto, mesmo
não estando tão incomodada. Apenas sendo um docinho, apenas sendo Milena
Kerber.
Beto espalma as mãos em sinal de
desculpas, e o garçom está de volta, com as cervejas e a água.
“Vou aceitar a ajuda de vocês e... se vocês conseguiram da outra vez,
vão conseguir de novo”, aposta o comediante.
“Esse é o espírito!”, comemora Sávio. “Não é mesmo, Mile?”
“Claro”, concordo, apesar de saber que não convenceria ninguém com
essa falta de fé tão evidente no meu olhar.
“Estou nas mãos de vocês de novo”, diz Beto, pegando a cerveja que
o garçom acabou de repousar sobre a mesa e dando um generoso gole. Ele sorri. É
bom ver que está mais confiante do que eu.
The Verve está tocando. Eu desperto como quem é bruscamente puxado
de um sonho e leva um pouquinho de tempo até realizar que Bittersweet symphony ainda é o toque do meu celular. Entre espiar
no identificador quem está ligando e uma olhadela no horário no cantinho
superior da tela do celular, um estranho temor me invade. Eu não estou
esperando uma ligação às sete e quinze da manhã.
“Alô”, já vou logo falando, sem me preocupar se a voz sairá mal
articulada.
“Milena, desculpa o horário, aqui é a Vitória”.
“Pode falar, dona Vitória”.
A voz dela está extremamente solene e isso
começa a me dar calafrios.
“Eu liguei porque os seus serviços não serão mais necessários”.
Ajeito-me na cama, de modo a
ficar sentada para poder me concentrar na conversa.
“Como assim, dona Vitória? Tá tudo bem?”
“Eu encontrei o Beto no quarto dele hoje, por volta das cinco e meia.
Ele se enforcou”.
Depois da ligação (que eu nem
lembro direito como terminou; acho que dona Vitória começou a chorar e murmurou
alguma coisa antes de desligar), fui tomada por um assombro tão gigantesco, um
silêncio tão arrebatador, que simplesmente desabei em minha cama e fiquei lá,
por pelo menos uma hora, imóvel, impactada, alvejada duramente pelas palavras
da mãe do Beto.
Suicídio.
O peso dessa palavra e a
brutalidade de seu significado criam uma casca gelada e tão potente ao nosso
redor que é praticamente impossível se desvencilhar dos estragos que isso
causa.
Mesmo eu não sendo da família e
jamais ter tido alguma relação significativa com ele que ultrapassasse a
formalidade entre cliente-empresa, é inegável a dimensão que tal ato toma
quando você “conhece” os motivos que lhe originaram. Nunca, em toda esta
trajetória enquanto agente do desapaixonamento, imaginei que “zona mortal”
ganharia tons tão literais. Isso é muito doloroso, muito agressivo e
traumatizante.
Hoje é quarta-feira, véspera de
Natal. Todo mundo na casa do Sávio está sabendo do que se sucedeu ontem.
Obviamente, ninguém cancelaria uma comemoração familiar por causa da morte
inesperada de um rapaz que mal conhecíamos. Eu estou fazendo uma social aqui,
mas dá pra sacar que eu estou bastante abalada e acho que todos estão me
respeitando. Sávio não conhecia o Beto tanto quanto eu, pois na época que a
ANNA foi contratada para resolver seu caso, eu fui a agente em campo.
Nunca conheci um suicida. Conheci
candidatos em potencial, mas que nunca sucumbiram à tentação de se desintegrar
para sempre das agruras que a vida provê. Saber que você teve participação na
vida de uma pessoa que, mais tarde, tiraria a própria vida, te faz recapitular
toda sua interação com esse alguém e investigar o quanto de influência, por menor
que seja, você poderia ter exercido tanto para contribuir com esse mal quanto
para dissuadir a pessoa de tal decisão. Tomar conhecimento que alguém se matou
só me faz concluir o quanto não estamos preparados para encarar esse tipo de
problema, que vai se tornando cada vez mais banal.
Tento sorrir, me entrosar, mas a
mente volta e meia para na mesma estação obscura. Suicídio. Meu Deus, o cara era comediante!! Isso deveria fazer
algum sentido? Pois não faz o mínimo sentido!! Num gesto de desespero que
esteve mascarado esse tempo todo, Beto nos deixou como último ato uma piada.
Sem graça, de gosto duvidoso, mas ainda assim uma piada. Acho que o profissionalismo
dele era tão intrínseco que ele se obrigou a fingir que sua dor era menor do
que realmente era e... Nossa! Eu tento, tento e tento me desviar desses
pensamentos, e não consigo. Não consigo me conformar. Esse paradoxo é emocionalmente
esmagador demais para eu me recompor tão rapidamente.
Anna não está aqui. Ela tem de
passar o natal com a família, que mora em outro estado. Na verdade, eu nem
tinha me tocado que aceitara o convite de dona Lola sem sequer verificar como
seria ter de lidar com a presença desagradável da namorada de Sávio, até que
ele próprio comentou como seria e eu fiquei me perguntando se ele fizera de
propósito, ciente de que eu não me sentiria legal com ela por perto.
Suicídio.
Como ele pôde? Ele nem esperou
sequer uma ação da ANNA em seu favor. Como o Beto pôde...?
“A salada de batata já vai ser servida, filha”, avisa dona Lola,
tirando-me do devaneio maligno.
“Ah, obrigada, dona Lola”.
Ela dá um sorriso sem mostrar os
dentes, apenas para estabelecer um gesto de gentileza, e sai para cuidar de
outras coisas. Ela sabe que eu não tô num clima festivo.
“Ei, Mile”, Sávio se aproxima. “Como
você tá?”
“Eu não sei. Ainda tô em choque”.
“Eu imagino. Deve ser terrível. Imagino como deve estar a mãe dele”.
“Bom, já eu não consigo imaginar. Esse tipo de coisa é inimaginável”.
Sávio me estende um copo, que eu
pego com certo desinteresse, apenas por necessidade de distração. Pelo cheiro,
é refrigerante.
“Como ele pôde, Sávio? Tipo, o emprego dele era fazer as pessoas
rirem”.
“E a gente tinha falado com ele um dia antes. Ele tava tão bem, tão
confiante, tão... alegre”.
“Mas só Deus sabe como era o tamanho da dor dele. E o quanto ele deve
ter suportado. Sávio, há quanto tempo será que ele vinha aguentando? Será que
ele vinha planejando se matar há muito tempo?”
“Mile, por favor, vamos deixar pra conversar sobre isso outra hora,
outro dia? Eu sei que foi um tremendo choque, mas não há mais nada a se fazer.
Infelizmente, o que tá feito tá feito. É triste, mas é a verdade”.
“Por um momento, eu...”, hesito, porque tenho tanto, mas tanto medo
de falar, que, se eu falar, parece que pode se tornar real. “Esquece”.
Mas Sávio me conhece. É como se
ele pudesse ler os meus pensamentos. E, ao contrário de mim, não hesita:
“Você chegou a me imaginar no lugar do Beto, não foi? Você ficou se
perguntando como seria se você falhasse em me ajudar a me desapaixonar da Anna,
né? Se eu seria capaz de me suicidar também?”
Bebendo lentamente, demoro a
responder. Mas balanço a cabeça confirmando suas suspeitas.
Dominique aumenta o som. Noto
que, apesar de ele e a mãe serem evangélicos, a playlist é bem variada, mas nada extravagante. Entretanto, fica
impossível de conversar agora.
“Vamos pra área de serviço. A gente tem que conversar”, intima
Sávio, ao que eu concordo sem pestanejar.
Acho que a tão aguardada conversa
que devíamos ter tido na noite em que Rita Lina “morreu” finalmente vai
acontecer.
“As coisas estão estranhas entre nós, Milena”, Sávio nem enrola.
A área de serviço fica na parte
de trás da casa, no quintal, ao ar livre. Sávio apanhou duas cadeiras na
cozinha e as posicionou frente a frente.
“E não eram pra estar?”, replico, e sei que neste momento não tenho
razão de ocultar minhas mágoas.
“Bom, eu posso explicar. O problema é que, com tudo o que aconteceu, só
agora tô tendo a chance de conversar com você”.
“Explicar o quê, Sávio? Por acaso você vai tentar me convencer de que
eu não fracassei naquilo que eu sempre acreditei a minha vida inteira? Que eu
sou boa no que eu faço, quando na verdade não é bem assim? Quando, na verdade,
tem gente se suicidando por causa do tanto que eu sou falha?”
Ele me encara com incredulidade e
espanto. Sinto o rosto petrificado e o coração bater muito forte. Acho que é
assim que as pessoas se sentem quando se encontram numa espécie de confronto
com seus melhores amigos.
“Não acredito que você tá falando isso”, ele diz, balançando a
cabeça em sinal de severa discordância. “Você
tá se culpando pela morte do Beto, é isso?! Você tem noção do quanto isso
parece ridículo? Você tem noção do tamanho da besteira que você tá falando,
Milena?!”
“Ele deixou duas cartas de suicídio”.
Minhas palavras paralisam Sávio.
Ele desconhece esse detalhe, já que eu estive escondendo com intenções reais de
nunca mencionar. Ele me fita, no aguardo de mais informações sobre essa
novidade.
“Uma carta era pra Nádia. E a outra era pra mãe dele. É claro que eu
não fui autorizada a ficar com nenhuma, mesmo uma delas mencionando a gente”.
“Como assim mencionando a gente?”, Sávio demonstra medo.
“Na carta que ele deixou pra mãe dele, ele faz pedidos de perdão, diz
que ama determinadas pessoas e, lá pelo final, ele diz...”, faço uma pausa
porque já não posso segurar as lágrimas que eu não convidei, mas que forçaram
tanto para vir à tona. “Ele diz que sente
muito, mas nem a ANNA podia ajudá-lo...”
Sávio dá uma longa respirada,
atordoado. Acho que agora ele foi realmente
capturado pela tragédia de nosso ex-cliente.
“Meu Deus!”, ele sussurra, passando a mão pelo rosto e depois pelos
cabelos.
“Como você se sente agora, Sávio? Ainda acha ridículo o que eu digo?
Você não enxerga que, mesmo a gente não tendo culpa direta no que aconteceu, a
ANNA falhou? EU FALHEI!!”
“Nada a ver, Milena. Isso ainda é ridículo”.
“Você não entende”, disparo, em meio às lágrimas, contra as quais
eu nem luto mais. “Por mais que você seja
meu sócio, a ANNA é um projeto que brotou no meu coração, é a única coisa na
qual eu nunca tive a menor dúvida que eu fosse boa. Um negócio no qual eu
jamais podia falhar, e pra isso eu não media esforços ou recursos. Uma coisa é
ver você, Sávio, meu melhor amigo e primeiro cliente, voltando à sua antiga
paixão. Outra coisa é ver alguém seguindo o mesmo caminho, mas acabar morrendo por
causa disso. Será que você compreende o peso que está sobre os meus ombros
agora? A falha do nosso serviço matou uma pessoa, Sávio”.
“Milena, isso não tá certo. Você tá abalada e essa notícia te
desestruturou totalmente. Acho melhor encerrarmos essa conversa por aqui e,
quem sabe, tentar retomar quando você estiver melhor. E tem mais: como sócio e
seu amigo, te aconselho a tirar uns dias de folga. Deixa que eu me viro na
empresa”.
“Como você espera que eu me recupere, Sávio? Eu já estava me sentindo
mal por ver que havia gerado uma empresa baseada numa ideia falsa de ajudar as
pessoas, e aí a morte do Beto foi como uma confirmação pra mim. Como você
espera que eu me recupere desse trauma?”
“Milena, você quer que eu te conte por que eu desisti de me
desapaixonar da Anna ou não? Apenas me escute”.
“Eu não sei se eu quero saber algo que venha da Anna”, há uma certa
alteração na minha voz. “Eu não confio na
sua amada namoradinha, Sávio”.
“Agora tudo faz sentido”, ele fala num tom que soa triunfante, mas
que me incomoda. O que é que faz sentido? “Bem
que ela me falou”.
“O que ela te falou?”, indago, ao passo que tento localizar na
memória algo que poderia se encaixar no contexto. Existe um certo receio me
invadindo também.
Sávio me encara com o semblante
pesado. O ar em nossa volta está denso, a escuridão da noite está decididamente
mais inclinada sobre nós. Aquele típico clima amistoso que sempre permeia o
ambiente quando estamos juntos está dissipado. E, neste momento, é como se
nenhum de nós estivesse se esforçando para recuperá-lo.
“Bom, esse não é o motivo de eu ter desistido de me desapaixonar dela,
mas...”
Eu estou quase implorando para
ele parar de embromar.
“É verdade que você era apaixonada por mim, Milena?”, ele
finalmente pergunta.
“Como é que é?”
“É verdade que você era apaixonada por mim? E que se aproximou de mim
para provar para suas amigas da escola que poderia se desapaixonar?”
“Sávio...”
“E na época a Anna era uma de suas amigas, não é? É por isso que ela
sabe dessa história e pôde me contar. Eu fui uma espécie de experimento seu, só
pra você se exibir e você jamais me contou, não é? Diz, Milena!! É verdade ou
não?”
Perdemos totalmente o controle.
Estamos falando alto, nos desentendendo. Ainda bem que a música lá fora está
abafando nossa discussão. Pelo menos é o que eu espero.
“Por algum motivo, você decidiu continuar sendo minha amiga, mesmo
depois de ter se desapaixonado por mim. Anos depois, eu me tornei dono de uma
empresa junto com você, e você nunca teve interesse em se abrir comigo. Nunca
pensou em ser honesta. Sabe, em outra época, eu teria até dado risada disso,
mas agora, olhando pra sua implicância com a Anna, e o quanto você tem essa
mania absurda de controle, essa doença de não aceitar as próprias falhas, eu
sinceramente...”, ele engole em seco, para depois concluir: “Eu não sei mais como lidar com você”.
“Ela jurou que nunca te contaria isso”, lamento, com o olhar
perdido e ainda chorando, sentindo os ombros rijos.
“Então é verdade mesmo”, Sávio constata, mas ele já sabia.
“Sávio, isso faz tantos anos”, argumento.
“Milena, não importa!”, brada ele. “Você me escondeu isso todo esse tempo, nem se deu ao trabalho de
tentar me contar. Nem ligou se poderia ser importante pra mim”.
“Importante?! Mas era só uma bobagem de adolescente!”
“Bobagem coisíssima nenhuma. Você me usou pra se exibir, se aproximou
de mim com interesse mesquinho e me fez virar seu amigo”.
“Você acha que eu me sinto confortável com isso? Olha eu aqui, Sávio! Mesmo
depois de conseguir o que eu queria, eu não fui embora, eu descobri um amigo,
eu encontrei um irmão que eu nunca tive. Seu idiota!”
Ele tenta não demonstrar, mas
está profundamente ofendido.
Eu me levanto, determinada a
fazer algo que, a essa altura, é a minha melhor opção:
“Eu não quero mais viver perturbada assim, Sávio”.
Ele apenas me olha, como se
estivesse com medo de suas próprias reações.
“Se você quiser continuar tocando a empresa, fique à vontade. Mas eu tô
fora”.
“Milena...”
“Você tem razão. Eu tenho uma mania absurda de controle e uma doença de
não conseguir aceitar as próprias falhas. Mas é muito mais que isso. Eu não
consigo carregar as falhas, essa que é a verdade. Sabe, Sávio, quase tudo que
eu sei dessa vida eu aprendi sozinha. Infelizmente, não aprendi a ser forte
como eu faço parecer. E é essa falta de força suficiente que me leva a tomar
essa decisão. Eu não quero mais saber da ANNA, eu não quero mais investir tempo,
saúde, dinheiro ou a minha vida nisso. Eu estou fora”.
“Você tá se precipitando. A empresa precisa de você”, seu tom de
voz fica mais grave.
“Não insista”, eu digo, encarando-o o mais profundo que posso em
seus olhos, tentando transmitir minha mensagem da forma mais clara. Eu
realmente não quero mais estar na ANNA. E essa decisão era apenas uma questão
de tempo e circunstâncias. E a maior delas veio ontem, por meio de um jovem
homem que deu cabo da própria vida em seu quarto, sozinho e secretamente angustiado.
Lá fora, um clássico do No Doubt começa a tocar.
“Não acredito que tá tocando Don´t Speak!!”, exclamo, um fio de surpresa se escancara em meu olhar.
“Sim”, confirma Sávio. “Eu
que fiz a playlist. E coloquei essa
música porque é uma antiga que nós gostamos em comum. Achei que você ia
gostar”.
Eu dou um sorriso de ternura,
porém com uma seriedade preponderante.
“Você ainda se lembra da letra? Da tradução?”, suscito.
Ele assente com um movimento de
cabeça. E eu arremato:
“Então não sei se eu chamo isso de coincidência ou destino, mas parece
que a letra dessa música tá acontecendo agora”.
Os olhos de Sávio possuem uma luz
que eu nunca vi antes. São lágrimas despontando e algo me diz que, assim como
eu, ele também não vai se esforçar em contê-las.
“Não tem que ser assim, Milena”, ele faz uma última tentativa. E a
primeira lágrima rola. “Você sabe que não
deveria ser assim”.
Dirijo a ele o último olhar desta
noite. Algo que, apesar de eu querer que pareça vazio e frio, não oculta esse
turbilhão de emoções que me rasgaram o peito nos últimos dias. Meu silêncio e
meus passos vagarosos rumo à saída são tudo que consigo usar como resposta
agora.
You and me
We used to be together
Everyday together,
always
I really feel
that I´m losing my
best friend
I can´t believe this
could be the end…
Pelo visto, ele preferiu ficar no
quintal. Melhor assim. Não o quero me seguindo. Só quero paz, sumir daqui, ver
a noite se transformar em Natal e eu poder me lamuriar em casa sossegada, sem
me importar em desenhar sorrisos e falsear empatia. E que se dane se minha
mente está confusa, se eu tomei decisões precipitadas, se estou sendo infantil,
burra, dramática ou se estou sendo uma covarde. Eu só sei que estou fazendo
exatamente o que eu quero fazer. E é isso que realmente conta.
Suicídio.
A voz da tragédia que acometeu a
família de Beto volta a ecoar na minha cabeça. Os pensamentos desordenados, as
ideias emaranhadas, e a pancada incessante de uma dor furiosa dentro do
labirinto que está a minha alma. Certa de que estou me portando como uma mãe
inconsequente, e de que abandonei meu único filho, mesmo assim estou indo para
casa. E deixando meu melhor amigo para trás.
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