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14 de fevereiro de 2016

DESAPAIXONANTE -- Estreia da 3a temporada -- EPISÓDIO 3x01: O APRENDIZ



(Denner)

Você já acordou um belo dia na vida e, ao se dar conta de como ela é incrível, gastou alguns segundos ponderando se aquilo não era um sonho? É assim que tenho me sentido desde que arranjei esse trampo. Uma novidade grandiosa. Juro, cara, se eu tivesse amigos, eu os chamaria para uma churrascada com muita cerveja para comemorar do jeito que a ocasião merece. O problema é que... Ora, a quem estou tentando enganar? Eu nem gosto de cerveja, e a simples ideia de me imaginar saboreando um pobre animalzinho assassinado é suficiente para dar um nó no estômago e aniquilar meu apetite. É um saco ser um cara incompreendido e com vontades convictas e opiniões um tanto controversas? É, é um saco!! Mas que se dane!! Eu estou a um passo do melhor emprego da minha vida. E o melhor: com um talento que eu nem sonhava que tivesse.
“Você tá falando comigo?”, indaga o mestre, a quem eu também posso chamar de patrão. Mas “mestre” soa mais sofisticado.
“Ah... Foi mal, eu... nem me dei conta de que você tava escutando”, então cai a ficha de que eu estava tendo mais um dos meus constrangedores “pensamentos orais”. É o tipo de coisa chatinha que me acontece às vezes. Ainda bem que não pensei/falei nenhuma besteira, pelo menos não no estágio em que me encontro, apenas um aprendiz.
“Você ainda não me contou o motivo de não ter amigos”, comenta o mestre.
O sol se pôs há pouco. Estamos dentro do carro do Mestre. Executando parte do nosso trabalho, o que me empolga tanto que (não me pergunte por quê) eu sinto uma pontadinha de excitação nos mamilos.
Ainda não tenho meu próprio carro, mas se eu não cometer qualquer erro imbecil, darei um jeito nesse probleminha em breve. Eu só preciso garantir esse emprego e fazer o meu melhor, e isso envolve ter muito cuidado com qualquer coisa que eu disser e fizer. Me pergunto se o fato de não ter amigos incomoda o Mestre. E o quanto isso pesa no meu período de experiência.
“Na verdade, eu não sei. Eu sempre estive aberto a amizades, o problema é que as pessoas me evitam, sei lá. Só sei que nenhuma relação de amizade engrena”.
“Você gostaria que eu fosse seu amigo?”
O Mestre me pega de surpresa com essa pergunta. Será um teste? O que eu devo dizer para agradá-lo? Ou, no mínimo, para não soar como um babaca bajulador?
“Mestre, pra mim, já somos amigos”.
Espero ter dito a coisa certa. E espero que não tenha soado forçado.
Ele sorri. Aparentemente passei em seu teste. Um tiro no escuro dado por um cego que não tem braços.
“Como um cego pode atirar sem os braços?”
“O senhor ouviu?! Caramba, que vexame! Preciso aprender a me controlar”.
“Olha ela ali”, o Mestre muda de assunto, apontando ligeiramente com a cabeça para a mulher que estamos vigiando, uma mulher de meia-idade que está saindo de uma academia.
“Ela deu duro hoje, hein! Nunca vi um shortinho tão suado naquela... parte”.
O mestre começa a rir com meu comentário, mas se engasga e agora está tossindo. O que um empregado em período de experiência deve fazer?
“Denner, você faz os comentários mais inconvenientemente engraçados que alguém pode fazer. Ainda bem que eu te encontrei, hein!”
“Obrigado, mestre”.
“Corta essa de ‘mestre’, tá? Me chama pelo meu nome mesmo. Apesar de eu ser seu chefe, não precisa de toda essa formalidade. Fechado?”
“Bom, eu preferiria te chamar de Mestre. Me sinto mais à vontade.”
Ele concorda com um sinal de cabeça, enquanto segue com o olhar a morena franzina que vai se afastando com sua mochila e roupa coladinha de malhação. Então ele se volta rapidamente para minha direção e, mantendo uma expressão entre austero e gentil, diz:
“Já que você curte essa onda de hierarquia, então vamos fazer o seguinte. Aqui está uma ordem: Me chame pelo meu nome e para com esse negócio de ‘mestre’. Entendido?”
Se tem uma coisa capaz de abalar parte das minhas decisões, essa coisa se chama obediência. E eu odeio ter que me render a ela, quando eu estou perfeitamente confortável dentro de uma regrinha criada para minha satisfação pessoal.
“Tenta”, ele me atiça.
Eu hesito.
“Rápido, senão vamos perder a Yara de vista”, o Mestre insiste.
“Mas, Mest...”
Ele me olha acusativo, impedindo-me de conseguir terminar minha argumentação. Contrariado, e para continuarmos nosso trabalho, eu apenas digo:
“Ok... Sávio”.

Minha primeira missão está sendo supervisionada. Para ser sincero, não é minha, mas da empresa, por assim dizer. Sávio está me mostrando como se faz, apesar de ele já ter me feito ler uma pilha de relatórios e me explicado diversas vezes como os procedimentos funcionam.
No entanto, estou longe de me sentir entediado. Essa coisa de me tornar um agente do desapaixonamento me deixa pilhado noite e dia, como uma criança que está embarcando para a Disney. O emprego parece simplesmente irado. Imagina só! Você ter o poder de ajudar a alguém a se livrar de uma paixão indesejada ou proibida. Segundo o Sávio, eu tenho talento natural para isso. E eu que pensava que meus pais estivessem certos sobre eu passar o resto da vida naquele emprego deprimente que eu tive até minha vida mudar drasticamente. Eu sou Denner Corrêa, tenho 30 anos de idade e ainda moro com meus pais. Eu sonhei com um mundo melhor para mim e meus filhos (ainda não os tenho, mas já me antecipei na parte do sonho). Eu sei que serei um vencedor. Eu terei um novo emprego numa agência descolada chamada ANNA. O negócio deles pode até ser nada apaixonante, mas meu coração está totalmente entregue.
Embora meus pais achem que é só uma fase e suas expectativas se resumam a eu voltar a trabalhar como auxiliar de serviços funerários, eu consigo botar a maior fé nos dias vindouros. Minha maravilhosa namorada também me apoia fortemente. Ela é a única a quem eu posso chamar de amiga no momento e, pelo visto, Sávio também está disposto a levar nossa relação além da barreira entre patrão e empregado.
Estou com meu bloquinho de notas no colo. Analiso as anotações que fiz sobre Yara e, não importa o quanto eu negue, isso faz eu me sentir um detetive. Preciso manter o foco e não perder a humildade.
“Recapitule pra mim, Denner”.
“Pois não, mestre”, eu digo, rapidamente censurado pelo olhar de Sávio. Ele precisa entender que esse tipo de mudança é gradativa. “Certo. Sávio. Então... Yara é o objeto de paixão do nosso cliente Olavo Gama ou, como você prefere, Sr. Gama. Yara tem 48 anos, é dentista, divorciada, tem dois filhos que moram em outro estado e já foi casada três vezes, sendo que os filhos são do primeiro casamento. Ela ajuda num abrigo de animais, o que é muito nobre e fofo da parte dela, e às segundas, quartas e sextas frequenta a academia. Ela tem dois gatos e três cachorros em casa e... Hummm... tô esquecendo alguma coisa?”
“O essencial”.
“Ah, sim, é claro. O Sr. Gama, que é um homem de 56 anos muito culto, sério e de modos tradicionais, cismou que tem algo de errado com ela porque já foi casada três vezes e, segundo ele, isso é meio suspeito. Eles estão saindo há algumas semanas e ele quer levar a relação adiante, mas não quer perder tempo com algo que pode prejudicar seus sentimentos. Resumindo: o Sr. Gama já passou dos 50 e quer alguém pra sossegar o facho, mas não quer se meter numa fria”.
Uau! Até eu estou impressionado com o tanto que eu absorvi sobre o caso. E com a quantidade de informações que a gente descobriu, a despeito das dificuldades que surgiram no meio do caminho. Por exemplo, foi um martírio descobrir que Yara tem todos esses animais domésticos, porque quando eu estava vigiando a casa, um dos cães se soltou e eu corri feito um maluco pela vizinhança, surtando e em pânico. Culpa de um trauma de infância. Tivemos um cão em casa, durante certa época, que vivia de péssimo humor. Certo dia, ele resolveu dar uma prova disso ao pular sobre mim enquanto eu andava inocentemente na minha bicicletinha pelo pátio. Eu desmaiei e acordei num quarto de hospital, duas ou três horas depois, com toda a família à minha volta. Só depois me explicaram que provavelmente eu estava brincando no “território” do Amadeu (era assim que ele se chamava), pois ele supostamente havia marcado aquele pedaço do pátio com seu xixi horas antes do ataque. Para minha sorte, o naco que ele tirou da minha perna não tinha mais de doze centímetros. Mas o trauma me ensinou a valiosa lição de não se divertir em território alheio. Não sei dizer se foi justiça poética ou algo dessa natureza, mas no ano seguinte ao ocorrido, Amadeu morreu após um arranca-rabo com um rottweiler da vizinhança. E eu não usei o termo arranca-rabo por força de expressão. Amadeu teve o rabo literalmente arrancado no que pareceu uma ciranda violenta com o impiedoso oponente. Apesar de tudo, eu posso dizer seguramente que tenho amor pelos cães. Um amor cauteloso, é verdade, mas ainda assim verdadeiro.
Olho para Sávio, em busca de uma reação à minha demonstração de trabalho eficiente, mas ele está se acabando de rir.
“Eu pensei em voz alta a respeito do cachorro, né?”, atesto.
Ele não consegue responder oralmente, apenas confirma com a cabeça, porque está muito ocupado usando sua boca para rir de mim. Qual será o médico que eu deveria ver para tratar dos meus “pensamentos orais”? Sério, isso ainda pode acabar me matando.
“Mas a minha curiosidade maior é... por que Amadeu?”, ele encontra uma folga na cachoeira de risadas e indaga.
“Ué”, eu dou de ombros, não vendo sentido no questionamento. “Na verdade, a pergunta é ‘por que não Amadeu?’”
“Ok, ok, já entendi. Você e sua família são muito peculiares e gostam de nomear os animais com nomes tipicamente humanos, em vez de Tobby, Rex, Bolinha, Totó ou qualquer coisa assim. Saquei. Cara, cada vez mais eu gosto de você”.
“Sávio, a gente tá perdendo o foco”, reclamo. Com certo medo, já que ele é meu chefe e esse “território” é dele. O pedaço de carne que perdi pela mordida furiosa do Amadeu ecoa em minha mente e me lembra de que eu tenho de me pôr no meu lugar.
“Tem razão, Denner”, ele reconhece, enquanto limpa as últimas lágrimas que vieram com as gargalhadas. “Bom, ao que parece, você tá bem inteirado da situação. Qual é o seu palpite para o próximo passo?”
“Coletar informações sobre os ex-maridos da Yara e, de quebra, descobrir por que eles se separaram dela. A chave para o desapaixonamento pode estar aí”.
Sávio sorri com imensa aprovação. Eu dei a resposta que ele estava esperando.
“Eu falei que você tinha talento para a coisa”.
“Muito obrigado, Mestre”.
“Denner...”
“Desculpa”, eu falo, preparando a câmera para fotografar Yara saindo de uma livraria, de onde ela vem trazendo uma sacola que deve conter, no mínimo, uns três livros e, provavelmente um ou dois CDs.
“Ela demorou bastante tempo pra quem acabou de sair toda suada e provavelmente fedendo da academia”, avalia Sávio.
“Verdade”, concordo, “mas o cheirinho do cecê se mistura ao do café da livraria e fica tudo numa boa”.
E Sávio volta a explodir em risos.


Yara resolve parar numa panificadora. Viro-me para Sávio e, decidido, informo:
“É a minha deixa”, e já vou destravando o cinto de segurança, preparando-me para sair do carro.
Ele apenas me olha, examinando minha força de vontade em fazer bem meu trabalho. Certamente já sacou que eu vou tentar uma aproximação, como um abrir de parênteses antes do próximo passo.
Adentro a panificadora, fingindo interesse pelo lugar. Avisto meu alvo dando orientações sobre seu pedido para o atendente. Acho que a ouvi dizer algo sobre queijo ricota ou algo assim. Pelo menos ela é coerente para quem saiu da academia. Penso numa recordação que acaba de me vir à mente. O Sr. Gama não vê nada de errado no estilo de vida de Yara, ele até lamenta não ter tanta coragem quanto ela de se meter a fazer exercícios físicos. Ele alega que isso é pra quem está tentando impressionar alguém e, segundo ele, na idade em que está, a quem ele iria impressionar? Na ocasião, eu quase devolvi dizendo que não tinha necessariamente de malhar para impressionar alguém, mas também para cuidar da saúde e tal. Preferi ficar quieto. Apesar de ter uma leve desconfiança de que isso não foi apenas pensado, pois ele imediatamente falou que cuidava da saúde indo ao médico e fazendo tudo o que lhe era mandado. Ou eu expressei meu pensamento pela boca ou esse senhor sabe ler mentes.
Yara senta-se com seu iogurte natural e um sanduíche de ricota feito no pão integral. Ela pousa sobre a mesa a sacola com os livros e CDs que comprou há alguns minutos. Quando ela tira um dos volumes para examinar enquanto faz seu lanche, eu descubro que não preciso me aproximar, pois tenho certeza de que acabei de encontrar um belo motivo que pode ajudar muito no desapaixonamento.


Sávio adorou saber da minha descoberta na padaria. Ele está tão otimista quanto eu a respeito do sucesso que teremos neste caso. Entretanto, só nos encontraremos com o Sr. Gama amanhã. Por hoje, tudo o que me resta é chegar em casa e descansar. Ou melhor, tentar.
“Ah, olha só quem voltou. Passou o dia todo fora, hein, bonitão!! Espero que essas saídas tenham uma boa explicação, tipo ir atrás de um novo emprego”.
Eu sei o que parece. Que tenho um pai ou uma mãe que não compreende o que estou fazendo agora, que eu não preciso procurar um novo emprego, pois já estou a centímetros de ingressar oficialmente na ANNA, mas a realidade é que essa bronca não foi dada por nenhum dos dois. Foi meu irmão caçula quem disse essas palavras e ele é a pessoa que ganha mais que todos nós juntos, por isso adora jogar na nossa cara. Sim, ele é um pequeno megero de 12 anos. O único, na face da Terra, que merece que eu use um termo masculino que nem existe.
“Boa noite, Lucas”, eu uso minha diplomacia infalível.
“Não banque a bichinha educada pra cima de mim, Denner!! Onde você esteve?”
Sejamos razoáveis. Diplomacia pode falhar às vezes.
“Eu estava trabalhando”, declaro.
“Trabalhando?! TRABALHANDO?! Ora, não me faça rir! Você está se referindo àquela ideia idiota de fazer as pessoas se desda...desaspai...dessapis... ora, droga, você entendeu. É disso que você tá falando?”
“Lucas, você pode ter um ataque do coração antes da idade certa, sabia? Se acalma aí”.
“Eu vou pegar meu cinto e te mostrar quem é que tem que ficar calmo, seu vagabundo patife. Minha agente tem razão, sabia? Eu deveria me mandar desse país e fazer minha carreira internacional, PRA VER SE VOCÊS PARAM DE TORRAR MINHA GRANA NESSA CASA, SEUS INÚTEIS”.
“Você tem 12 anos e sua agente não sabe o que fala. Mas, considerando que ela tá ganhando com isso, acho que ela sabe o que fala sim”.
“Podia ter usado esse tempo livre pra cortar esse cabelo, isso sim. Por favor, quando aparecer alguém pra me entrevistar em casa, faça o favor de se esconder”.
“Mas que tempo livre?”, replico. “Eu já disse que estava trabalhando”, reafirmei, passando as mãos pelos meus cachos castanhos e admitindo que, dessa vez, tinha de concordar que estava precisando dar uma aparada.
Não me sinto à vontade em explicar os pormenores a respeito da ANNA para o Lucas. Está mais do que claro que ele é uma criança que não sabe lidar com a carreira artística. Ele é um atorzinho descoberto por acaso por uma publicitária infantil que, assim que descobriu o potencial e o carisma dele, além de um sorriso realmente invejável, caiu como um abutre sobre o coitado. Ele é a cara da maioria dos comerciais da marca Joy´s, que produz todo tipo de quinquilharia para o público infanto-juvenil, de roupas a brinquedos. E, ao que tudo indica, em breve ele será a única estrela da marca. Seu contrato tem validade até ele completar dezoito anos. Tempo suficiente para ele se tornar inescapavelmente insuportável. Sem falar nos convites que ele vem recebendo para estar em seriados e novelas. O menino até já fez sua primeira ponta num filme com artistas famosos. Mesmo tendo uma única fala (“não, madame”), seu canal no Youtube bombou de comentários elogiosos e todo tipo de bajulação (pois é, Lucas também tem um canal no Youtube, apenas para ampliar seu narcisismo com seu rol de seguidores ávidos por vídeos que não contêm mais do que divagações a respeito de sua vida de celebridade teen). Alguns afirmaram que ele merecia um Oscar. Teve até gente delirando que ele estava esperando demais para lançar um livro. Por “gente” eu quero dizer adolescentes que não sabem o que é ficar sem Internet e videogame por um dia sequer.
Nossa irmã mais velha, Glenda, teve a ideia mais esperta e ambiciosa de todas e, cansada de encontrar empregos menos prestigiosos, resolveu que agenciaria a carreira de Lucas. Como meus pais tem a tendência a ser ludibriados por uma boa conversa e Lucas é apenas um garoto deslumbrado com a fama precoce, Glenda inventou uma explicação qualquer e convenceu a todos de que era a pessoa ideal para agenciá-lo, mesmo ela nunca tendo feito isso na vida e nem mesmo tendo a mínima noção de como começar. O curioso é que, desde então, Lucas não se dirige mais a ela como irmã, mas como agente. Eu, por minha vez, preferi jamais me meter. E é uma das coisas que me faz crer que nasci na família errada.
Este é o retrato dos Corrêa: um pai que ganha um salário mínimo, uma mãe que cuida da casa, uma irmã interesseira, um irmão-prodígio que fatura bastante dinheiro espalhando seu sorriso e sua simpatia. Se eu fosse um irmão malvado (ou seria justo?), bastaria filmá-lo tendo um de seus ataques de estrelismo em casa e postar na Internet, mas uma voz dentro de mim diz que, estranhamente, isso traria mais publicidade para o rapazinho e talvez ele até me agradecesse. E é assim que todos, exceto eu, convenientemente preferem fazer vista grossa para o comportamento malcriado de Lucas, deixando-o à vontade em seu mundinho de estrela mirim simplesmente porque seu dinheiro compra isso.


Como sempre, ninguém pensou em mim para o jantar. Havia comida para 50 mendigos famintos na geladeira, mas nada para um vegetariano. Bom, nunca levaram a sério quando eu falei que tinha resolvido cortar a carne da alimentação. Primeiro, disseram que não existe vegetariano pobre. Depois, começaram a tentar me sabotar colocando carne cozida até no feijão.
“Mesmo que você não mastigue a carne, tecnicamente você não estaria comendo dela por conta do sabor deixado no feijão? Tipo, você estaria absorvendo os nutrientes dela, não? Você estaria engolindo aquilo que a carne pode dar pro ser humano, não é verdade? Pelo menos uma parte disso”, certa vez Glenda perguntou, alfinetando-me com algo que eu sinceramente não sabia responder. Vegetarianismo ainda era novidade pra mim.
Ao ver que eu havia apenas ficado calado, todos trocaram risinhos entre si, como se tivessem pegado o rato inexperiente na armadilha.
E, assim que eu ingressar na ANNA, na primeira oportunidade que eu tiver, cairei fora deste covil. Quero ir embora sem ressentimentos, mas os irmãos complicados que eu tenho não estão ajudando.


Temos diante de nós um Sr. Gama perplexo, ao olhar as fotos que eu tirei na padaria. Ok, não fui muito discreto, e eu não podia ser pego. A primeira foto ficou uma porcaria, porque eu havia me esquecido de desativar o som da câmera do celular e, ao me aperceber disso, a mão tremeu por conta de um pequeno susto e a imagem ficou um horror.
No entanto, com um esforço quase ninja, consegui cinco imagens nítidas que exibem uma Yara sorridente diante de um CD que ela comprara na livraria, no dia anterior, junto com alguns livros.
“E, como o senhor expôs com muita ênfase em seu formulário, o senhor não curte nem um pouco esse tipo de música”, dou a minha cartada.
Sávio me dá uma piscadela cúmplice. Ele está aprovando minha atuação como agente.
“Você ainda tem essas fotos em seu celular?”, indaga o Sr. Gama, encarando-me com uma seriedade inquietante.
Eu olho para Sávio enquanto respondo que sim, meio que procurando no olhar do meu chefe algum sinal se devo me preocupar ou não. Ué, algo saiu errado?
“Aqui estão”, eu entrego ao cliente o celular já com a pasta das fotos aberta.
Ele abre a primeira, dá zoom. Faz o mesmo com a segunda. E vai dando zoom em todas. Ele viu algo que havia passado despercebido por mim.
“Que droga!”, vocifera ele, devolvendo-me o celular com revolta.
“O que houve, Sr. Gama?”, pergunta Sávio.
“Eu achei que tinha visto algo saindo da sacola dela. E dei zoom pra confirmar. E estava certo”, ele se levanta de sua cadeira e começa a andar pelo escritório de Sávio.
“O que o senhor viu, Sr. Gama? Outro CD? Pior que esse do Justin Bieber?”, estou nervoso.
“Não tem nada de errado com o CD do Justin Bieber”, retruca o Sr. Gama. “Você já ouviu ‘Sorry’? É simplesmente viciante!! O problema mesmo está neste item aqui, quase saindo da sacola. Yara está lendo Cinquenta Tons de Cinza”.
Ok, por essa eu não esperava. E eu nem mesmo tinha me atentado para isso. Mas por que tanto alarde? Nunca li o referido livro, mas sei do que se trata, embora eu ainda não esteja entendendo por que o Sr. Gama ficou tão transtornado.
“Eu tenho trauma de mulheres que curtem sadomasoquismo. Só de me lembrar já me dá arrepios. Agora estou muito assustado com a Yara. Será que ela planejava incluir isso em nosso relacionamento?”, relata o Sr. Gama, e eu poderia jurar que ele está tremendo. É, não se brinca com traumas. Minha perna que o diga.
“Bom, nesse caso...”, digo, com lamento.
Sávio intervém:
“Então que bom que conseguimos algo, Sr. Gama. É uma pena descobrir dessa forma, mas... parece que agora o encanto se quebrou, não é?”
“Definitivamente, Sávio. Definitivamente”, reconhece o cliente.
Que coisa mais estranha! O que estava se configurando como um inegável fracasso se revela como uma tremenda realização. Minha mente está num turbilhão de emoções variadas e, não posso mentir, meu coração está batendo num compasso esquisito, pois é a primeira vez que me encontro num momento como este, isto é, a hora de confrontar o cliente com a verdade, a hora da possível demolição da paixão.
O Sr. Gama nos deixa um cheque, agradece e sai. Ele parte ainda atônito, com o olhar espantado e o ar parece ficar mais pesado. Sinto-me como se tivesse matado alguém, ou, na melhor das hipóteses, ajudado a matar. Mas no fundo sei que, na verdade, fui eu quem puxou o gatilho, quem atuou mais intensamente nesse “crime”.
“Como está se sentindo, Denner?”
“Não sei”, e não estou mentindo.
“Você se sente como se tivesse matado alguém?”
“Ah, fala sério. Eu pensei isso em voz alta também?”
“Não”, Sávio diz, após uma risada leve. “Eu também me senti assim, no começo. O desapaixonamento é um processo que nos faz sentir com certo... poder. Sim, exatamente isso. Poder. E, enquanto a gente não tá acostumado com esse poder, a gente estranha, bate até um sentimento de culpa. Depois que a gente se acostuma, a gente passa a entender o que tá fazendo nessa empresa. O quanto estamos ajudando as pessoas, em vez de matando-as. Já pensou se o Sr. Gama descobrisse pessoalmente que a Yara queria bancar a sadomasoquista? Seria um desastre, e só Deus sabe como isso iria terminar entre eles. O ideal é que ele vá lá, invente uma desculpa qualquer e ponha um fim no relacionamento. Dessa forma, ele fica aliviado por não ter que lidar com seu trauma bizarro e ela não se sente culpada por suas preferências literárias. E sexuais.”
“Mas... Não faz sentido”.
“O que não faz sentido?”
“Quem garante que ela curte sadomasoquismo? E se ela lesse o livro e odiasse? E se nós livramos o Sr. Gama de viver uma paixão feliz e um relacionamento bonito? Será que a gente realmente o ajudou?”
“São perguntas pertinentes”, considera Sávio. “Mas, analisando bem, por que uma mulher de 48 anos, divorciada três vezes, que mora com cinco animais e frequenta academia três vezes por semana compraria um livro desses? Acho que ela está com a mente bem aberta a certas... experiências”.
Estou pensativo. E Sávio, com um profissionalismo que chega a ser um tanto assustador para mim, arremata:
“Fomos contratados por um motivo, Denner. E fizemos o nosso trabalho. Fomos pagos por um serviço que prestamos, não importa se saiu um pouco diferente do esperado. Mas nós somos a ANNA e a nossa parte foi feita”.
Eu o encaro. Ele realmente parece convicto de cada palavra. De fato, parece que quanto mais casos eu solucionar, mais parecido com Sávio eu serei. Porém, será que eu quero me parecer tanto assim com ele? Do que é preciso para me tornar um agente desse porte? Será que me arrependerei?
“Vem comigo, tenho uma surpresa pra você”, anuncia ele.
Acompanho-o através da porta e, pouquíssimos passos após atravessarmos o corredor, ele destranca uma outra porta, convidando-me a entrar com ele.
“E aqui será a sua sala”.
“Caramba!”, minha alegria chega tão repentina que eu praticamente esqueço das sensações que eu tive com o fim do caso do Sr. Gama. “É sério mesmo? Uau, cara!”
“É sério sim, moço”.
“Mas... essa sala aqui não era da...?”
Sávio se mostra um pouco incomodado, mas balança a cabeça e admite que aqui costumava ser o escritório da sua ex-sócia. Ainda bem que não mencionei o nome de Milena, pois sua reação poderia ter sido pior. Penso que seria mais fácil para mim se eu soubesse melhor do que aconteceu a ela.
“Talvez eu te conte, Denner. Mas não vai ser hoje”.
“Ah, você ouviu, que mancada! Perdão!”, tento dar o sorriso menos amarelo que posso.
“Vou te deixar sozinho pra olhar o ambiente. Pode até pensar numas ideias pro lugar. Enfim... Você merece. Fez um bom trabalho. Parabéns!! Pode se considerar contratado. Pode se considerar, oficialmente, um agente”.
Minha resposta é um sorrisão bem aberto, genuíno. Sávio me deixa sozinho. Mesmo eu acreditando que ele só fizera isso pelo assunto Milena ter vindo à tona, prefiro deixar para pensar nisso depois. Aproveito para fechar os olhos e viajar na imaginação. Não vou ganhar o mesmo salário de Lucas, mas acontece que agora eu também sou uma estrela. Do meu jeito, mas sou. Estrela de um céu meio nublado, mas sou. No meu faz-de-conta, posso ver meus pais e meus irmãos me olhando, fascinados por eu ter chegado a um lugar extraordinário, para fazer algo fora do comum, e por não ser apenas mais um mané nesse mundo gigantesco. À medida que sou aplaudido por minha família, outros aparecem para me ver também. Colegas que faziam bullying na época da escola, ex-namoradas que me traíram ou me trocaram por “coisa melhor”. Até o Amadeu, que gostaria de balançar o rabo se ainda tivesse um, então se contenta apenas em latir. E, no meio disso tudo, posso ouvir Sweet Dreams, na versão do Marilyn Manson. Eu não sou chegado nas músicas do cara, mas essa tem a atmosfera perfeita para o que está se desenhando em minha mente.
O toque do meu telefone me arranca do devaneio. É a minha amada namorada.
“E aí, amor? Alguma novidade?”, ela está meio esbaforida e, pela voz sussurrada, deve estar no trabalho.
“Sim, meu amor”, eu cogitei mentir para ela só para pregar uma peça, mas tá impossível disfarçar a satisfação. “Eu consegui, Rita. Eu sou oficialmente um agente da ANNA”.
“Ai, que maravilha, meu Pokémon!! A gente tem que comemorar”.
E algumas horas depois, a gente comemorou. Essa é a vantagem de ter uma namorada que trabalha no cinema: se seu orçamento tá apertado, ela dá um jeito de conseguir ingressos grátis. O namoro vai bem, obrigado. É uma relação bem jovem, com apenas alguns meses de existência, mas não há quem nos olhe e não diga que Rita Lina e eu fomos feitos um para o outro.

E o filme? Olha, nem prestei tanta atenção assim. Só de saber que eu não terei mais de me humilhar para o fedelho do Lucas, eu não preciso de outro final feliz que não o meu próprio. 

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