Estúdio de TV.
Talk Show recebe um ilustre e peculiar convidado, líder de uma seita que tem
crescido assustadoramente nos últimos dois anos.
— Boa noite,
caríssimos— diz o apresentador Apelácio Polemicus, com seu sorriso encantador,
trajando um terno caríssimo que ironicamente parece não combinar com sua
fisionomia de bêbado recém-curado de ressaca.
Apelácio está
recebendo em seu duvidoso programa de entrevistas ninguém menos que Maybe
Perhapson, um famigerado autor-profeta-sacerdote que fundou a seita mais
badalada do momento. Aliás, ele detesta o termo seita. Acompanhemos o
bate-papo:
— Sr.
Perhapson... Ou devo chamá-lo de pastor, padre...?
— Talvez o
termo “reverendo” se encaixe melhor.
— Ótimo.
Poderia explicar melhor como se dá sua fé?
— Claro,
Apelácio— o sorriso do entrevistado parece se abrir mais do que o do
apresentador, ele agora está em seu momento de glória.— Nossa fé, o Talvezismo,
tem crescido num ritmo muito rápido. Isso se deve ao fato de nos apresentarmos
como uma alternativa mais viável de religião nesses tempos modernos, mas pode
ser que não seja apenas isso, entendeu?
— Sim. Em que
sua seita... ou melhor, sua doutrina de fé se difere das muitas outras que já
existem no mundo?
— Veja bem, o
Talvezismo, que muitos fiéis também costumam chamar de Encimadomurismo,
consegue coexistir com as outras religiões de uma forma muito pacífica, porque
ensinamos que talvez exista um Deus. Nossos livros tem sido amplamente
divulgados e finalmente abrimos vários templos em muitos lugares pelo mundo.
Com isso, podemos ver que talvez as pessoas estejam se entregado às novas
possibilidades espirituais sem culpa.
— Como o
senhor sabe que sua seit... opa, sua religião é a melhor alternativa hoje? E
por quê?
— Ah, talvez
seja porque não colocamos ninguém sob pressão, sob ameaça, sob princípios que
talvez estejam errados ou equivocados. Ninguém gosta de compromissos que
interfiram no seu bel-prazer.
— O senhor não
tem medo de retaliação por parte de líderes de outras religiões?
O entrevistado
gargalha gostosamente, ajeita a gravata e, com um olhar quase lunático,
enfatiza:
— Talvez.
— Vamos falar
sobre os livros da seit... quero dizer, da doutrina Talvezista. Que resultados
vocês tem obtido com eles?
— Temos quatro
livros lançados, “A doutrina Talvezista
pode ser uma boa”, “Experimente uma
verdade que talvez te faça feliz”, “Por
que não trocar o certo pelo duvidoso se você não tem certeza se o certo não é
na verdade o duvidoso?” e “Em cima do
muro pode ser mais aconchegante do que se pensa”. Todos eles bateram
recordes de vendas e estão há mais de um ano entre os mais vendidos em todas as
listas por aí. Você gostaria de algumas cópias, Apelácio?
— Olha,
talvez.
— Ok. Talvez
eu possa sortear algumas para os telespectadores ou os internautas. 90% dos
nossos fiéis foram conquistados através da Internet e da televisão, sabe...
— Sim, sim,
estou por dentro. Conte-me, Reverendo, como é o dia-a-dia de um Talvezista. Não
é difícil conviver com dilemas e conflitos gerados pela dúvida do que se vai
fazer em praticamente tudo?
— Temos nossas
dificuldades, meu amado Apelácio, mas que fé seria essa sem percalços e
adversidades, não é mesmo? Porém, a inércia causada pelo sistema
Encimadomurista é benéfica, pois quando optamos por ficar entre o “sim” e o
“não”, acaba acontecendo aquilo que deveria acontecer, o universo simplesmente
segue o plano. No fim das contas, por não optarmos por uma postura específica,
não somos culpados por algo que dá errado, já que não fizemos absolutamente
nada para causar aquilo, entendeu? Somos os únicos que não maculam a pureza do
livre-arbítrio, justamente por não lançarmos mão dele.
— Existe
conceito de pecado na doutrina Talvezista?
— O pecado é
algo que talvez seja ruim, mas não aplicamos penitências ou advertências porque
talvez não seja a atitude correta diante algo que talvez esteja incorreto.
— Devo admitir
que a fé Talvezista é fascinante, mas só de me pegar pensando em me converter
para essa seit... digo, essa fé, sinto-me confuso.
— A confusão
geralmente é o primeiro passo quando a pessoa se sente chamada a seguir o
Talvezismo. Pode ser que você esteja sendo chamado.
— Chamado? Mas
por quem?
— Sei lá.
Lembra-se do que eu disse? Vai que existe um Deus...
— Talvez você
tenha razão.
— Acho que
você está começando a ter uma epifania, Apelácio...
— Acho que
muita gente se sente como eu estou me sentindo agora.
— É por isso
que eu falei que a nossa doutrina tem sido uma ótima alternativa.
Nesse momento,
o entrevistado volta a exibir aquele olhar quase lunático e atrai um close da
câmera. Ele aproveita para se dirigir àqueles que estão atentos às suas
palavras:
— Talvez você
precise dar uma booooa checada na sua vida. Será que não está faltando algo?
Alguns dias
depois, começa a bombar na Internet: Humanidade já não sabe mais o que fazer. A
única coisa que as pessoas são capazes agora é de encher a mente de doutrina
Talvezista. Ninguém mais toma decisões, as pessoas deixam a vida acontecer, não
há mais pelo que lutar. Entretanto, alguns pobres coitados sem TV ou Internet
continuam a bradar as mais convictas crenças, certezas inabaláveis, opiniões
seguras, militâncias políticas e sociais. Enquanto isso, Reverendo Maybe
Perhapson, cercado de seguranças, entra em seu carro blindado, vocifera algo
para o motorista, engole um antidepressivo e fica em dúvida se passa numa loja
de ternos ou volta pra casa para trabalhar num novo best-seller, que pode ser chamado de “Talvez você adore este livro”.
3 comentários:
Marvin, adorei essa sua crônica. Lembrou um conto meu, "Um encontro nada convencional". Continue nos encantando com essas maravilhas que você escreve. ^^
Você consegue se superar a cada crônica. Eu amo a maneira como você escreve. Adorei! Essa está entre as minha preferidas.
Talvez essa crônica tenha me deixado confuso. Talvez essa seita, opa, seria interessante se existisse. Mas tenho uma certeza: texto muito bom!!!!
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