Vários anos atrás
Era a terceira vez de Milena no
consultório. Por insistência do pai, Marcos Kerber, a jovem terapeuta
conseguira encaixá-la num horário apertado na agenda, para conversar com a
garota por pelo menos 20 ou 30 minutos.
Milena tinha acabado de completar
14 anos há algumas semanas, o aniversário mais amargo que ela poderia ter.
“Oi, Mile. Boa tarde!! Como tem passado?”, cumprimentou-a dra.
Márcia, com notável dificuldade entre tratar a menina com delicadeza por conta
da recente perda, e não parecer estar falando com uma criancinha. Adolescentes
odeiam que os tratem feito crianças, ainda mais adolescentes com o emocional
abalado.
Já fazia pouco mais de sete meses
desde o trágico ocorrido.
“Estou bem”, respondeu a menina, mal abrindo a boca, bastante
desinteressada pela sessão, mas tentando não bancar a desagradável.
“Há dois meses que não vejo você. E as novidades?”
“Não sei...”, Milena deu de ombros. “Mudei de escola, mas... isso a senhora já sabe, né?”
“Sim, falamos disso na última vez que você veio. Como vai a escola?”
“Normal”, Milena deu de ombros mais uma vez. “Vai indo bem, eu acho”.
“Está fazendo amigos lá?”
“Conheci umas meninas, elas são legais”.
“Ah, que ótimo! Isso é maravilhoso!”
“É”.
Dra. Márcia sentiu um alívio
enorme. Na última vez em que conversou com a garota, Milena havia resumindo
suas falas a alguns monossílabos e balbucios, praticamente comunicando-se
apenas com gestos de cabeça e o irritante dar-de-ombros. Hoje ela estava mais
falante e aberta. Marcos iria adorar saber disso.
Notando que a menina havia
provavelmente saído às pressas de casa, a dra. Márcia arranjou numa gaveta um
prendedor de cabelo e ofereceu a ela. Milena dispensou, dizendo:
“Hoje eu prefiro que o meu cabelo esteja livre. Eu ia sair sem passar a
roupa, mas pelo visto meu pai passou todas elas”, ela finalizou dando de
ombros de novo, avaliando as próprias vestes como se fosse um martírio estar
decentemente vestida.
“Certo”, avaliou a terapeuta. “Sabe
de uma coisa? Tem razão. Acho que eu preciso dar um pouco de liberdade pro meu
cabelo também.”
Dra. Márcia ficou muito
satisfeita ao ver Milena sorrindo, na certa aprovando que a doutora estivesse tentando
manter um padrão de aproximação. No entanto, Milena tinha em mente que a
terapeuta não passava de uma idiota achando que poderia enganá-la.
(Sávio)
Moro num bairro bastante
tranquilo, onde os vizinhos adotam a maravilhosa postura do “cada um na sua”. É
um dos enormes prazeres que eu tenho nessa vida. Afinal, quem quer morar numa
vizinhança toda problemática, cheia de gente futriqueira e dada a interferir
direta ou indiretamente na vida dos outros? Eu diria que é minha versão mignon do Éden.
A única vez em que uma família
bastante irregular para os moldes de nosso bairro se acomodou aqui, não levou
sequer um ano para eles se sentirem desconfortáveis e se mudarem. Tentavam a
todo custo estabelecer contato. Até tentaram me empurrar pra namorar a filha
mais velha deles que, a bem da verdade, era uma menina bonitinha, mas na época
eu já namorava a Anna Munhoz, e meu coração era como um portão de ferro emperrado,
só bastava Anna lá dentro. Bom, o fato de a garota ter monocelha e falar muito
alto com uma voz azucrinante também deram uma contribuída para mandar pra longe
quaisquer possibilidades.
Curiosamente, os anos se passaram
e o bairro continua o mesmo lugar aprazível, ideal para pessoas que não fazem
muita questão de interações sociais (como eu), além de quase não se ouvir falar
de assaltos e outras mazelas que perturbam a ordem.
Por conta disso, decidimos Anna,
Milena e eu nos afastar algumas quadras de minha casa e ir conversar numa praça
pertinho daqui. Geralmente tem um parquinho instalado lá, cercado de todo tipo
de atrações que vão de cama elástica até aqueles castelos infláveis com piscina
de bolinhas. O local fica apinhado de famílias tentando dar uma relaxada após
um dia cheio, conduzindo seus filhos a diversões a precinhos camaradas, porém
repletos de alegria. Apesar da presença de incontáveis crianças, a praça tem
várias áreas onde o barulho do vento funciona como um calmante natural e os
berros da garotada soam longínquos.
Nossos carros ficaram
estacionados em frente à minha casa, então fomos caminhando até ali. É como se
tivéssemos feito um pacto de silêncio que se quebraria tão logo chegássemos lá.
Ainda me sinto perturbadoramente ansioso por isso. A ideia de uma “conversa de
adultos”, segundo as palavras de Milena, gera em mim uma agonia, um nervosismo
pelo que pode vir a acontecer. Afinal, eu vi o bicho descontrolado que brotou
de trevas inimagináveis e botou a sala dos desafios abaixo. Vulgo Milena
muito-p-da-vida-sim-senhor.
No meio do conflito em que Milena
e Anna vêm mantendo desde a flor da nossa juventude, eu me encontro. Como o
brinquedo que serviu de pivô para uma briga antiga entre duas pessoas que
poderiam ter vivido uma amizade triunfante.
E se do nada elas se
desentenderem? E ser houver uma briga física? Sabe, porrada, socos, puxões de
cabelo, arranhões no rosto, chutes na costela, braços decepados, corações ainda
pulsantes arrancados da caixa torácica, banhados em sangue quente e... Sabia
que eu devia ter maneirado ao jogar Mortal
Kombat X.
Não, não, isso é dramático demais!!
Que exagero descabido!! Vai ser uma conversa de adultos, uma civilizada e
elegante conversa de adultos. Todos vão se entender e nós vamos sair daqui,
quem sabe, de mãos dadas e cantarolando We
are the world. Selado.
“Ali naquele quiosque parece legal pra gente ficar”, sugere Milena.
“Pode ser. A gente pode pedir água de coco. A água de coco desse
quiosque é uma delícia”, reitero, aproveitando para ir fomentando um clima
agradável.
Tudo está indo bem. Assim é que
deve ser.
“Eu acho que esse negócio da água de coco ser uma delícia é meio que
uma questão de sorte. Tipo, não tem como você escolher os cocos deliciosos e
levar pra vender. Entendem?”, comenta Anna, e eu agradeço a Deus
silenciosamente por ela também estar mantendo as good vibes. Embora esteja me
contrariando.
“Tanto faz pra mim”, diz Milena.
“E se for vodca, pra você tanto faz também?”, arrisco uma piada,
mas só ganho das duas uma olhada disfarçada de reprovação. “Desculpa!”
Sentamos numa mesa do quiosque um
pouco afastada do balcão, mais voltada para o ar livre. Posicionados de forma
que Anna e Milena ficam cara a cara. Pensando bem, acho que eu preferiria ter o
coração arrancado da caixa torácica, de tanto que ele bate de um modo que me
exaspera. Meu Deus!!
Milena não pede água de coco.
Apenas uma água mineral comum. Talvez ela não tenha intenção de demorar. Por
mais que tomar uma água de coco não demore também, pelo menos existe um acordo
silencioso de que, ao pedir uma dessas, as pessoas o fazem para curtir o
momento, jogar conversa fora, compartilhar as coisas da vida. Então tentam
beber a água de coco aos poucos. Já com água mineral... Bom, quem pede água
mineral para curtir aos poucos a companhia de alguém? Água mineral é para
urgências.
Nossa, eu estou cheio das
conjecturas. Disfarçando ao máximo meu desconforto. Desse jeito fica até
difícil curtir a brisa que nos beija de vez em quando.
“Já faz muitos anos”, Milena inicia, parecendo tão nervosa quanto
eu. Então dirijo cautelosamente os olhos para Anna e ela também está com a face
inabalável. Tentando disfarçar o nervosismo, talvez?
Milena prossegue:
“Como você está, Anna?”
“Bem. E você?”, Anna responde, mas nada convincente e muito menos
interessada em saber como vai Mile. Suas palavras saem secas. Até o vento sabe
que ela está mentindo.
Como que lendo meus pensamentos,
ela me olha. Nós sabemos que, desde aquela noite do meu aniversário, as coisas
entre nós dois precisam ser resolvidas. E você acha que eu faço ideia de como
resolvê-las?
Talvez ela esteja mentindo por
estar achando que Milena estragou seus planos de conversar comigo de uma vez
por todas sobre aquela noite. Talvez ela esteja mentindo por ter de estar aqui
conversando com Milena. Talvez as duas coisas. De todo modo, os três estão
envolvidos em ambas as opções.
“Eu não estou muito bem”, Milena responde. “O Sávio deve ter te falado que eu estou com uns problemas com o meu
namorado, que você com certeza conhece.”
“É, eu fiquei sabendo, apesar de o Sávio e eu não nos falarmos há um
certo... tempo”, outra vez o olhar de Anna me acerta como um tapa,
enfatizando a palavra “tempo” de um jeito bem especial.
“Pois é”, Milena continua. “O
Sávio tem me ajudado bastante e por causa dele eu descobri várias informações
sobre o Ivan. Coisas que eu ainda tô digerindo, mas que eu espero poder
resolver em breve. Mas também havia outras coisas pra resolver. Então, pra não
ter mais de enrolar, eu gostaria que você faça uma coisa por mim”.
Anna está com o rosto impassível,
mas um leve tremor em seus lábios me faz imaginar que ela também está nutrindo
algum tipo de raiva, como se suas emoções estivessem frágeis e resguardadas num
invólucro prestes a se romper a qualquer minuto. E eu temo.
“Milena”, Anna sorri, mais uma vez não convencendo em seu
comportamento, “por que eu faria alguma
coisa por você?”
“Anna, por favor!”, preciso intervir, pois minha namorada começa a
complicar as engrenagens desta que poderia ser uma noite de paz e tranquilidade
na terra.
“Não, Sávio!”, Milena me corta. “Ela
tá certa em agir assim. É normal ela agir assim. Eu não tava esperando outra
reação”.
“Ainda bem”, ressalta Anna. “Nosso
histórico não é dos melhores”.
“Eu sei. E é por isso que eu quero te pedir perdão”.
Anna se engasga de leve com a
água de coco. Eu não sei se entendi o que Mile acaba de dizer, portanto fico
piscando como quem ouve uma revelação da qual não tem um pingo de compreensão a
respeito. Essas duas mal começaram a jogar e já estão lançando sobre a mesa as
cartas mais arrasadoras.
“Como é que é, Milena? Perdão?”, indago.
“Sim, Sávio”, ela confirma, no entanto ainda olhando somente para
Anna. “Eu estou pedindo perdão pra você,
Anna. Demorou muito tempo, mas eu reconheço que errei e que precisava fazer
isso”.
Anna está processando as
palavras, fitando o canudo enfiado em seu coco.
“Por que de repente você resolveu me pedir pra te perdoar?”, ela
diminui o tom hostil.
“Bom, como eu disse, convidei vocês dois pra uma conversa entre
adultos, e que eu precisava consertar algumas coisas. Não foi uma ideia que eu
tive de repente, eu já vinha pensando nisso. Não tava esperando que fosse hoje,
mas fico feliz de poder lidar logo com isso”.
Como um homem que tenta ser
prático na vida, se eu governasse a mente de Anna, daria essa conversa por
encerrado e perdoaria Milena. Sugeriria que nós três fôssemos embora de volta,
de mãos dadas, cantarolando We are the
world.
Mas algumas coisas na vida não
são tão práticas e fáceis de resolver. Especialmente quando corações foram
feridos e laços foram rasgados. É preciso um pouco de tempo para lidar com
velhas recordações que nos fazem mal sempre que as trazemos à tona. Nem todo
mundo possui maturidade para compreender que o tempo do outro é diferente do
nosso, e que isso não é culpa do outro, mas de um conjunto de inúmeros fatores
que prepararam o outro para lidar com as mais variadas situações.
Uma conversa como a que estamos tendo agora
serve justamente como uma ferramenta para lidar com isso da forma mais
apropriada.
“Ooooolha o chuuuuurrooooos!!!!”, uma voz grita a poucos metros de
nós, empurrando um carrinho onde se lê “Churros
D´Outro Mundo”. Rita Lina vem empurrando e berrando. Em passos graciosos, ela
está usando uma espécie de uniforme branco com algumas listras amarelas,
combinando com uma calça azul-hospital, arrematando o visu com uma boina preta
e os cabelos presos num coque. Espere. Eu disse “combinando”? Bom, estou
falando de Rita Lina, cujo senso a respeito de qualquer coisa está muito além
da minha compreensão.
Algumas crianças correm até ela,
esbaforidas. Um garotinho que não aparenta ter mais de dois anos quase é
atropelado por uma menina maior e mais forte, que tem as bochechas vermelhas
que nem um pimentão e não parece ter nenhum problema em se esgoelar.
Rita nos avista e, após vender
alguns churros para a criançada, encosta o carrinho e vem até nós.
“Mas que coincidência bizarra!!”, admira-se Rita. “É alguma reunião da época do colégio?”
“Oi, Rita”, cumprimento-a, estranhamente com vontade de beijar seus
pés por trazer um pouco de alívio a um momento ainda bastante tenso. Se bem que
ela apareceu num momento super inconveniente. “Quer dizer que agora você vende churros?”
“Siiiimmm!! E sou eu mesma que faço. Minha mãe queria me dar uma
mãozinha, mas ela não compreenderia o passo-a-passo de uma receita Valpixiana”.
Anna, que não está acostumada com
Rita Lina, apenas continua bebendo sua água de coco, evitando olhar para
Milena. Deve estar aproveitando a chegada de Rita para fazer uma pausa e
organizar as ideias.
“Cá entre nós, esse nome ‘Churros D´Outro Mundo’ não é à toa. Eu uso um
leite especial na massa”, explana Rita.
“Você não tem medo da vigilância sanitária te pegar?”, questiona
Mile.
“O leite das Cucuranhas Valpixianas é indetectável. E ele parece leite
comum, com o diferencial de que ele pode dar origem a praticamente qualquer
comida. No caso dos churros, é só misturar o leite das cucuranhas com açúcar e
colocar vinte papeis comestíveis nos quais você escreve a palavra churro.
Então, está pronta sua massa para churro. Magnífico, não é?”
“Cucuranhas?”, Anna não resiste à curiosidade, franzindo as
sobrancelhas.
“Elas são tipo as vacas do planeta Valpíxia, exceto pelo fato de que
sabem voar e tem o dobro de tamanho de uma vaca comum. Por isso, em Valpíxia,
elas provêm alimento e transporte. Bom, vou pegar uns churros pra vocês
provarem. Por conta da casa. Vão ver que são mais deliciosos que churros
comuns”, decide Rita.
“Ah, muito obrigado, mas eu não gosto de churro. Desculpa”, Milena
dá a desculpa que eu também pensei. Só que ela foi mais rápida. Afinal, onde
Rita Lina encontra cucuranhas que lhe fornecem leite?
Uma garotinha negra de trancinhas
longas e óculos fundo de garrafa, trajando um vestidinho do Show da Luna corre até onde estamos,
dirigindo-se a Rita.
“Senhorita, eu vim até aqui pra dizer que os seus churros são mais
deliciosos que churros comuns”.
Rita sorri, visivelmente
sem-graça, faz um carinho na cabeça da guria, que retribui com um sorriso
banguelinha e retorna para onde estava, outra vez correndo.
“Nós acabamos de comer, Rita. Foi mal”, faço o cavalheirismo de
incluir Anna na minha desculpa para fugir do quitute duvidoso, ignorando o
testemunho que acabo de presenciar da garotinha.
“Ah, tudo bem. Quem sabe a gente se encontre de novo, né? Mas tem que
ser logo, pois tô pensando seriamente em largar a venda de churros e começar a
vender algodão doce emagrecedor. Tô com um pressentimento de que vai bombar”.
“Deixe-me adivinhar”, interrompe Milena. “Vai fazer isso usando esse tal leite das curacunhas, certo?”
“Cucuranhas!”, corrige Rita, como uma professora distinta. “Mas você acertou, é assim mesmo que eu vou
fazer. Ainda não sei se dá certo, mas é só escrever ‘algodão doce emagrecedor’
e misturar ao leite. Só não sei quantos papeizinhos iriam nessa receita...
Enfim, preciso ir, gente. Adorei ver vocês!! Tenham uma boa noite!!”
“Tchau, Rita!”, Milena e eu dizemos, enquanto Anna só acena
simpaticamente.
“Quem é essa figura?”, Anna pergunta, após Rita seguir seu caminho
e, mal dando três passos, ficando cercada de crianças sacudindo notas de
dinheiro no ar, loucas pelos seus “churros mais deliciosos que churros comuns”.
“É a Rita Lina, uma antiga colega de escola”, esclareço.
“Do Santo Cristo? Não me lembro dela”.
“Engraçado é que ninguém parece se lembrar”, acrescenta Milena.
De algum jeito, a rápida aparição
de Rita nos deixou mais leves, mais à vontade. Obviamente, o assunto a ser
tratado aqui ainda é muito delicado, mas agora parece que estamos nos sentindo
mais tranquilos para tocar nele. Ou, pelo menos, estou torcendo para estar
certo.
“Você dizia...”, Anna aponta o queixo para Milena.
“Ah, sim... Bom, eu tava dizendo que decidi consertar algumas coisas na
vida e uma delas era essa situação que existe entre nós desde 2002”.
“Hummm...”, Anna suga água de coco pelo canudo.
“Eu reconheço que agi mal”, Milena pronuncia essas palavras como
que dando conclusão à sua fala.
Eu continuo apenas observando.
Apesar de ter sido chamado para a conversa, esse momento é só das garotas.
Anna fecha os olhos, dando o que
parece ser a última sugada na água de coco. Engole. Passa a língua nos lábios
para tirar o excesso do líquido. A luz de um poste confere aos seus cabelos
tingidos de ruivo um contorno que atrai meus olhos para a maciez de seus fios.
E por um instante eu caio em mim de que ela é e sempre foi aquela Anna, a que me levou a conhecer o fundo do poço por um bom
tempo na vida, aquela que emprestou sem querer o nome para a melhor coisa que
eu pude empreender, que é a Agência do Negócio Nada Apaixonante. Vislumbro seu
rosto, sua pele, seus cabelos e pareço não estar acreditando que, numa noite
qualquer, tão próximo da minha casa, estamos juntos, e Milena também está. Olha
só que coisa mais esquisita! Um encontro que nem nos meus sonhos mais
alucinantes eu poderia ter previsto.
“Muito bonito da sua parte, Milena”, declara Anna.
Milena está apreensiva. Anna
continua. Por alguma razão, eu sei que ela precisa continuar.
“Sabe, eu me peguei pensando várias e várias vezes como teria sido a
minha vida se você não tivesse inventado de ajudar o Sávio a se desapaixonar de
mim. Será que nós teríamos ficado juntos? Ou será que era o nosso destino ficar
separados? Nós éramos tão jovens, não é mesmo? Nós três. Adolescentes que não
sabiam nada sobre a vida, que achávamos que entendíamos de amor, amizade... Mas
a gente se magoou. E, mesmo sendo adolescentes, essa mágoa não passaria apenas com
o tempo. Porque ela teve um significado enorme nas nossas vidas, ela teve um
peso muito grande. Ela definiu os nossos caminhos”.
Milena, assim como eu, está
compreendendo a necessidade que Anna tem de falar. Portanto, adota uma postura
de ouvinte plena.
“Vocês continuaram amigos, inseparáveis, quase irmãos. E eu fui
colocada de lado, tendo de me virar com o que tinha, com os amigos que me
restaram depois daquela fofoca sobre eu estar me envolvendo com um ‘coroa
rico’, como algumas pessoas resolveram chamar na época. Eu sempre fui uma das
garotas populares da escola, mas a verdade é que à noite, no meu quarto, eu não
desejava outra coisa a não ser morrer. E vocês dois sabem o porquê. A Milena
ouviu diretamente de mim naquela época a verdade, o porquê de ter feito o que
eu fiz com o Sávio. Não foi?”
Os olhos de Milena estão
começando a se encher de água. Os de Anna já estão e só agora eu reparo que uma
lágrima acabara de deslizar pela maçã de sua bochecha esquerda.
“Eu pedi pra você me ajudar com o Sávio, Milena. Porque eu não tinha
coragem de encarar o meu namorado com tudo aquilo que tava acontecendo. Com os
abusos que eu vinha sofrendo, todos os... todos aqueles estupros. Eu sentia
tanto nojo de mim, tanto nojo. Eu não sabia mais a quem recorrer. E você me
chamou de mentirosa. Você disse na minha cara que não era problema seu. Você me
abandonou, Milena. Você nem levou em consideração a amizade que havíamos tido
anos antes daquela ocasião. Eu fui pra casa tão arrasada, você não faz ideia de
que por um triz eu não fiz uma besteira contra a minha própria vida. Naquela
mesma noite.”
Milena está derramando lágrimas
copiosamente, mas sem fazer qualquer ruído. Apenas deixando o choro fluir
livremente. O atendente do quiosque nota algo de errado em nossa mesa e, com o
rosto, sinaliza para mim se estamos precisando de alguma ajuda. Balanço a
cabeça dispensando-o.
Anna faz uma pausa e seus olhos
ficam como comportas que se abrem num ímpeto, e ela verte seu choro como o céu
verte uma chuva densa e contínua.
Eu não estou chorando. Porém,
igualmente sou visitado por uma dor que nem eu sabia que dormia dentro da minha
alma. Uma dor que esperou todos esses anos para se fazer notar, deixando meu
coração contorcido diante da imagem de duas das mulheres que mais representam
algo em todo a minha existência.
“Eu errei, Anna. Errei muito, muito feio com você. Me perdoa!”
“Você quase me matou, Milena”, Anna altera um pouco a voz, mas dá a
entender que é mais parte do desabafo do que uma postura agressiva de alguém
comprando briga.
“Eu sei, eu sei... “, repete Milena, entre soluços e o rosto
extremamente molhado. Ela nem se dá o trabalho de enxugar as lágrimas.
Não sou capaz de ler mentes, mas
tenho quase certeza de que Mile está pensando naquele nosso cliente que se suicidara
tempos atrás, algo pelo que ela tomara parte da culpa e provavelmente até hoje
a assombra demais.
“Por que você fez aquilo?”, insiste Anna.
O choro de ambas continua. Mas o
de Milena está diminuindo, pois há um crescente desespero tomando conta de sua
fisionomia.
“Diga a verdade, Milena”, Anna insiste ainda mais.
Estou com medo. Medo, não. Não
consigo explicar, mas é algo menor que medo e bem maior do que curiosidade, mas
que me faz sentir receio pelo que ainda há a ser dito nesta mesa.
Vários anos atrás
“Me fala da escola”, continuou a dra. Márcia. “Como tem sido sua relação com as meninas com quem você fez amizade?”
“Elas são legais”, repetiu Milena com certa pausa, pois sua real
vontade era de falar “eu já disse isso, mas ok, vou repetir só pra fazer você
achar que está se saindo bem fingindo que tá interessada na minha vida e não na
grana do meu pai”.
“Elas sabem sobre... hã... sobre o que aconteceu?”
“Se elas sabem que a minha mãe está morta?”
Dra. Márcia percebeu que dera uma
pisada na bola. Mentalmente, perdoou-se por estar há apenas três anos exercendo
a profissão, era jovem demais e esse tipo de situação lhe ajudaria a não mais
cometer essas pequenas gafes. Ela mais do que compreendera que Milena não tinha
muito freio na hora de falar e que era uma adolescente bem direta. Devia ter
usado isso como forma de manter a boa comunicação com ela.
“Isso”, Dra. Márcia limitou-se a confirmar.
“É, eu... comentei”.
Milena apresentou um leve
desconforto.
“E o fato de ter contado a elas te deixa incomodada ou você acha que
foi bom dividir isso com as suas amigas?”
“Acho que... Não sei. Acho que até agora tá tudo normal. Tipo, elas
ficaram sentidas e com pena de mim, eu acho. Mas isso não me incomodou”.
“Você acha que alguma delas poderia, de repente, se tornar uma grande
amiga com o tempo? Talvez uma melhor amiga?”
“Hummm... Duvido. Só tive uma melhor amiga até hoje, e foi a minha
mãe”.
Dra. Márcia engoliu em seco, de
cabeça baixa enquanto processava a informação de rasgar o peito.
“Ok. Milena, eu gostaria de perguntar mais uma coisa, e não quero que
fique chateada que nem da última vez, mas eu preciso tocar nesse assunto”.
“Ok”.
“Você já está se alimentando melhor? O seu pai estava muito preocupado
na última consulta”.
“Estou”.
“Está?”
“Estou!”
Dra. Márcia sustentou o olhar no
rosto de Mile por um tempo. A garota a imitou. Depois, ambas desviaram os olhos
quase ao mesmo tempo.
“Você tem noção do quanto o seu pai te ama, Mile?”
“Aham”.
Essa não, a menina começou a usar
os balbucios. Dra. Márcia precisava apelar para algo mais significativo.
“Eu soube que a sua mãe te deu um diário há bastante tempo antes de
falecer. O que pode me dizer sobre ele?”
“É um objeto onde você escreve o que aconteceu no seu dia”.
Márcia respirou fundo, em dúvida
se dava graças a Deus pela garota estar demonstrando senso de humor ou se
ficava aborrecida pela resposta abusada.
“Muito bem”, a terapeuta optou pela paciência. “E o que você já escreveu nele?”
Milena deu de ombros, achando a
pergunta inconveniente:
“Ainda nada, mas... Bem, é um diário. Eu não poderia contar pra
senhora, né?”
“Você tem toda a razão”.
“E também não acho que vou usar esse diário algum dia”.
“Hummm...”, analisou dra. Márcia, refletindo sobre o que dizer em
seguida. Precisava ser mais eficiente e parecer, de fato, estar ajudando a
garota. “Veja bem, Milena. Eu não
acredito que um dia estaremos preparados pra esse tipo de situação. Pra morte
de uma pessoa querida, principalmente se for alguém que significa o mundo
inteiro pra nós. Porém, essas coisas acontecem. E elas não escolhem a quem
atingir, entende? Não quero que você se martirize por ter perdido sua mãe.
Olha, eu não sei qual religião você segue, mas como você acha que sua mãe se
sentiria ao olhar para cá e ver a filha dela tão tristonha? Ok, eu entendo que
ainda é muito recente e que você ficou traumatizada, mas que tal começar a
compreender que, infelizmente, por alguma razão, sua mãe teve de partir, mas
você está aqui, e você deve continuar a viver e lutar pelas coisas que quer ter
e ser no futuro. Eu tenho toda a certeza que sua mãe gostaria muito disso. E
você tem a seu pai. Ele vai te ajudar em tudo, com todo apoio e todo amor”.
“Eu sei”.
“Você está disposta a começar a aceitar o que aconteceu?”
“Não sei se já tô pronta”.
“Eu entendo, querida. Mas com o tempo você vai ter de se esforçar. Do
contrário, você pode sofrer mais do que já está sofrendo”.
Milena podia sentir toda sua
agonia voltando, mas não de uma forma devastadora como foi durante os últimos
meses. Era uma agonia por não ter a mínima ideia de como proceder para alcançar
o que a terapeuta lhe recomendava.
“Você pode começar se abrindo um pouco mais para as novas amizades.
Obviamente, ninguém vai substituir o que a sua mãe representa pra você, mas vai
ser saudável ter pessoas confiáveis por perto, pessoas com quem você pode se
divertir e dividir histórias e momentos. O que você acha?”
Apesar de não ter algo contra
dra. Márcia exatamente, Mile não via a hora de sair de sua presença. Estava
cansada de tanta análise, queria poder “curtir” sua melancolia em paz. Era
apenas uma adolescente! Não tinha de ficar fazendo planos para se curar
emocionalmente. Tudo de que precisava no momento era se deitar e dormir por
horas e horas, a única “atividade” que vinha lhe dando mais prazer ultimamente,
porque desligava-a de toda tristeza e saudade dilacerante, pelo menos por um
tempo.
“Eu posso tentar, dra. Márcia”.
“Isso!”, a alegria de Márcia ficou evidente. “E vou te dar uma sugestão: se não se sentir à vontade com alguém
ainda, use o diário. Ele é seu amigo. Você vai ver como é maravilhoso escrever
tudo o que você pensa e sente, sem receio de ser julgada e censurada. Você me
entende, Mile?”
“Entendo”.
“Promete que vai tentar?”
“Prometo”.
Por fim, ela só disse aquilo mais
para dar à psicanalista o que ela queria ouvir do que o que realmente estaria
empenhada em fazer. Pelo sorriso de dra. Márcia, em poucos minutos Milena
estaria liberada da consulta e poderia voltar para casa. Aquela foi a última
vez em que as duas se cruzaram como médica e paciente, e a dra. Márcia nunca
poderia supor que Milena só viria a tocar naquele diário muitos anos depois,
inclusive atribuindo-lhe o curioso nome de Fabi.
(Sávio)
Quase sem piscar, Milena enfim
revela:
“Eu não queria perder o Sávio pra você”.
Sua afirmação me enche de uma
espécie de preocupação. Como assim “me perder”?
Anna também parece não entender,
então Milena resolve explicar:
“Não tô falando que eu era apaixonada pelo Sávio ou qualquer coisa
assim. Pelo menos não nessa época. Mas o Sávio sempre foi a única coisa mais
próxima de uma família que eu tive, depois que a minha mãe morreu. E eu não
queria perder isso. Então eu me recusei a te ajudar porque eu vi nisso a minha
chance de ter o meu melhor amigo só pra mim. Essa é a verdade”.
“O quê?”, Anna está incrédula.
“Tudo que eu poderia querer num irmão, num amigo... Tudo que se foi
quando a minha mãe morreu... Eu encontrei no Sávio. E eu fui a pessoa mais
mesquinha, mais egoísta e mais cretina só pra não perder isso. Só pra não
perder outra pessoa importante”.
“Mas, Mile”, eu finalmente me pronuncio. “Você não iria me perder. A nossa amizade não ia se acabar”.
“Não era assim que eu pensava”, ela me conta, olhando para baixo, envergonhada
em ter de despejar todas essas verdades. “Eu
era uma adolescente inconsequente. Uma garota com a mentalidade toda abalada,
com sintomas de depressão e um trauma horrível pela morte da minha mãe. E
embora eu tivesse um pai que me amava muito, e que me ama até hoje, ele logo
encontrou outras ocupações, uma nova namorada... Eu definitivamente não tinha
como raciocinar de uma forma tão madura naquele tempo. Então, meu amigo, eu
também preciso que você me perdoe. Por favor!”
“Eu já perdoei você, Milena”, afirmo, com imensurável carinho.
Ela ensaia um sorriso, mas
volta-se para Anna, num olhar angustiado esperando ser perdoada.
“Você sabe que não é fácil pra mim, Milena?”
“Tenho plena consciência disso”.
“Você tá me pedindo perdão do fundo do coração?”
“Do fundo do meu coração e da minha alma”.
“Você tem noção do que você fez?”
“Sim”.
“Tem noção mesmo? Você tem ideia de que, quando eu fui pedir ajuda pra
você, eu ainda acreditei que existia um pouco de amizade entre nós duas?”
“Sim, Anna. Sim”.
As lágrimas de Anna estão
cessando. Ela agora fica fungando de vez em quando, dando pequenos suspiros vez
ou outra. Entretanto, seu rosto parece se iluminar.
“Sabe, Milena, talvez você nunca soube... Mas eu poderia ter te
sacaneado uma vez, como uma vingança. Um ex-namorado seu se apaixonou por mim
uma vez, e eu também gostei dele. O Enzo. Até procurei o Sávio pra me ajudar.
Foi assim que eu vim parar na vida de vocês de novo. Mas o Sávio não me deixou
contratar os serviços da agência, mesmo sem saber que se tratava do Enzo.
Acontece que, depois de um tempo, eu mesma pulei fora. E eu sabia que ele era
seu namorado e que tava querendo terminar com você pra ficar comigo. Mas eu não
quis ser tão escrota”.
Já que é pra lançar as granadas
da verdade, vamos lá!
“Você?! Era... Era você?!”
“Era eu. Enzo chegou a dizer que era eu?”
“Ele nunca me disse!”
Posso estar enganado, mas Milena
tem um ar levemente risonho agora. Como se estivesse descobrindo uma notícia
maravilhosa.
“Caraca!! Então foi você que me ajudou a me livrar do Enzo?!
Caraaaacaaa!!!”
Como uma pessoa que acompanha um
filme e começa a juntar as peças que ajudam a entender a trama, Milena está
praticamente comemorando essa recém-adquirida informação.
“Como assim se livrar?”, estranha Anna.
“Eu tava procurando uma forma de terminar com ele e não sabia como. Até
que ele se apaixonou por uma outra mulher e aconteceu que foi ele quem terminou
comigo. Que louco! E esse tempo todo essa mulher era você. Meu Deus!! Meu
Deus!! Eu vim aqui te pedir perdão, mas pelo visto também tô te devendo um
‘muito obrigada’. Eu não acredito nisso”.
Anna está bastante perdida, olha
para mim e eu também não tenho outra reação a não ser estranhar que do nada
Milena tenha até se alegrado um pouco. Eu não sabia que ela queria tanto assim
terminar o namoro com o Enzo.
“Muito, muito, muito obrigada, Anna. Muito obrigada mesmo. E pensar que
eu te odiei por ter roubado o coração do Enzo, mesmo eu já não gostando mais
dele”.
“Você já me odiava mesmo, né? Economizou ódio”.
Um silêncio se assenta conosco.
Eu sei o que isto significa: que Anna precisa, enfim, resolver se perdoa ou não
Milena.
“Eu acredito numa coisa, Milena. Que tudo acontece por um propósito.
Todas as nossas escolhas nos levam a viver a vida de um jeito bom ou ruim. Mas
a gente precisa de maturidade pra fazer as escolhas boas e certas. Então, pra
eu não ter de me arrepender e ficar carregando essa mágoa pro resto da vida...
Eu escolho te perdoar”.
Lentamente, um saco de peso
incalculável vai sendo retirado das minhas costas. Um gosto de aflição vai
dando lugar a um sabor doce de alívio. Ouvir alguém te perdoar é como anular
uma dívida gigante que você pensou que nunca quitaria. E olha que eu nem sei
aquele que está sendo perdoado.
Milena deve estar se sentindo da
mesma maneira.
“Obrigada, Anna”.
“E mais do que isso”, adiciona Anna. “Eu quero que fique bem claro que, apesar de tudo que aconteceu, eu
sempre te admirei. Você é uma mulher incrível que venceu na vida mesmo com
todas as dificuldades e os traumas que você disse que passou... E eu devo
confessar que, no começo, eu não dei bola pro fato do Ivan te trair com outras
mulheres. Mas, sendo bastante adulta e usando de toda maturidade que eu posso
nesse momento, você não merece passar por isso. Nenhuma mulher merece, na
verdade. E se você precisar de mim pra alguma coisa, sei lá, pra enfrentar esse
cafajeste, eu tô à disposição”.
Milena arqueia uma sobrancelha,
surpresa. Ela jamais esperaria um ato de sororidade como esse vindo de alguém
tão improvável. Seu coração deve estar exultante.
“Eu... eu...”, Mile gagueja. Respira fundo, então vai em frente: “Eu não sei o que dizer. Eu não sei nem
mesmo como me sentir. Sério. Obrigada mesmo. Obrigada”.
“As feridas vão passar”, conforta Anna.
Anna estica o braço, a fim de
tocar as mãos de Milena, que estão unidas sobre a mesa. Aproveito para dizer:
“Anna, eu... também quero te dizer uma coisa”, aviso, com a
garganta um tanto seca. E a droga da água de coco já acabou.
“Você já contou pra Milena que ela é a sua constante?”
Não basta a garganta seca, agora
sinto a pele do rosto queimar de vergonha. Por que Anna teve de falar algo
assim tão na bucha? Que impróprio!!
“Quê?”, Milena franze o cenho.
“No dia do aniversário dele, eu ia pedi-lo em casamento. Coisa doida,
né? É tão raro uma mulher fazer isso. Eu, por exemplo, nunca vi nenhuma fazer.
Mas daí a gente teve uma pequena discussão porque ele tava investigando o Ivan
pra você e nem foi jantar com a família e comigo. Foi aí que ele me falou que
você era a constante dele. Com essas palavras”.
“Constante?”, Milena se porta claramente envergonhada. “Mas o que isso quer dizer?”
“Não sei direito”, desconversa Anna, virando-se para mim e mexendo
de leve em meus cabelos. “Mas de uma
coisa eu tenho certeza: você nunca fracassou ao fazer o Sávio se desapaixonar
de mim, Milena. Pode até ser que ele não esteja apaixonado por você, mas ele
descobriu que precisa mais de você na vida dele do que de mim. Eu tô enganada,
Sávio? Não era isso que você tinha pra me dizer?”
Caramba, era? Nem eu sei mais.
“Eu...”
“Era isso sim, amor”.
Ok, a conversa agora chegou num
ponto muito constrangedor para todos os envolvidos.
Não nego e nem confirmo. Só me
resta o silêncio, o amigo dos que não conseguem expressar com palavras úteis e
inteligíveis os sentimentos mais íntimos.
Mas uma coisa é verdade
indiscutível: amo essas duas mulheres. Não como Ivan deve jurar que ama sua
coleção de namoradas, Deus me livre! Mas amo Milena Kerber e amo Anna Munhoz de
formas diferenciadas, de maneiras que só meu coração compreende, fazendo com
que nem mesmo eu consiga alcançar tal entendimento.
“Diante disso”, conclui Anna, “devo
declarar oficialmente terminado nosso namoro?”
Estremeço. Como assim? Tão
repentinamente? Desse jeito tão... “prático”?
“Acho melhor eu ir, isso é assunto só pro casal”, Mile levanta-se
da cadeira.
“Não, não, Milena. Por favor, fica!”, Anna intervém.
Anna Munhoz está me encarando
placidamente. O rosto iluminado e o olhar com uma alegria estranha, inesperada.
Como ela pode estar se sentindo bem diante da situação em que acaba de me
colocar? É apenas fingimento? Não parece ser.
“Me desculpe, Anna, eu...”
“Não tem problema”, ela diz, atenciosa e compreensiva.
“Não me sinto bem tratando disso agora. Não é melhor a gente tratar
disso depois?”
“Ele tem razão, Anna”, Milena se intromete, mais uma vez fazendo
menção de sair. “Essa é uma conversa
apenas pro casal”.
“Sávio”, Anna ignora Milena. “Seja
sincero. Seja adulto! Isso aqui não é uma conversa entre adultos? Então, se
você vai deixar pra tratar depois algo que pode ser decidido agora, por que não
decidir logo? Você vai terminar comigo, está mais do que claro. Ficou mais do
que evidente no dia do seu aniversário, meu amor. Chega de adiar. Eu quero te
ver feliz. Eu quero que você seja adulto o bastante pra dizer pra mim com todas
as letras que, sim, você está desapaixonado. Eu não sou mais uma criança,
Sávio. Eu não tenho mais tempo pra ficar magoada com esse tipo de coisa. Nós
somos adultos agora. Não seja irresponsável de iludir uma pessoa que gosta
tanto de você, fazendo-a esperar por algo que pode ser resolvido hoje, que pode
ser resolvido agora. Diga a verdade, meu amor”.
E, para minha surpresa, também
estou chorando. E eu pensando que fosse escapar da choradeira da noite... Cadê
a Rita Lina com o carrinho de churros?
“Sávio!”, Anna se vira totalmente para mim, pegando no meu rosto
com as duas mãos. Milena testemunha cada detalhe da cena. “Não se preocupe comigo. Eu te amo e só quero ver você bem. Confia em
mim!”
Não resisto a essa declaração e a
puxo para um abraço, abrigando minha cabeça em seu ombro. E me desato a chorar
feito um bebê esfomeado. Não era pra ser assim, Anna.
“Tá tudo bem, meu amor”, ela me consola, também recomeçando um
choro.
Abro os olhos por um instante e
encontro o olhar de Milena, num misto de admiração e carinho olhando para mim e
minha... hã... agora ex-namorada.
“Me desculpa, Anna”, é só o que consigo dizer. É a minha maneira de
terminar com ela, sem precisar usar palavras que tragam alguma crueldade em seu
significado.
“Está bem, meu amor. Está bem”.
Assim que o nosso abraço termina,
Anna se levanta e faz sinal para Milena se levantar também. As duas
imediatamente se abraçam, selando de vez e de maneira real o seu ato de perdão.
Dessa vez eu sou a testemunha, aquele que contempla um milagre acontecendo
diante de meus olhos e ainda continua confuso sem saber se tudo não passa de um
sonho.
Chamo o dono do quiosque, acerto
a conta e convoco as garotas para irmos embora. E, do mesmo jeito que
caminhamos até a praça, marchamos de volta para casa. Em silêncio. Contudo, não
é mais o silêncio angustiante pelo que a noite poderia nos trazer de ruim, mas o
silêncio benevolente pelo que o futuro pode nos conceder de bom.
Será que esta foi uma noite de
boas escolhas? Um coração batendo relaxado deve servir como sinal para eu
entender que sim.
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