DEZESSETE DIAS DEPOIS
Está tudo em preto e branco. Como
uma experiência fortemente imersiva num filme de Chaplin. Não há outras cores
ali. O lugar, porém, não é desconhecido. O estranho visual de linhas brancas e
pretas em ziguezague permeando teto, piso e paredes já havia sido contemplado
tempos atrás, num sonho. Num sonho que não era seu, aliás.
Denner, até então sereno, percebe
a aproximação. Laura Palmer vem de lugar nenhum e se senta no canto de um sofá
de três lugares. Seu vestido preto justo, conferindo-lhe notável elegância, os
cabelos louros quase brancos descendo em cascata pelos ombros. Ela cruza as
pernas, fitando-o. Denner devolve o olhar, confuso.
“Laura Palmer?!”
“Olá, agente do desapaixonamento!”
“Onde estamos?”
“Estamos mortos”, responde ela com simplicidade. “Aqui é onde o fim vem para descansar”.
“Mas...”, ele titubeia, mais confuso. “Esse lugar... O que é exatamente?”
“Lamento, não sei informar. Tudo o que sei é que sou muito grata ao que
fez por mim. Se não fosse por você, eu não teria vindo parar aqui”.
Denner se lembra vagamente do que
quer que tenha feito a fim de ajudar Laura a ir parar ali. Percebe que a
memória não é exatamente sua amiga.
“Está feliz aqui?”, pergunta ele.
“Estou satisfeita”, ela sorri e levanta os ombros levemente.
“Eu não sabia que eu tinha... morrido”.
“Morrer às vezes é igual a pegar no sono. Você está lá, esperando o
sono chegar, mas no momento exato em que você apaga, você nunca sabe exatamente
como ou quando acontece. É como se desligassem você da tomada do mundo”.
“É, você tem toda a razão”, ele começa a ficar à vontade, embora
sua mente esteja mergulhada em nebulosidade.
“Na última vez em que nos vimos, eu te pedi para entregar uma mensagem.
Você a entregou?”
“Mensagem?”
Laura Palmer sorri, em
expectativa. Mas a estranheza de Denner quanto ao assunto já dá a entender o
que aconteceu.
“Perdão, Laura, eu não me lembro que mensagem é essa”.
“Tudo bem”, Laura se conforma, um fio de desapontamento passando
pelo seu semblante. “É natural que você
não se lembre. Eu mesma não me lembro o que era a mensagem. Só me lembro que
havia te pedido isso. Mas tudo bem. Os mortos têm dificuldade para se lembrar
das coisas. Depois que você chega aqui, na dimensão cinza, nada mais importa”.
Denner é invadido por uma
tristeza profunda, decepcionado por não entender o motivo de estar nesse lugar,
além de lutar consigo mesmo para se lembrar de tantas outras coisas. Que
mensagem era essa que Laura Palmer lhe pedira para entregar? Era importante? E
quem era o destinatário?
O ambiente ganha um colorido de
repente. O cinza dá lugar a cores vivas e mais que passam uma sensação mais
agradável. Denner se assusta com a rapidez que isso acontece. Agora ele pode
ter uma noção melhor do vermelho das cortinas, do marrom do sofá em que está,
dos sapatos dourados de Laura.
“Por que ficou colorido de repente?”
“O quê?”
“Ficou colorido do nada. Você notou que tava tudo em preto e branco?”
“Você está delirando”, zomba Laura.
“Não está vendo?”
“Tudo permanece igual. Esse lugar nunca foi colorido e nunca vai ser”.
Um pequeno buraco do tamanho de
uma moeda de um real surge no meio deles, entre os dois sofás, se expandindo no
ar. Intrigado, Denner se levanta de seu assento, enquanto o buraco vai só
crescendo e crescendo. Laura nada faz para impedi-lo, apenas assiste ao rapaz
se encaminhando até o misterioso buraco.
É como uma fenda, uma janela em
formato circular. No interior da fenda, uma visão: Denner enxerga o rosto de
uma mulher que dorme profundamente. Conhece esse rosto, mas quem é? Droga de
memória afetada pelo pós-morte!
Mesmo temendo o que quer que
possa estar para acontecer, lentamente ele vai aproximando sua mão e seu rosto
do buraco bizarro, que agora está quase do tamanho do rapaz.
“O que você está fazendo?”, pergunta Laura.
Absorto na maravilha que
aparentemente só ele pode enxergar, Denner toca o núcleo do buraco, enquanto
praticamente cola o rosto contra ele.
(Denner)
“Nossa, cara! Até que enfim você acordou!”, diz uma voz grave
masculina e desconhecida.
Está frio. É a sensação imediata.
Ao longe, alguém parece ouvir Palomita
Blanca, uma espécie de bolero, provavelmente num radinho antigo, já que
existe um chiado proeminente no som. Imediatamente, me lembro do meu pai, que
adorava escutar essa música muito tempo atrás.
Aqui está também ligeiramente
escuro, mas há uma penumbra diminuindo a lugubridade.
Me levanto. Estou no que parece
ser uma câmera frigorífica. No chão, deitado preguiçosamente, está um gato
preto e branco que, ao cruzar seu olhar com o meu, salta para o meu colo.
“Por favor, cara, você precisa me ajudar”, diz o gato.
Emudeço. Acordei num local muito
aleatório, depois de um sonho com Laura Palmer e agora um gato falou comigo. E eu
tô tiritando de frio.
“Olha, eu sei que parece estranho”, justifica-se o gato. “Eu nem me apresentei e já fui logo falando
com você. Foi mal, cara. Bem que a minha mãe sempre me ensinou a não ser
mal-educado desse jeito. Mas, enfim, eu sou o Claude. Só que o Everaldo, meu
dono, me chama de Pitico. Eu sei, eu sei, nomezinho de merda, né? Mas por
favor, você tem que me ajudar”.
“Você é um gato. E você fala. E eu consigo te entender”.
“É isso aí, maluco. Show de bola, né?”, alegra-se o gato. “Aproveita esse privilégio e me faz um
favorzão. Olha, o Everaldo tá quase me matando de tanto me dar uns troços
esquisitos pra comer. Por favor, diz pra ele que eu tô tentando seguir uma
dieta vegana há três meses, mas essas rações sabor peixe que ele me dá estão
acabando comigo. Eu tô ficando desmoralizado com meus amigos da Sociedade
Vegana dos Gatos. Eu já tentei me comunicar de todas as formas, até já virei a
cumbuca de ração na cara da filha dele, já fiz uns arranhões na porta em forma
de cenoura, alface... Mas tá osso! Por favor, dá esse toque pra ele!”
“Quem é Everaldo?”
De repente, a porta abre, o som
de Palomita Blanca adentra o recinto
como um furacão, tanto pelo timbre inconfundível do Juan Luis Guerra quanto
pela chiadeira insuportável. O gato escapa do meu colo, miando como se alguém
tivesse pisado grosseiramente em seu rabo. Mas acho que é porque ele não queria
ser pego.
“Pitico!”, um homem gordo e bigodudo com cara de uns 45 anos exclama,
em tom de bronca. “Como é que você veio
parar aqui, seu danado?”
“Miaaaalfaaaceee!!!”, mia o gato, piscando para mim.
O bigodudo então lança a luz da
lanterna na minha direção, surpreendendo-se com o que vê.
“Cacete! Você acordou mesmo!”
(Sávio)
O luto por Rita Lina e Anna me
deixou mais de duas semanas enclausurado, remoendo milhares de coisas sobre a
vida. Já se passaram vários dias desde que entregamos Denner aos cuidados de um
conhecido dos pais de Rita, já que não havia uma maneira menos suspeita e menos
ilegal de se esconder um cadáver pelo qual estamos aguardando confirmação de
uma possível ressurreição.
Resolvi aceitar o insistente
convite de Milena para um chá gelado e um bate-papo. Não vou negar que as
tentativas de minha mãe em me fazer sair do quarto ajudaram um pouco,
principalmente depois que alguém quebrou minha janela com um lata de spray
suspeito. Pensei que fosse gás lacrimogênio ou algo assim, mas quando saí do
quarto, mamãe estava do lado de fora erguendo as mãos para o céu. Na ocasião,
eu gritei desesperado:
“Rápido, mãe! A gente precisa se esconder pra se proteger! Não sei o
que tá rolando, mas acabaram de arrebentar minha janela com um spray de gás
lacrimogênio!”
“Não era gás lacrimogênio, seu pateta! Fui que eu mandei o Dominique
jogar um spray de desodorizador de ambiente. O fedor vindo do seu quarto já
tava ficando insuportável”.
Ela não ligou para minha cara
indignada e, com uma máscara, uma vassoura e um balde cheio de água e sabão,
finalmente invadiu meu quarto.
Agora, aqui com Milena, minha
amiga decide que é hora de botar algumas cartas na mesa. Segundo ela, gostaria
de ter feito isso antes, mas preferiu respeitar esse tempo que eu fiquei longe
e inacessível.
De todas as histórias mais
chocantes, de longe a dos universos paralelos é a mais fantástica.
“Isso é o sonho de todo nerd”, reajo. “Será que nessa realidade do Pedro e da Olívia já existe viagem no
tempo também? Seria um sonho”.
“Disso eu não sei”, ela ri, colocando mais uma “dose” de chá gelado
de abacaxi no meu copo.
“Mas e aí? Você não ficou tentada a ir lá pro outro universo?”
“Não”, ela mal parece considerar a hipótese, mas seu olhar se torna
distante depois que eu pergunto isso. “Por
quê? Acha que eu deveria ir?”
“Não sei...”, fico reticente, e só agora começo a levar a questão
em consideração e suas implicações.
“Ah, que bobeira a gente ficar falando disso, né?”
“É... Mas olha só, você não tinha me falado que seu diário se chamava
Fabi por causa de uma antiga amiga de infância?”
Ela dá um sorriso amarelo, desses
que damos quando somos pegos.
“Bom, como eu disse certa vez, eu já tinha te contado algumas mentiras
e guardado alguns segredos. Acho que eu te falei isso lá na sala dos desafios
da Aurora, lembra?”
“Acho que lembro”, ainda não me dou por satisfeito. “Por que não me contou desde o princípio que
tudo se tratava da sua mãe?”
“Pra ser sincera, depois de um tempo eu até esqueci que tinha mentido
pra você. Talvez eu até tivesse acreditado no que te falei, sei lá. Mas a
questão é que na época que te contei do meu diário eu tinha o quê? Uns
dezesseis anos? Ah, eu era nova demais pra assumir que tudo à minha volta tinha
influência da morte da minha mãe. Porém, eu de fato tive uma amiga com apelido
de Fabi na infância. Foi isso que tornou mais fácil de mentir. Porém, nem de
longe ela mereceria ser homenageada a ponto de virar o nome do meu diário”.
“Por quê? Ela era uma menina chata e fazia bullying com você na escola?”
“Pior. Eu é que fazia com ela. Eu roubei umas cartelas de adesivo dos
Ursinhos Carinhosos dela uma vez, mas quando ela descobriu, em vez de ficar com
raiva, disse que eu podia ficar. Dá pra acreditar como uma pessoa podia ser tão
legal? Droga, eu queria irritá-la e ela só fazia revidar com seu jeitinho
amoroso e pacífico”.
“Uau! Como você era má!”
“É, eu sempre fui uma menina meio difícil”.
E uma onda de silêncio rouba
nosso momento. É péssimo quando, mesmo você podendo fragmentar um assunto em
outros mil ao estar com sua melhor amiga, o silêncio vem e faz de vocês um par
de bobocas degustando um momento super sem-graça.
“Quer mais chá?”, Milena tenta consertar o clima estranho.
“Quero. Mas só depois de terminar esse copo que ainda tá muito cheio”.
E voltamos à mesma. Até que eu
tomo consciência de que há algo entalado na minha garganta, me perturbando para
sair.
“Como você diria que está se sentindo depois de tudo que aconteceu?”
Eu passei os dias anteriores a
este tentando esquecer tudo o que houve. As barbaridades, as perdas, as
dores... Mas é que está tudo tão renitente dentro de mim. Mesmo as conversas
mais triviais com Milena ―que eu sempre adorei ter― são apenas meros disfarces
para a morte que ambos estamos experimentando. Nada é pior do que estar morto
num corpo vivo.
“Você se refere a que, exatamente?”
“Você sabe, Mile. A gente passou por tanta coisa nos últimos tempos.
Principalmente você. Sabe, eu me sinto quebrado por dentro. Como se estivesse
em dívida. Não sei explicar direito. Mas essas duas semanas em que eu estive
longe, quase surtei. Não vou mentir pra você: senti vontade de morrer quase
todo dia”.
Ela me encara, séria.
“Eu...”, ela hesita, pensativa. Depois prossegue: “Eu acho que vou melhorar. Não sei quando,
mas um dia esses fantasmas vão passar. E tudo vai ter um fim. Você não acha?”
“Você tá tentando mentir pra mim de novo, não é?”, retruco. “Eu sou teu amigo há muitos anos, Mile. Ouso
afirmar que te conheço melhor do que qualquer pessoa. Por trás dos teus olhos
tem uma coisa muito pesada, um sentimento obscuro. Como se você tivesse uma
dívida, assim como eu”.
Ela engole em seco.
“Que dívida, Sávio? Com quem?”
“Não sei”.
O celular vibra no meu bolso.
Quando o retiro para ignorar a chamada, visualizo um nome no identificador de
chamadas: estávamos esperando por essa ligação há muito tempo. É a dona Túlia,
mãe de Rita Lina.
Milena acompanha enquanto eu
troco algumas palavras com a mulher. Desligo o telefone, e meu coração se enche
de tanta esperança que até a expressão melancólica de Milena também muda.
“O amigo da Dona Túlia ligou pra ela e avisou que o Denner acordou. O
plano da Rita Lina funcionou, Milena”.
“Meu Deus!”, exclama Mile, encantada.
Nos abraçamos comemorando a
notícia, e logo trocamos um olhar cúmplice de medo. Muito medo. Quem assumirá a
responsabilidade de contar a Denner o que sua namorada fez?
(Milena)
No caminho para a casa de Rita,
não deixo de realizar o quanto é insano pensar nela e saber que ela não está
mais entre nós. Depois da primeira vez em que ela morreu, ainda guardei
esperanças de que ela retornasse outra vez, falando qualquer abobrinha em
Valpixiano e deixando todo mundo de cabelo em pé, mas logo em seguida agindo
como se nada tivesse acontecido.
Mas, pobre iludida Milena, não
foi assim que aconteceu. No dia do seu enterro, houve de fato um enterro. E
nenhum corpinho de baixa estatura com olhos esbugalhados ousou se levantar da
cova. A valente e polivalente Rita Lina nos deixou para trás, reservando-nos um
último sorriso daquele tipo que nunca fomos tão doidos assim para entender.
Talvez não precisássemos ser doidos. Talvez ela é que fosse evoluída, e nós
ainda presos aos conceitos básicos sobre tudo, vivendo cada dia como quem segue
uma cartilha racional. Tenho certeza que Rita não se grilou nem um pouco ao
descobrir a existência de multiversos e de saber que podia invocar uma nave
espacial ou causar incêndios. Para ela, esse tipo de coisa capaz de deixar um
ser humano alarmado era feijão com arroz.
Rita Lina faz falta. E continuará
fazendo.
E agora, qual de nós dois, entre
Sávio e eu, vai ter de encarar mais uma situação espinhosa e contar o que
aconteceu com Rita? Eu estou em pedaços. Condições zero para desempenhar uma
tarefa que vai fazer nada mais do que ferir o pobre Denner. Imagine só, você
volta dos mortos e descobre que sua namorada é quem foi pra terra dos pés-juntos.
Hummm... Essa é uma frase que, em tempos normais, nunca passaria pela minha
cabeça. Ora, o que são tempos normais? Acho que eu nunca os vivenciei, pra ser
bem franca.
Seu Laerte nos recebe com um
sorriso educado e quando Sávio e eu entramos, nos deparamos com duas coisas
estarrecedoras. Os cabelos de Denner estão brancos. Exatamente! Brancos,
branquinhos, alvíssimos, imaculados. Continuam com aquele estilo desalinhado,
peculiar do moço, mas na última vez em que o vi, as madeixas estavam castanhas.
A segunda coisa com a qual nos
deparamos, definitivamente a mais dolorosa, é que provavelmente os pais de Rita
já lhe contaram tudo. Seu rosto está abatido e desconsolado. Seu semblante está
murcho.
“Quando me trouxeram pra cá, eu tava todo feliz porque ia ver a Rita,
mas aí...”, a tristeza lhe tira as forças para completar a frase.
Sávio, impregnado de culpa, é o
primeiro a lhe dar um abraço bem apertado. Emocionado também é uma boa palavra.
E Denner desaba em choro, agora ciente do destino de sua amada e de que terá de
seguir uma vida sem a companhia dela.
Recordo de Rita Lina se
desligando desse mundo, sua vida se esvaindo em meus braços. Aquela visão que
eu vou carregar para sempre, com cada pequeno detalhe. E não resisto, me
entregando à emoção. Caminho até onde os dois estão e os envolvo com o meu
abraço e a minha amizade.
(Denner)
Levou quase uma hora para
diminuir a choradeira. Afinal, como é que faz pra parar de chorar quando você descobre que nunca mais vai
ver a pessoa mais importante da sua vida? Rita Lina mudou a minha existência,
me trouxe para um mundo que eu achei que não existisse; um mundo em que existe
a chance de ser feliz e alcançar vitórias.
Por mais que seus pais tenham me
explicado suas motivações, meu coração nunca vai conseguir sarar dessa
ausência. Um ato de amor. UM ATO DE AMOR desse tamanho. Quando eu ia imaginar
que alguém poderia me resgatar da morte desse jeito? Morrendo por mim. A maior
loucura de amor que alguém poderia fazer. E eu, que sempre me julguei tão
inferior, tão indigno. Eu ganhei um presente que nem merecia.
“Como foi que o seu cabelo ficou branco?”, indaga Sávio.
Estamos os três no carro dele.
Ele e Milena se ofereceram para me levar em casa.
“Eu não faço a menor ideia”, digo, ainda zonzo com tudo que me foi
revelado. “Só fui saber que meu cabelo
tava assim quando a dona Túlia e o Seu Laerte foram me buscar. Simplesmente
acordei desse jeito”.
“Ficou bem estiloso”, elogia Milena.
Por mais que eles estejam
tentando quebrar o gelo, nenhum de nós três parece muito confortável.
“O que vocês disseram pra minha família, pra explicar meu
desaparecimento?”
“Ah, eu inventei que você tinha ido viajar pra cuidar de um caso da
empresa”, explica Sávio. “Eles
engoliram numa boa”.
“Foi mesmo? Não me admiraria se eles não tivessem dado a menor bola”.
“Bom, eu fui bem convincente”.
Aqui no banco de trás, permito
que o silêncio seja um parceiro aprazível. Nada contra Milena ou Sávio, mas
para uma pessoa que está em luto pelo seu grande amor, é árduo olhar para a
beleza da noite e se dar conta que você e sua pessoa amada não poderão mais
compartilhar nada disso. E mais árduo ainda é ficar levando conversinhas
aborrecidas só para disfarçar o quando você se sente esmagado.
“Denner”, Sávio me tira dos devaneios. “Já faz um bom tempo que você tá aqui no carro com a gente e não
escapou nenhum pensamento seu. Ou, pelo menos, eu não percebi”.
“Como assim?”, intromete-se Milena.
Sávio dá a ela uma breve
explicação sobre o meu fenômeno de ficar desapercebido em certos momentos
quando acabo verbalizando o que acho que só estou pensando. Se bem que ele está
correto. Até agora, nada de pensamentos orais. E se tem uma coisa que eu estou
fazendo no momento, de um jeito bem exacerbado, é pensar.
“Parece que você foi curado, Denner”, diz meu amigo.
Não deixa de ser um fato muito
curioso. Será que estou livre dessa mazela?
“Pedro e Olívia estão muito preocupados e resolveram ficar mais um
pouco, pra saber se você ia mesmo acordar”, fala Milena.
“Hum”, resmungo. “Agora que a
Rita Lina se foi, por que ainda estão aqui? Tipo, a missão deles não acabou,
agora que ela morreu?”
“É, mas antes da Rita morrer, eles resolveram assediar a Milena”,
informa Sávio. “Descobriram que ela sente
muita falta da mãe e se ofereceram pra levar ela pro tal do ‘lado de lá’. Mas a
Milena já decidiu que não vai”.
E, como se minha mente sofresse
um beliscão, me vem à memória com uma assombrosa nitidez o dia em que sonhei
com Laura Palmer (ou que ela sonhou comigo, que seja). E, então, eu me lembro
da bendita mensagem.
Aconteceu naquela sala
misteriosa. Bóris e Borsana saíram rumo a uma cortina, a fim de me guiarem por
uma passagem até o sonho de Hektor Casanova. Contudo, antes de eu alcançar os
irmãos anões, Laura Palmer me pegou pelo braço e me sussurrou algo que, na ocasião,
não fez o menor sentido. Bom, ainda não tá fazendo, mas o caso é que agora eu
me lembro da mensagem, de cada palavra.
“Você tem que ir pro lado de lá porque precisa se curar”, murmuro.
“Olha só, os pensamentos orais estão de volta”, diz Sávio, em tom
casual.
“Não, não foi um pensamento oral”, desminto. “Eu realmente disse isso. Essa é a mensagem!”
“Que mensagem, Denner?”, rebate Milena.
“A mensagem que me mandaram entregar pra você, Milena”.
Daqui de onde estou não dá pra
ver, mas provavelmente a reação em sua face é de me julgar um abilolado. Mas a
verdade é que eu estou nutrindo uma certeza muito grande a respeito disso.
“Pra mim não faz o menor sentido”, insisto, “mas pra você tem algum significado eu dizer que ‘você precisa ir pro
lado de lá porque precisa se curar’?”
Sávio para o carro. Outra vez, o
silêncio se instaura sobre nós. Milena parece pensativa e desconcertada. Ela me
questiona:
“Quem mandou essa mensagem, Denner? Por que você acha que é pra mim?”
“Olha, isso realmente não importa. A pessoa que me pediu pra repassar
essa mensagem pra você me disse que eu saberia o momento certo e a pessoa
certa. E nada tira da minha cabeça que é você. Agora me diz, a mensagem faz
algum sentido pra você?”
“Faz”, é Sávio quem responde. “A
Milena realmente tá precisando se curar”.
Então ele se vira e olha
diretamente nos olhos dela e, muito sério, diz:
“Não estou certo?”
(Milena)
Depois de deixarmos Denner em
casa, o clima fica bastante delicado aqui no carro de Sávio. Só que ele não
demonstra a menor vontade de nos poupar de mais tópicos complicados.
“Por que você não confirmou o que eu disse?”, ele cobra.
“Ai, Sávio, por favor...”, digo, com um tom de voz ameno e tentando
me desvencilhar.
“Você não acreditou no Denner?”
“Não se trata disso...”
“Ah, é? Então do que se trata?”
Meu único plano no momento é me
mantar evasiva.
“Mile...”
“Sávio, é sério. Não quero falar sobre isso. São questões demais pra
minha cabeça. Imagina se eu vou embora assim, sem mais nem menos”.
“Você não escutou o que ele disse?”, Sávio aumenta o tom de voz. “Ele falou direitinho, Milena: ‘você precisa
se curar’. E isso é a mais pura verdade. Vai dizer que você já tá melhor depois
daquela história toda de Ivan, e a morte da Rita e da Anna, e todos as coisas
ligadas direta ou indiretamente a isso? A sua alma tá toda arrebentada, não
tá?”
Ai, meu Deus, por que ele não
para?
“Se sou eu que tô precisando ser salva, então essa decisão cabe a mim e
somente a mim, não é?”, contraponho-me. “Além
do mais, por que eu teria de ir pra lá pra me curar?”
“Porque lá a sua vida será totalmente diferente”, argumenta ele,
com veemência. “Você vai poder viver a
felicidade que perdeu aqui, e vai ficar ao lado dos seus pais, do jeito que
você sempre sonhou. E se você vai estar em outro universo, toda essa carga
negativa que te aflige aqui não vai existir lá. É tipo uma segunda chance. É o
que você merece, Mile.”
Chegamos, enfim, à minha casa.
Graças a Deus, pelo menos vou poder fugir desse papo irritante.
“Obrigada, Sávio. A gente se fala!”, me despeço.
Antes que eu abra a porta do
carro, ele me alveja com palavras certeiras:
“É por minha causa, não é?”
Baixo a cabeça por um instante,
processando o poder do que ele disse. A noite lá fora corre pacata. Não há mais
por quê esconder:
“Sim. É por sua causa”.
“Por quê? Você acha que eu sou sua responsabilidade? Que você deve
sacrificar sua felicidade do lado de lá só pra ficar aqui comigo?”
“Eu não quero te abandonar”.
“Não pensa assim”.
“Eu não quero te deixar sozinho, Sávio. A gente passou por muitas
coisas juntos. Eu não vejo com bons olhos essa história de ir embora, de mudar
de realidade, enquanto você vai ficar aqui sozinho”.
“Você se sente responsável pelo meu bem-estar, não é? Você acha que eu
não vou conseguir viver sem você”.
“Não, é que...”
“Mile!”, ele me interrompe de maneira muito incisiva. “Ao menos uma vez na sua vida, você tem que
cair em si de que você não é uma super-heroína. Você não tem de proteger ou
salvar ninguém. Às vezes, a pessoa que você vai precisar proteger e salvar não
é ninguém mais senão você mesma. Essa é a sua dívida. Você deve isso a você.
Por um bom tempo você foi a heroína daqueles que se metiam em paixões erradas,
mas na maior parte do tempo, você se deixou de lado, você se esqueceu de si
mesma. Se você não partir pro lado de lá, pode até ser que não esteja me
abandonando. Mas estará abandonando a si mesma, entregando os pontos. Essa é a
sua chance de ser feliz. Essa é a sua chance de ser livre. Então, por favor,
será que dá pra agarrar logo?”
Afundada em vergonha, não consigo
encará-lo. Cada palavra que ele usa tem o impacto mais forte que a outra, e vou
ficando fraca e sei que não poderei contra-argumentar.
“Mas... e você?”, é só o que consigo balbuciar.
Com ternura, ele me faz um afago
no rosto, deslizando os dedos com gentileza. Há uma luz indecifrável em seu
olhar, como se ele estivesse tomando de mim a neura em querer ser aquela que
cuida e tem o controle das situações. Aos poucos, Sávio se aproxima de mim e o
beijo acontece. Nossos lábios embalados pela leveza dos sentimentos de um querer
ser o protetor do outro.
“Nossa!”, digo, após o beijo. “Parece
que eu beijei meu irmão”.
Ele ri gostosamente.
“Tem razão”, ele concorda. “Acho
que agora a gente sabe que um romance entre a gente seria bem estranho”.
(Sávio)
Três dias após a última vez em
que estivemos juntos, vim acompanhar Milena até o endereço de Pedro e Olívia,
no Hotel Oceânico. Combinamos de nos despedir exatos instantes antes de ela ir
embora de vez.
Chegamos ao apartamento 815, e a dupla
de anfitriões já parece estar bem pronta, só à nossa espera.
“Estamos felizes que tenha feito essa escolha, Milena”, admite
Olívia.
“Venham com a gente”, convida Pedro, virando-se e se encaminhando
para algum cômodo.
Atravessamos o apartamento,
aparentemente bastante espaçoso. Chegamos a uma espécie de escritório, um lugar
grande, mas curiosamente sem nenhuma mobília por perto. Aliás, há dois itens
muito intrigantes, por sinal: uma espécie de relógio preso no teto. Mas não é
bem um relógio porque só tem os ponteiros, e são enormes. Há também uma caixa
metálica comprida, que morbidamente lembra um caixão, jazendo sobre o chão.
Mile e eu permanecemos parados
enquanto Pedro e Olívia organizam tudo, encaixando uns objetos que se
assemelham a dispositivos eletrônicos nas quatro extremidades de um grande quadrado
desenhado no chão, cuja posição está na mesmíssima direção dos ponteiros enormes.
“E então, como é que a coisa toda funciona?”, interessa-se Milena.
“Estamos criando um campo magnético com esses dispositivos”,
explica Pedro. “Em combinação com
vibrações sonoras específicas, eles vão abrir a fenda interdimensional que
vamos precisar para atravessar para o lado de lá”.
“Vibrações sonoras?”, pergunto, excitado por testemunhar algo que
sempre só vi na ficção.
“Sim”, confirma Olívia. “No
nosso caso, foi a Fabi quem projetou isso usando uma música da preferência
pessoal dela. Uma música francesa bem fofinha”.
Milena não contém o sorriso.
“Essa música é Tous les garçons et les filles?”, ela pergunta.
“Essa mesmo!”, ratifica Olívia, tirando um controle remoto
minúsculo do bolso. “Conforme a música
vai tocando, suas propriedades sonoras vão se alinhar com o campo magnético
gerado pelos nossos dispositivos, enquanto esses ponteiros aí no teto vão ficar
girando. No momento em que a fenda interdimensional abrir, ou seja, o portal, vai
haver um momento certo num determinado trecho da música e também da posição dos
ponteiros, em que eu vou pressionar este botão neste pequeno controle remoto, o
que vai provocar uma sucção do portal sobre as pessoas que vão estar dentro do
quadrado no chão. E aí seremos sugados para o portal e chegaremos ao nosso
destino. Não se preocupe, Milena, não é nada agressivo. Mas é fundamental que
eu aperte o botão no segundo exato, senão acabaremos indo parar numa realidade
diferente da que a gente tá querendo ir”.
“Uau!”, fico embasbacado. “E
esse hotel foi escolhido por uma razão?”
“Sim”, aquiesce Olívia. “Não
só este hotel, mas este apartamento especificamente. É por isso que nos
hospedamos aqui. Vários lugares no mundo já foram mapeados em busca de
incidência de relação entre as dimensões, e esse é um dos poucos em que se
constatou a existência de uma ligação direta com os demais universos”.
“E esse negócio que parece um caixão?”, inquiro.
Olívia lança um olhar para onde
apontei, e a princípio sorri pela minha observação.
“É a Rita Lina”, revela ela. “Conseguimos
autorização do Seu Laerte e da dona Túlia para levar pelo menos o corpo para os
pais verdadeiros. Eles já sabem que ela morreu e vão se conformar em pelo menos
enterrá-la na sua realidade de origem. O enterro que vocês viram foi simulado.
Pedro e eu providenciamos para que não tivesse nada no caixão que foi enterrado.
Esse é um caixão especial que ajuda a conservar o corpo”.
“A Rita Lina dá um jeito de participar das coisas mais bizarras até
depois de morta”, comenta Milena, divertindo-se.
“Tudo pronto”, alivia-se Pedro. “Bom,
hora de se despedir então”, ele diz olhando para mim e Milena.
Um tanto hesitante, ela me puxa
para perto da porta do “escritório”. Colocando-se de frente para mim.
“Você se despediu do seu pai e das suas irmãs?”, pergunto.
“Sim. Falei com eles pelo Skype
e contei que recebi uma proposta de emprego em outro país e que não tinha
previsão de voltar e blá, blá, blá...”
“Caramba! E seu pai acreditou?”
“Eu enrolei ele bem”.
Ambos rimos. Não sabemos o que
fazer com esse silêncio desgraçado. Desde que nos conhecemos, nunca precisamos
passar por uma despedida desse nível.
“Eu vou sentir sua falta pra caramba, viu?”, me sinto um idiota sem
algo melhor para dizer.
Milena sorri. Está tão bonita.
Seu cabelo com mechas verdes lhe dão um caráter mais jovial. Nos últimos
tempos, embora ela já estivesse com essa cor nos cabelos, sua aparência estava
bastante comprometida devido aos acontecimentos que iam se sucedendo e lhe
tirando o ânimo de viver. Hoje, ela parece tão melhor. E sei que vai melhorar
ainda mais.
E então elas vêm, as lágrimas.
Tão indesejadas, mas tão carregadas de honestidade. Uma constante que também
têm marcado presença nos últimos momentos.
“Eu também vou sentir muito a sua falta, Sávio”.
“Ah, que nada, você vai logo se esquecer de mim. Vai conhecer muita
gente legal, eu aposto”.
Eu e minha mania imbecil de fazer
piadas quando não devo. Por que estou me comportando feito um panaca?
Com carinho, Milena declara:
“Não importa pra onde eu vá, por quantas realidades eu transite. O que
a gente tem, esse amor tão forte e tão sublime, nunca vai mudar. Você sempre
será a pessoa que mudou a minha vida”.
Fico tímido com suas palavras, e
deixo saltar à vista um menino bobo que não sabe onde enfiar a cara diante de
afirmações tão tocantes.
“Obrigado por tudo, Mile! Eu vou guardar cada momento, vou me lembrar
de todo chá gelado que a gente tomou juntos. Vou me lembrar das nossas
aventuras, das nossas desventuras, de você com sua extrema sinceridade, de
todas as cores que você já colocou no seu cabelo, dos nossos clientes malucos
da ANNA e de todas as vezes que você me fez rir. Você tá indo embora pra se curar
de todo o mal que vem carregando, mas vá sabendo que sem você, eu não teria ido
muito longe nessa vida”.
Mile e eu nos abraçamos.
“E mesmo você encontrando o lar que o seu coração precisa”,
continuo, “tenha certeza que aqui, no meu
abraço, você sempre vai ter uma morada também”.
Seu rosto enterrado no meu ombro
deixa o som de seu choro sufocado, quase inaudível. E eu também choro. E muito,
muito mesmo.
“Eu te amo tanto, Sávio!”
“Eu também te amo tanto!”
E, como se pudéssemos controlar o
futuro e nos assegurar de jamais nos afastarmos, não nos desgrudamos por um bom
tempo, morando um no outro pela última vez, trocando o abraço da separação,
esse ato despedaçador. Mas sei que, tanto ela quanto eu, neste instante,
estamos tentando fazer nossos corações aceitarem a dor e a certeza de que
seremos arrebanhados por uma infinita saudade, e isso é tudo que teremos. No
entanto, despedidas são necessárias, não é?
Milena me beija no rosto. Eu faço
o mesmo. Ela se afasta um pouco, segura as minhas duas mãos e diz:
“Eu quero que você fique com uma coisa”.
Então, alcança uma mochila
encostada numa parede, abre e tira de lá seu diário.
“É a minha lembrança mais íntima e mais pura. É o melhor de mim que eu
posso deixar pra você”.
Toco o objeto com carinho, olho
para a minha amiga prestes a partir e agradeço do fundo do meu peito, comovido
com o presente.
“Seja feliz, meu amigo!”, deseja ela. “E não se esqueça de mim!”
“Seja feliz, minha amiga! Eu nunca vou te esquecer”, correspondo.
“Muito menos eu”.
Pedro coloca a música francesa, a
preferida da mãe de Milena, para tocar. Está na hora de partir. Ela caminha de
ré até o local indicado, sem tirar os olhos de mim.
Agora, estão os três (e mais o
caixão metálico com o corpo de Rita) dentro do quadrado, a música “Tous les
garçons et les filles” impregnando o ambiente com seu ritmo meigo e tristonho.
Os ponteiros enormes se movendo. Raios elétricos saem de uma extremidade para
outra, nos locais onde estão posicionados os dispositivos. Milena, se estiver
nervosa, sabe ocultar isso muito bem. Tudo o que vejo em sua aparência é
tranquilidade, relaxamento, mas também determinação. Estou feliz por ela. Estou
feliz que ela deixou a teimosia de lado e optou pela busca de sua felicidade.
De sua cura, como bem disse Denner.
Nossos olhos não se descruzam.
Eu, da minha distância, não quero perder um só segundo. Ela, de perto de Pedro
e Olívia, quer levar essa despedida até o último fiapo de tempo disponível.
Nunca haverá alguém como Milena Kerber em minha vida.
A melodia persiste preenchendo o
lugar, até que...
É quando o cômodo é completamente
tomado por um clarão de cegar. Ainda bem que eu fechei os olhos a tempo. Nunca
fui inundado por tanta luz. Acho que foi o portal que finalmente abriu. Isso
perdura por muitos segundos.
Ao perceber que a intensa
claridade se dissipa, volto a abrir os olhos, alimentado por uma expectativa
ridícula de que tenha dado errado. Entretanto, não há mais a música francesa,
não há mais os dispositivos, não há mais os ponteiros. Não há mais Pedro,
Olívia e o caixão com o corpo de Rita Lina. Sobretudo, não há mais minha amiga
Milena. Ela se foi para sempre. Ela não existe mais. Só restamos eu e o robusto
fardo da saudade que vou levar comigo.
EPÍLOGO
CINCO ANOS DEPOIS
(Denner)
“E hoje eu tenho a honra de receber ele, que está arrebentando entre os
mais vendidos há nove semanas consecutivas, com o seu mais recente lançamento
que já vendeu mais de dez milhões de cópias no mundo todo. Recebam: Denner
Corrêa!”
Após um anúncio tão engrandecedor
desses vindo de Érika Novax, a apresentadora do “Me conte as novax”, o talk-show mais badalado do momento,
entro no palco do programa, carregando Claude, o gatinho vegano que eu salvei
de morrer intoxicado de morrer com uma alimentação imprópria. Ah, e os
indefectíveis cabelos brancos, hoje minha marca registrada.
“E então, Denner? Me fale mais do sucesso estrondoso do seu livro ‘Os
poderes de Rita’. É seu terceiro livro e
novamente você está em primeiro lugar em vendas, não é?”
“É verdade, Érika”, reconheço, sorrindo com o máximo de humildade
possível. “Graças a Deus o livro continua
alcançando enorme sucesso. Esse é o meu projeto mais ambicioso, venho trabalhando
nele há cinco anos. Mas eu tenho de confessar que os louros não são só meus. A
protagonista da história, Rita Lina, é extremamente cativante e divertida.
Todos os meus leitores a amam”.
“Ah, sim, isso é verdade. Eu já li o livro três vezes e cada vez me
divirto mais. Ouvi falar que você se baseou numa antiga namorada, é verdade?”
“Totalmente verdade. E não foi apenas uma namorada, foi o amor da minha
vida. Eu posso até dizer que, sem ela, eu nem estaria hoje aqui te contando
essa história”.
“Ooooh!”, derrete-se a apresentadora. “Mas que homem mais fofo, né, gente? Bom, Denner, vamos para as
perguntas da nossa plateia. Eles estão loucos pela interação”.
Um homem com cara de uns 35 anos,
moreno e usando óculos de grau, é o primeiro a perguntar:
“Olá, Denner. Meu nome é Marvin Cross e também sou escritor. Gostaria
de saber quais são suas dicas para ser um escritor de sucesso, porque não quero
ser um autor da Amazon pra sempre”.
“Persistência”, respondo sem pestanejar. “Você precisa batalhar pelo seu sonho e se cercar de pessoas que te
incentivem, além de se aproximar das pessoas que podem te ajudar, mas sem ser
chato, sabe? Por exemplo: nada de tentar bater papo pelo direct do Instagram tarde da noite, querendo forçar
a pessoa a ler seus textos, especialmente se a pessoa for de uma editora
bacana. Vai por mim, não é nada legal. Me manda um e-mail depois, Marvin, tenho
outras dicas que você vai adorar”.
Outras perguntas se seguem e,
após isso, o papo com Érika Novax volta com tudo:
“Me fala da sua empresa, Denner. Como é essa coisa de Agência pra
desapaixonar pessoas?”
“Ah, sim! Ótima pergunta!”, me empolgo, porque esse é um dos meus
assuntos favoritos. “Bom, a Agência do
Negócio Nada Apaixonante, mais conhecida como ANNA, esteve inoperante nos
últimos cinco anos. Mas como eu já trabalhei para eles e o ex-dono é um amigo
muito querido, comprei a empresa e por enquanto estou amadurecendo os planos do
que será feito dela. Como eu ando com a agenda cheia de compromissos, o mais
provável é que eu capacite algumas pessoas para gerenciarem ela pra mim e
atuarem como agentes de desapaixonamento. Então, nos próximos oito a dez meses,
creio que a ANNA estará de volta e em plena ativa, pronta para ajudar os
corações em apuros”.
“Que maravilha! Eu serei sua primeira cliente, com certeza”, brinca
Érika, acrescentando uma gargalhada enérgica, em seguida voltando-se para uma
das câmeras para anunciar: “Vamos aos
nossos comerciais e, ainda hoje, no nosso quadro ‘Celebridades mirins que
caíram no esquecimento’, falaremos sobre
Lucas Corrêa. Até logo, amores!”
(Sávio)
Minha mãe se aproxima de mim. Não
importa o quanto ela banque a feliz, sei que essa ocasião para ela lhe rende
uma grande tristeza. Afinal, não é todo dia que um filho seu está se casando.
“Bonitinha a moça, hein!”, diz ela.
“Que moça, mãe?”
“Ora, não se faça de paspalho pra cima de mim. A moça que você trouxe,
ué. Como é mesmo o nome dela?”
“Ah, sim!” , abro um sorriso. “É
Tatiana”.
Tatiana, longe de nós, está
enchendo seu prato com o jantar da recepção da festa.
“Onde você conheceu ela?”, interroga dona Lola.
“A gente estudou junto muito tempo atrás no Santo Cristo. Antes de eu
namorar a Anna”.
“Hum, é mesmo, é? Tá pegando?”
“Mãe!”, me altero, pego de surpresa. “Caraca, não sabia que a senhora falava assim. Não, não tô pegando,
como a senhora tá dizendo. A gente tá se conhecendo”.
“Se conhecendo? Ué, mas já não se conheciam? Além do mais, eu falo do
jeito que eu quiser. E além do além do mais, você não se manca do seu irmão
estar se casando primeiro que você, Sávio?”
“Se conhecendo é jeito de se falar, mãe. Por favor, pare de implicar
comigo. A senhora tá só disfarçando a imensa tristeza pelo Dominique estar se
casando, isso sim”.
“Eu não!”, desdenha ela. “Tô
muito feliz com a felicidade do meu filhote, apesar de ele estar se casando
muito novo. Mas é assim mesmo e...”
Dona Lola não se aguenta e me
abraça, chorando copiosamente. Ao longe, avisto Dominique trocando algumas
palavras com nosso pai, Samuel, que vem se consertando com os filhos desde
nosso inusitado encontro naquele parque infantil. Fico feliz por Dominique ter
tido consideração em convidá-lo. Minha mãe não curtiu a ideia, porém não pode
impedir que um pai esteja presente num evento tão importante.
“Meu filhinho vai embora!!”, berra ela.
Abraço-a com todo o calor e
carinho que ela merece. Então, aos poucos, afasto-a e enxugo suas lágrimas.
“Vamos pro meio do salão”, ordeno.
“Pra quê? Quer fazer essa velha pagar mico, não é? Deixa eu chorar só
mais um pouquinho aqui, depois te deixo em paz”.
“Vamos pro meio do salão, dona Lola. E pare de teimar!”
Conduzo-a para o meio do salão e,
mesmo eu não sendo exatamente um pé-de-valsa, envolvo-a numa dança. No início,
ela resiste, mas acaba cedendo. Ela não deve fazer isso há séculos. Mas vamos
nos mexendo lentamente, no embalo da música, e eu me concentro nesse momento,
como se não houvesse mais ninguém ao nosso redor.
“Sabe o que a gente vai fazer depois que o Dominique partir em
lua-de-mel?”, sussurro no ouvido de minha mãe.
“O que?”, ela diz, fungando.
“A gente vai fazer uma viagem. O que a senhora acha?”
“Viagem? Que é isso, meu filho, não se incomode comigo!”
“Não, mãe, é sério. Vamos fazer uma viagem sim! Só a senhora e eu, que
tal?”
“Hummm... Sei não... E essa moça que tá saindo com você? Por que não
leva ela?”
“Ah, ela vai entender. Se ela estiver interessada em ter alguma coisa
comigo, precisa entender que em primeiro lugar vem a minha mãe. Além do mais,
se ela vir que eu trato a minha mãe que nem uma rainha, vai até querer se casar
comigo”.
“Seu louco!”, zomba ela, rindo. “Não
sei, filho, esse negócio de viajar pra praia me parece meio arriscado. Faz
muito tempo que eu não entro no mar”.
Eu olho para ela, com as
sobrancelhas franzidas:
“Mas eu nem falei em praia”.
“Ué! Não? Jurava que tinha falado...”
Esquadrinho o rosto da minha genitora
e, com toda a afeição do universo, sorrio pela sua perspicácia. Eu amo essa
coroa! Abraço-a com ainda mais força e seguimos em nossa dança meio
desajeitada, mas repleta de amor.
(Milena)
As coisas no lado de cá, como
agora me refiro à minha nova realidade, não poderiam estar melhores. Tudo
aquilo que foi vislumbrado sobre a minha vinda para cá, os prognósticos de que
eu seria mais feliz, de que eu me curaria,
tudo isso se cumpriu. Ou melhor, vem se cumprindo.
O amor e a parceria de meus pais,
as descobertas, as novas amizades... Tudo se encaixa na minha nova vida como
peças imprescindíveis num quebra-cabeça.
Estou trabalhando como
conselheira de mulheres com histórico de abusos, dos mais diversos tipos. Já
fiz incontáveis palestras, muitas vezes me usando como exemplo e, com isso,
deixando meu público mais próximo e confiante.
Bom, obviamente eu tenho saudade
de muitas coisas do lado de lá (que foi onde a maior parte da minha história e
das minhas experiências se passaram). O Sávio, é claro, é a maior de todas.
Curiosamente, foi só há alguns
meses que, numa das minhas pedaladas de fim de tarde (é, agora eu sou a louca
da bicicleta), eu o encontrei pela primeira vez nesta realidade. De praxe,
estava de boa pedalando, meus longos cabelos com mechas rosa dançando com a
brisa das cinco e meia, quando de repente o avistei, perto de um playground. Desacelerei, rumando em
direção ao parquinho, para ter certeza se não estava lidando com uma miragem.
Mas era ele: meu amigo, meu saudoso e amado amigo, sentado num banquinho, o
olhar preso numa garotinha de uns quatro anos de idade.
Parei a bicicleta, desci e me
sentei num outro banco um pouco mais longe, de modo que pudesse observá-lo. A
garotinha brincou até não poder mais e lá perto das seis e meia, de mãos dadas
com Sávio, eles partiram. Então o Sávio tem uma filha aqui neste universo?
Nesse dia, tive medo de me
aproximar, mas não demorou muito até eu descobrir que eles fazem esse programa
regularmente, pelo menos umas três ou quatro vezes na semana. Sempre eles dois,
nunca uma mulher por perto, tipo a mãe da menina. E, após semanas e mais
semanas, finalmente me aproximei. Com um papinho super furado sobre o clima,
política e o fato de ter passado com as rodas da bike bem em cima de um montinho bem generoso de cocô de cachorro.
E o contato foi aumentando,
aumentando... Hoje, posso dizer que somos amigos. E sim, a linda garotinha, que
se chama Cássia, é filha dele, como eu suspeitei. E a mãe dela é ninguém menos
que Anna Munhoz.
Sávio é um técnico de informática
para uma empresa muito importante no lado de cá. E hoje, após o trampo, ele
ficou de me encontrar numa lanchonete perto da praça onde nos conhecemos.
“Bem-vinda ao Deleite! Posso te ajudar?”, aproxima-se uma pessoa muito
indesejável que eu não esperava encontrar por aqui.
“Essa aqui é a Deleite?”, fico surpresa, mas também irritada ao me
deparar com a figura de Ivan Castro. “Droga!
Como eu não prestei atenção nisso?”
“Algum problema, querida?”, preocupa-se Ivan, muito solícito e
doce, ou seja, o cafajeste atuando como um cordeirinho de sempre.
“Só estou esperando uma pessoa”, desconverso.
“Ah, claro. Bom, qualquer coisa que precisar, é só me chamar. Estou
aqui para servi-la com todo o carinho, viu? Posso mandar servir um drinque
exclusivo da casa? Ele é sem álcool, uma mistura de laranja e maçã. Você vai
adorar! E pode deixar que é por minha conta”, oferece ele, finalizando com
uma piscadinha.
“Não, cara! E, por favor, vaza logo daqui, senão vou contar pra todas
as suas namoradas que você fica fazendo charminho pra tudo que é mulher”, intimido,
sem a menor cerimônia.
Ivan fica pálido de medo e
rapidamente tenta se consertar:
“Perdão, senhorita. Por favor, perdão! Eu juro que não vou mais
importuná-la. Peço também que não conte nada ao meu gerente. Eu ralei muito pra
conseguir esse trabalho. Hoje em dia tá difícil conseguir algo nesse mercado
competitivo tendo só o diploma do Ensino Médio. Por favor! E perdão, mais uma
vez. Com licença”.
Ignoro solenemente enquanto ele
se afasta depressa. Mas fico me deliciando por dentro em saber que aqui Ivan é
só um loser. Pouco tempo depois,
Sávio aparece.
“Me esperou muito?”
“Só o suficiente pra dar uma rebordosa naquele garçom metido a
galanteador ali”, aponto Ivan com o olhar.
Sávio ri. Pega o cardápio e, juntos,
pedimos chá gelado e uma porção de pães de queijo. Uma música muito familiar do
“No Doubt” começa a tocar no ambiente.
“Caramba, eu amo essa música. Faz tanto tempo que não escuto”,
comenta ele, alegre.
“Eu também adoro essa música”, ressalto. “Que bom que ela existe desse lado também”.
“Quê?”
“Quê? Nada! Nada não”, atrapalho-me, ralhando a mim mesma em
pensamento para ser mais prudente da próxima vez.
“Você é cheia dos mistérios, hein, Milena!”
Dou de ombros, deixando a questão
no ar.
“E aí, como tá a questão do divórcio?”, mudo o assunto.
Sávio suspira, levemente abatido.
“Nada resolvido ainda. Mas eu sei que a Anna e eu não podemos mais dar
certo juntos. Tecnicamente, já faz meses que a gente tá separado”.
“Hum, eu imagino como a Cássia tá sofrendo com tudo isso”.
“É. Ela sofre um bocado com essa separação. E eu não vou mentir pra
você, viu? Eu também sofro”.
“Claro. Não era algo que você queria, né?”
“Pois é... Eu ainda sinto algo pela Anna, mas não sei... Isso me
prejudica muito. Eu sinto que nossa situação tá insustentável, que nós dois
precisamos seguir em frente. Se houvesse uma forma de deixar de gostar dela, de
parar de sentir o que eu sinto. De me desapaixonar. Seria tão mais fácil”.
Me distraio com a visão que a
janela da lanchonete me traz, processando o que ele acaba de desabafar. Ele me
conhece relativamente pouco, mas dá para notar a confiança que lhe inspiro,
pelo modo que admite suas fraquezas e dilemas.
A última vez em que Sávio e eu
estávamos juntos e Don´t speak estava
tocando, foi uma péssima noite de natal em que quebramos uma relação de anos, e
que desencadeou uma série de acontecimentos ruins. Entretanto, agora estamos
aqui, reunidos de uma forma inimaginável, e eu me divertindo por guardar esse
segredinho a respeito da minha verdadeira origem e do tanto de coisas que eu
sei sobre ele muito antes de nos conhecermos aqui, nesta minha “nova
existência”. De um jeito inusitado, recuperamos Don´t speak como a nossa música. Embora ele não tenha noção do
significado disso e que eu provavelmente nunca contarei. Embora, aliás, a letra
da música ressalte que a pessoa está perdendo seu melhor amigo, eu estou
reconstruindo minha amizade praticamente do zero. É a tal da segunda chance.
“Sabe, Sávio, interessante isso aí que você falou”, analiso,
lançando a ele um sorriso para despreocupá-lo. “Acho que eu poderia te ajudar”.